//**OSSOS SEM CARNE**// GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA



Disseram-me, satisfeito, alegre, sentindo-se pomposo e egrégio, inteligência sem precedentes no logus do conhecimento, sensibilidade sem igual no cerne da espiritualidade, percepção sem eiras e beiras, a intelectualidade encarnada, trans-encarnada, des-encarnada, "... a carne completa os ossos...", vice versa, são complementos. Estive por quase dizer: "Você está desperdiçado neste mundo. Ulalá..."
@@@
Ao de imediato dessa fala, devendo ressaltar e sublinhar sensibilidade neste naipe, o coringa do baralho, carece de presença no meio das coisas e dos objetos, prescinde no mundo dos homens, perguntou-me qual seria a serventia dos ossos sem a carne.
@@@
Silenciei-me. Emudeci. Por quase enfiei o meu rabinho de estimação no meio das pernas e sai galopando, o interesse era ir muito além do inferno, sempre olhando para trás para ver se a egrégia e pomposa pessoa não estaria no meu encalço. Cogitar era preciso, cogitação não do ergo sum, mas a de espremer os miolos, como se faz com o paninho de prato após enxugar a pia da cozinha, água e o espremer, depois colocar devidamente dobrado na beira da pia, a estética da limpeza. Estou aprendendo todos os detalhes e segredos de uma limpeza de casa e cozinha.
@@@
Noutras palavras, o cogitar sobre se os ossos tem alguma serventia sem a carne irá dar-me árduo trabalho, quiçá o resto da vida para uma consideração das mais vulgares e chinfrins.
@@@
Mesmo assim desafiei-me a cogitar, tremelicar os miolos como se lhes apresentasse não o vulto da alma penada, mas o real do esqueleto. Não daria a quem me fizera este questionamento, indagação das prefundas do vazio seduzindo o efêmero para o conúbio dos prazeres volúveis, assediando o eterno para a orgia do clímax volátil, cantando a nonada rainha para as heresias dos pelos da pele que se eriçam com as sensações instintivas das éresis da nonada solitária no baldio dos obtusos.
@@@
Bem... Em primeira instância, antes de quaisquer outras, há um "baita" de absurdo nisto de cogitar se haveria alguma serventia dos ossos sem a carne, pois que pensei nos miolos, espremer-lhes para tecer as minhas considerações, miologos numa caveira, só ossos, não existe, são uma massa, não há massa em caveira. Caveira não cogita, é-lhe impossível sensacionalizar como a carne se decompõe ao longo do tempo, deixando os ossos solitários, sozinhos no seio da profundeza do túmulo. Há momentos em que penso se o espírito de quando vez visita a sepultura onde está enterrado seus restos mortais para ver a decomposição da carne...
@@@
Chego a conclusão de que não: não suportaria a catinga. Assim, cogitara tecer as minhas considerações em nível, por nível, de nível das minhas "cositas do riso e da gargalhada". Caveira é sum sem ergo, é ergo sem sum. Miolos, nom sum sem ergo. Se passando à porta do Campo Sagrado ou Campo Santo - Teixeirinha na sua música Churrasquinho de Mãe menciona o Campo Santo: nem com o estômago nas costas comeria desse churrasco -, à meia noite, visse os miolos da caveira, não pensaria em coisa inédita, pioneira, mas a minha imagem refletida na moldura do não-ser do tempo. Enfiaria o rabo de estimação entre as pernas e me desembocava numa correria sem limites, ultrapassando os limites do inferno, correndo, correndo, olhando continuamente para trás no sentido de conferir e certificar-me se os miolos da caveira me perseguiam, estavam atrás de mim. "Quero você, quero você... Me pensa... Me pensa..." - já pensou?
@@@
Encarnei-me, trans-encarnei-me, des-encarnei-me um cão. A importância do cão não está em seu cardápio preferido a carne, mas os ossos que ele tritura com engenhosidade. A mesma coisa o gato: não é o peixe a sua importância, mas as espinhas do peixe que ele come passando a linguinha nos beiços de tanto prazer.
@@@
Sensivelmente considerando, se o cão come um osso com carne, seus prazeres são em nível de Zeus tomando o seu vinho, degustando a carne de uma ovelha perdida de seu rebanho. Os ossos levam o cão ao sublime dos instintos à busca da laia dos pedigrees.
@@@
Vangloriei-me com esta consideração, em verdade, em verdade, estava espremendo os miolos. Para o cão a serventia dos ossos sem a carne seria esta: a busca da laia dos pedigrees. Passados alguns milésimos de segundos, miríades do vir-a-ser, porvir, re-cogitei, não mais vanglória de inteligência, sensibilidade, até mesmo de inspiração, mas nó górdio das cordas vocais O Pomo de Adão a ser pedra angular da verdade de o cão sente prazeres com a trituração dos ossos nos dentes porque o organismo, a estrutura da sobrevivência irão absorver, re-colher e a-colher; a origem do cão é o cão das origens. A serventia dos ossos para o cão, de raça, sem raça, simplesmente vira-lata, são os ossos da serventia.
@@@
Mas a questão sui generis, ipsis litteris e verbis é a serventia dos ossos sem a carne para os homens. Considerando-se que a fome está para a vontade de comer, uma não existir sem a outra, podendo uma pessoa ter fome, mas não ter vontade de comer, emagrecer é a necessidade urgente, alfim a estética corpórea é imprescindível, mas corre o risco de o estômago mudar de lugar, ficar nas costas... Isto de mulher pele e osso é complicado: há um ossinho na mulher na região de seu membro sexual que é pontiagudo e machuca o homem. Aconteceu-me de fazer amor com uma magrela e nunca mais quis saber de mulher magra, prefiro as de muita carne...
@@@
Sem conversa fiada para boi dormir, os ossos existem porque a carne existe. Mas que nasceu primeiro: ossos ou carne? Nunca entrei no útero da mulher para esta de excelência investigação. A resposta só pode ser a mesma da galinha e o ovo: nasceram juntos.
@@@
Diria a pessoa quem me perguntara a respeito da serventia dos ossos sem a carne: "Pare de encher linguiça! Responda logo numa palavra só" Encher tripinha de porco ou tripa de boi com ossos é complicado. As pontas dos ossos vão furá-las a uma e outra. Possível seria se moesse os ossos, tornar-lhes cinzas, mas que homem iria comer linguiça de cinza de ossos. Não estou enchendo linguiça com palavras, querendo mostrar minhas perspicácias e engenhosidades, legar a quem quer que seja o dever de comentar: "Você nos encanta com as palavras."
@@@
A serventia dos ossos sem a carne é de fundamentar aquilo bíblico de dizer que os homens viemos das cinzas e para as cinzas voltaremos: só ossos podem se tornar cinzas, metamorfosearem-se em cinzas. Qual a serventia da carne debaixo de sete palmos? Comida para os vermes e tatus tumulares. Só um parênteses: fico pensando nas caçadores de tatus - irem caçar tatu no cemitério depois da meia noite.
@@@
Na vida, na terra, sem a carne, o que são os ossos? Os ossos são o não-ser. Assim: a carne é o ser, o verbo que se tornou carne, a carne torna-se o ser na continuidade da vida através dos sonhos e esperanças. Os ossos são o não ser.
@@@
Sinto muito estar instigando os neuróticos da perfeição a terem a compulsividade de arrancar os ossos do corpo, deixando a carne apenas, mas devo lhes lembrar que a carne é fraca, símbolo do pecado capital. A serventia dos ossos sem a carne é a contradição, dialética da carne.
@@@
Agora: na hora do "bem-bão" de dois corpos agarradinhos na cama, desfrutando os prazeres do instinto, quem vai pensar, sentir a serventia dos ossos é o gozo do não-ser.
@@@
Vou jogar agora os ossos na cama e dormir o sono sereno, tranquilo, gostoso, profundo da carne sem o verbo.
#riodejaneiro, 07 de fevereiro de 2020@

Comentários