#ÁGUA BENTA NO COPO DE LEITE GELADO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: CRÔNICA



Ah, senhora, pudesse eu agora fechar os olhos com bastante força, como se tivesse saudades daquele sonho de estar andando num campo de grama muitíssimo verde, viçosa, respingada de orvalho, flores por toda a sua extensão, de cabeça baixa, mãos cruzadas nas costas, quando ouvi uma voz que, em princípio, pensei ser-me bem familiar, mas quando virei, já estando a pessoa perante mim, descobri não tê-la visto antes, e ela perguntou a mim se estava a caminho das sendas perdidas, respondendo-lhe eu que não, que estava apenas procurando espairecer um pouco as idéias por me encontrar cansado, exausto, sendo nu e cru, desejando mesmo prolongar este sonho um pouco mais, quando a pessoa disse era necessário ir-se embora, mas que eu continuasse seguindo a trilha que escolhera, a luta seria a minha salvação.
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Porém, minutos depois, acordo e salto da cama, lembrando-me de que não coloquei água benta no copo de leite, tomando, antes de deitar para dormir, e que o faria naquele exato momento. Fi-lo. Encostei no parapeito da varanda, olhando a montanha que circula a cidade, que mundo haveria atrás dela, estava cercado, prolongar-me por tempo indefinido até o suspiro final cercado por uma montanha, o mundo do outro lado, a existência...
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Não consigo mais precisar o tempo em que iniciei a tomar água benta, antes de dormir, e nem me recorda mais se estava ainda tendo insônias, sei que não mais tive, e que isso me tem feito um bem enorme, mesmo que, quase dormindo de todo, tenho um hábito estranho de piar, como um pintinho, após uma chuva que ele não conseguiu de modo algum evitar que molhasse. Pio um tempo mínimo e não mais me lembra coisa alguma, durmo solenemente. A mulher jamais tocou neste assunto dos pios noctívagos, indagou a razão desta mania, hábito, desta neurose, frieza com as coisas; outra mulher teria querido saber, ajudar-me a libertar-me disto. Em verdade, nem sei porque continuo casado. Nada há entre mim e a mulher. Não tive mais insônias, felizmente. Coisa mais desagradável. Enquanto todos estão dormindo, ando pela casa sem rumo e destino, velando o sono de quem não sei e nem porque teria de velar o seu sono. Coisa tão só deles.
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Tenho sem dúvida buscado apanhar o fio que me liga a todos os sonhos incoerentes e contraditórios que tive durante toda a vida. Ainda ontem, sonhei que estava atravessando uma ponte, não me lembra de estar chovendo, não me recorda se havia chovido muito, sei que o rio começou a transbordar e a ponte havia sido tomada pela água, nada houve comigo pois que bastou-me um único passo e terminei de atravessar a ponte. Lembra-me contudo que a água estava muito suja, creio que reconheci o rio como sendo o das Velhas. Na superfície da água, muitas pedras boiando, e até me assustei pois em sendo uma pedra teria de obviamente estar no fundo e não na superfície.
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Enquanto, olhando-me ao espelho, percebendo a necessidade de pentear a barba, porque o hábito de cofiá-la com constância a deixou eriçada de todo, consciente de que tenho de vestir-me, procurar uma roupa que me caiba bem, combiná-la, ou seja, produzir-me com esmero, calçar um sapato muito bem engraxado, erguendo ora um pé, ora outro, admirado com o êxtase e euforia, sussurrando algumas palavras entre os lábios, palavras inteligíveis e portadoras de sentido, ao mesmo tempo que o rosto vai subscrevendo os pensamentos e idéias, os desejos e vontades, os sonhos e ideais, com metáforas adequadas, com símbolos precisos, com arquéticos singulares e exatos.
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Tenho sim o hábito de engraxar o sapato todas as vezes que vou sair, mesmo que o tenha já feito inúmeras vezes durante o dia, mas não consigo imaginar a mim saindo com o sapato sujo, e não por serem hábito e costume meus olhar primeiro para os pés de uma pessoa, prestando atenção se poliu o seu sapato. Isto não me diz respeito. Mas com certeza é a primeira atitude de quem quer que seja de olhar para os meus sapatos, saber com convicção que está engraxado, mesmo que a roupa seja um andrajo de mendigo, mas assim não me visto, não vejo nenhum sentido nisso. Creio que este hábito revela uma alma muito exigente no que concerne aos pés, talvez seja até um agradecimento por tantos lugares já percorridos, tantas ruas já passadas e vistas, e jamais se cansaram ou mostraram-se insatisfeitos comigo. Sou apenas aparência, lá dentro um vazio inacreditável. O que de mim estou sendo? Coisa alguma.
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Vestir-me até que ultimamente estou um pouco modificado, pois que estou vestindo roupa esporte, calça jeans e um camisão, andado de bermudas pelas ruas, mas em prestando atenção ao corriqueiro e trivial estou sempre de calça social e camisa de manga comprida, o que já causou inúmeros questionamentos se tenho algum problema nos braços e me sinto incomodado em isto revelar para todos. Tem causado espanto na mulher, não toca no assunto. Não. Não tenho qualquer indício de problemas nos braços. Este hábito da manga comprida acompanha-me desde a adolescência, muito exatamente do início dos treze anos em diante. Que prato de primeira qualidade, prato suntuoso de restaurante de estrelas para os psicanalistas freudianos!
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Não estava em hipótese alguma em meus planos poder eu descrever e contar com o conforto e a serenidade de um guarda-roupa com algum número de calças de linho e de tergal, algumas esportes, camisas de seda, de tergal, de linho, de nylon, um guarda-roupa e um estilo de caráter permanente, bom, belo e sadio, que sirva de referência a quem de modo algum sabe combinar as cores e os estilos, saindo de qualquer modo e até causando espanto e admiração com os estilos mais estranhos e esquisitos, até constituindo bem a personalidade.
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Não contava ser um homem de hábitos tão precisos e exatos no que concerne a vestir-me, produzir-me para qualquer ocasião. O mais leve e suave possível, causando um conforto enorme, é que a roupa tradicional e convencional serve a todos os propósitos e ambientes possíveis. Contraditório, pois que não me estou nas tintas para as etiquetas, convenções, tradicionalismos, diplomacias. Em qualquer lugar, está-se vestido e causando admiração em quem olha e observa e de algum modo desejando que estivesse assim produzido, causando tantos olhares de soslaio e espreita.
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Lembrando-me do sonho tido com o rio que se enchera, estando eu a atravessar a ponte, felizmente bastou-me um único passo e me libertei de um perigo maior, se é que houvesse algum perigo. Não sei. Estranho, porque ao que eu saiba jamais sonhei estar atravessando uma ponte e o rio enchesse, muito menos que houvesse terminado de passar. Era comum sim sonhar com rios, pontes, mas a água estava sempre suja, talvez por haver residido à beira de um rio de águas bem sujas, o esgoto da cidade. Não o sei.
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- Em verdade, senhora, nada disso tem a ver comigo. Estou mesmo fora de mim, fora de tudo. O rio encheu. Hei-de encontrar o meu verdadeiro habitat. Inda haverá um tempo considerável, mas acontecerá. Até logo. Até o próximo encontro.


#riodejaneiro, 27 de fevereiro de 2020#

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