#AFORISMO 532/AUTORETRATO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO


Meus momentos de felicidade foram bruscos e impiedosos. A vida também. Compreendi, então, que sou nascido desta terra, onde tudo é dado, para ser tomado de volta, onde a memória se esvaeceu para dar lugar à inconsciência, imiscuir-se no vazio. Nessa abundância de sentimentos profusivos, de emoções vorazes e voluptuosas, de ideais secos e molhados, a vida imita a curva das grandes paixões, repentinas, exigentes. Con-templo o que é mister de silêncio, choro comigo a desdita esmagadora. E como é dilacerante ec-sistir con-templando em silêncio o eterno adeus, as faces que desaparecem no horizonte imóvel.


Solitário, isolado, vejo-me cercado de serras indevassáveis.


Diante de mim abrem-se abismos onde se precipitam as torrentes formadas pelas chuvas das tempestades, onde os raios solares incidem-se nas pedras, à soleira, sombras. Desde as montanhas in-acessíveis, para além do deserto que nenhum pé humano calcou, até a extremidade do oceano des-conhecido, dobra o espírito daquele que cria, re-cria, in-venta, re-faz o eterno das solidões, re-produz o ab-soluto dos verbos de sonhos, re-compõe o divino das metafísicas utópicas, incessantemente, e re-jubila-se a cada átomo de pó vivificado graças à sua palavra, graças aos vestígios silábicos de desejos de êxtases e glórias, prazeres e conquistas, resquícios monossilábicos, cujos monólogos re-velam o im-possível da poesia atormentada, da prosa angustiada, onde o nada e o tempo se degladiam, a náusea e as con-tingências se debatem, dos desejos e vontades invisíveis e inexpressíveis, visões que se contradizem na minha alma. O ar palpita como se um cabeça-de-fogo(chapinha) voasse e eu fecho os olhos - tão grande é a paixão que me queima. Envolvendo-me na sua ânsia mortal, sinto o meu coração bater.


Há quem diga pensar eu que somente sozinho no quarto, no meio dos livros, encontro as palavras para saciar a sede de conhecimento, a fome de realização como homem e indivíduo, des-velo as semânticas e linguísticas, janela de meu ser. Ah, de que terrível noite nasceste, ó desejo, de que fonte de amargura, ó luz crepuscular! Lábios que se abrem ávidos para os turvos vinhos da terra, para a maldita memória dos ósculos sem respostas e de tantas sombras que se misturam nesta face humana, qualquer coisa que lhe empresta um ar alucinado.


Não sei mesmo se estas palavras são verdadeiras, se elas realmente dizem de algo sério e sincero, de algo sensível e trans-cendental ad-jacente ao inter-dito in-audito das nostalgias, melancolias e saudades do tempo, do ser, do não-ser, onde me desfaço do verdadeiro de mim - doado ao obscuro que sempre traça ao que me faço. Doo a minha teia, e doando o fogo que me ateia, doo aquilo que não nego, que lúcido em verde me incendeia, que me empalidece, torna-me em rosa ou fogo. Doo de mim o que me sobra, não a obra, mas o cego.


Contudo, sei que, enchafurdado no meu canto, sou livre para atingir os liames do espírito e da alma, tecendo sentidos e símbolos para o retorno à paz, à felicidade, antes disso até, à minha vida quotidiana, confeccionada de medo e cor-agem, cor-agem de vislumbrar o nada com o lince da imanência, medo de perder-me nas ausências da im-perfeição, o que me é in-inteligível. Tenho medo de ser fraco. Sinto as criaturas dormindo, e minha voz como uma alfanje decepando apenas o silêncio que avoluma. Na vasta solidão silenciosa, um outro ser misterioso me habita. Do alto de minha solidão, de minha lucidez, abrangendo com o olhar, para além do riacho, desde os vales férteis até as colinas, ao longe, vejo em torno de mim tudo. Vejo a minha imagem levantar-se enorme, hirta num mar de negras chamas, luzindo como o sinal de meu degredo, obstinada - oh, cruz, do meu inferno.


Creio ser sobremodo percuciente, sobremaneira lícito afirmar que recuso solenemente a largar mão de meu orgulho, porque, a meus olhos não seria uma atitude, mas um vício de meu caráter e personalidade. Ademais este orgulho incendiou desde sempre a liberdade de nada ser, e sendo o nada ec-sistir à margem do menor esforço, os olhares moldarem-me à imagem e semelhança do outro. Ao longo da rua que a noite obscurece irei descendo, ouvirei a voz que exprime a vida.


O sinal da maturidade seja uma extraordinária vocação para as humildades fáceis. Mas é, sobretudo, uma precipitação de viver que chega às raias da extravagância, um desejo de abraçar o mundo com todas as forças que chega a intensificar ainda mais todos os orgulhos.


(**RIO DE JANEIRO**, 12 DE JANEIRO DE 2018)


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