RADÍCULAS IMPERTINENTES DO NADA GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA



Se algum homem que tem problema sério de bílis, e isto haja, sem dúvida, exercido acentuada influência nalgum distúrbio do caráter e da personalidade, desejar dizer o que quer que seja, esteja imbuído com todas as suas justificativas, explicações, argumentos e oratórias, de toda a verborréia de convencimentos e persuasões, esteja desde este momento livre para todas as considerações e comentários. Pensando este homem que apenas dizer suas contradições não irá de modo algum deixar as palavras conhecidas e reconhecidas, pode tomar de sua pena escrevendo o que pensa e sente, fundamentando suas idéias e pensamentos – assim, tudo está registrado e ficará por todo o sempre.
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Há quem finque os pés no chão, dizendo que os problemas de fígado causam sérios distúrbios psíquicos e emocionais no homem, a Psicanálise e a Medicina são testemunhas. Em verdade, digo deste modo, usando o que ouço e algumas vezes li, mas não me preocupo com a veracidade da informação, aliás, tudo isto é algo que semelha uma pequena raiz. A impertinência destas radículas funda-se no desejo e vontade sentidos de encontrar uma idéia, um pensamento sublime, destinado a aliviar as crises melancólicas, nostálgicas, existenciais de nossa humanidade.
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Há quem afirme que o amor da glória temporal é a perdição das almas. Outros ainda afirmam que o amor da glória é a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem. Não o sei responder com categoria e empáfia. Não me preocupo. Se me preocupasse, com certeza, perderia a idéia original que é esta.
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Nem por isto, por não haver preocupação com a veracidade da informação, quem quer que seja terá o direito e o dever de contradizer as palavras que agora pronuncio com todas as pompas e empáfias; não há o que não concordar, duvidar, terá num estilo simples e comedido que assumir a doçura que é a existência, existir é algo sobremodo doce, fazendo-me até sentir o paladar de uma cocada baiana, destas que são compradas em latas nas mercearias, acompanhada de um bom queijo mineiro – assim, não há paladar que seja mais agradável. Olha aí, a culinária servindo à Literatura. Viver é algo muito doce.
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Assim registrando, no início dizendo da bílis e logo de imediato sobre a doçura que é viver, é que estabeleço idéias contrárias: a bílis é amarga e a vida, doce. Não sei onde li, título e nome do autor, estilo que visa sobremodo a beleza é tecido através de idéias contrárias, o nada deles é o objetivo primordial da obra. Sem esta idéia, ser-me-ia de todo impossível qualquer criação, não apenas esta mas qualquer outra. É que deste momento em diante quero viver serenamente, metodicamente, ouvindo os soluços dos jograis nos salões de dança, os suspiros das damas nos chás vespertinos, as faíscas do olhar dos jovens diante da jovem amada, a chuva que tamborila nas folhas da samambaia à soleira da porta, e o som estrídulo de uma faca que o açougueiro está afiando ao lado de minha residência, em alguns minutos o caminhão do Matadouro entregará os bois, muito trabalho pela frente.
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A vida rejubila-se-me no peito, com uns ímpetos de ventania no topo da serra, esvanece-se-me a consciência, desço à imobilidade física e moral, e o corpo faz-se-me planta, e terra, e pedra, e coisa nenhuma.
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È o que penso comigo algum tempo antes de estar numa reunião de atores que vão encenar uma peça de teatro, intitulada “Milagre em Pitibiriba”, para que fui convidado a representar um Advogado de Defesa. Penso assim, imaginando um público que assiste à peça no palco, e os atores que representam para uma platéia, mostrando a triste condição de homens que estão diante de uma guerra, guerra esta que faz lembrar uma fala de Cassandra na peça de Eurípedes, As Troianas, “Todo homem sensato deve evitar a guerra”. É isso precisamente o que a peça demonstra: os Gregos destruíram Tróia mas não tiraram nenhum proveito da sua vitória porque a vingança dos deuses provocou a sua perda total.
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Porque, enfim, não levo em mira nenhuma recompensa ou virtude em pronunciar com todas as letras prenhes de intenções e desejos mais ingênuos, isto de a existência ser algo doce, viver é de uma doçura sem limites, existir é algo sobremodo doce. Cedo-me a um impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do ofício de procurar despertar num simples mortal, se o conseguir com a metade dele, por mais impossível que seja a idéia da metade de um homem, estarei a sentir-me mais realizado do que se pudesse abarcar os sentidos completos da idéia e do pensamento.
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Acresce que a circunstância de estar, não aquém nem além, não do outro lado das cafuas, do lado de cá dos abismos, mas justamente no ponto de sentir o prazer de estar comendo um doce de leite com fatias de queijo, até babando de tanta alegria e contentamento, tomando vinho de grife, mordiscando pedacitos de queijo, ovinhos de codorna com um Chivas. O mérito de estar degustando estes alimentos é positivamente nenhum. Simples isto de um doce de leite com fatias de queijo, vinho com pedacitos de queijo, ovinhos de codorna com Chivas.
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Fico sobremodo desconsolado com isto, pois por momentos tive a sensação de que poderia ir mais profundo na condição humana, dizendo desta doçura que é o existir, haver um mergulho na busca de compreensão e entendimento disto que é estar desfrutando alguns segredos e enigmas das criações que, desde o início da manhã desta semana, estive pensando em abordar e procurar assim dar um outro sentido às criações.
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Chamo-me pródigo por estar pensando em trabalhar com o gosto das letras que pronuncio com empáfia e prepotência, lanço um cinismo diferente dos que até o momento estava acostumado, precisando de haver uma mudança mais sutil, inclusive o amadurecer e o crescer da idéia e das atitudes do mundo.
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Após esta viagem, devaneio, desvario, sustentado na contradição, dialética, da bilis que é a amargura dos homens e da doçura que é a vida, reflexionando e repensando os paradoxos, o que seria dito, contradizendo-me, perdendo o senso, iniciando a guerra dos contraditórios, fazendo Cassandra rir a rédeas soltas. Efetivamente, algo seria dito, mas o quê? KKK... KKK... KKK...
#riodejaneiro, 15 de fevereiro de 2020#

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