#AFORISMO 549/ADULTERAMENTE NAS HORAS VAGAS# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO


Passam a legenda e os anjos, passam os mitos e as fadas. Passam os ritos e as bruxas. Vazio de tempo fico transparente à luz das nonadas que me circundam, das pontes partidas à frente, dos mata-burros entre as margens do vale e chapadão.


De repente a vida ficou muito mais extensa,
Indistintamente suga o seio das in-verdades,
Inconsequentemente bebe o néctar do impossível,
Até que a inspiração da travessia
Para a plástica da imagem da fonte do futuro
Modele-se: moldura do vale de infinitos horizontes
Diga haverem imagens não posso explicar,
Perspectivas impossíveis de visualizar
Com os olhos insones,
Luzes invisíveis que não posso intuir,
Contra-luzes que não me é dado tocá-las,
Cores além das cores que colorem o espaço
Sideral,
Monumental
Constelação astral.


Que é que isto quer dizer? Ou nada quer dizer? Devo estar velho, a solidão ec-siste insuportável. Ou quê por ela? De repente a vida ficou muito mais extensa, consumida na colina no meio do vento em galope. Os olhos deambulam muito longe, a longitude da cor-respond-ência entre o horizonte e o infinito, adulteramente nas horas vagas. Tão extensos, tão longe que tudo atrás fica lendário, tudo atrás é conto do vigário, é estória da carochinha, é causo de tropeiros e andarilhos, é piada de boêmios no alvorecer antes do café amargo para des-sedentar a ressaca. O tempo que se esvaece é a glória de minha inspiração da passagem, salto para o meio do nada, represento o que dele faço, assento o momento de areia, e descansar. Respiro devagar, trago a fumaça do cigarro lentamente. Como se me balanceasse o corpo ao ritmo sereno do universo. Noite ofegante, olho-a. Pela janela, ao alto, sobre o negrume dos pinheiros, silencioso céu. Estendo-me na rede, extenuado das memórias do dia, do cão que latia incansavelmente por estar preso pela corrente, do barulho da água que enchia o tanque de lavar roupas...


Noite ofegante, negrume dos pinheiros,
Silencioso céu,
Por que passaria como uma afogado
Entre as correntes do mar?
Choro meu de alegria, ó anjos da nova pura.
Sou quem canta, quem delira sem ter febre.
Riso meu de tristeza,
Oh, querubins da nova inocência.
O tempo incide incerto sem medida,
O olhar de criatura se converte na moldura
Entre os éritos pretéritos, entes presentes,
Entre os ais futuros, as idades do eterno
Desta terra sem vida, sem mortes,
Deste mundo morto e triste.
Astros submersos - a maior loucura do mundo se explica por certo modo de perder esta outra cena, e o fantástico não é outra coisa senão a dissolução da fantasia. Terra estéril, sobrevivente eu. Clamo a morte do homem, rogo o fim da raça, anuncio a sua vinda. Cântico dos anjos da anunciação, dos anjos das trevas e do desastre, os sinos nos domos das igrejas, basílicas, catedrais, bradam para o vazio do mundo, para o nada dos confins do infinito. Virgindade do meu sangue, um Deus Menino vai nascer. Os deuses nascem sobre o sepulcro dos deuses.


Sepulcro dos deuses...
A morte não tem sentido
Se hoje seu olhar me põe perdido,
Amanhã os linces me revelam luzes diáfanas
Muito medo tenho
Do olhar que procuro ser escuro.
Se hoje os símbolos de umbanda
Desvelam os mistérios do fim da alma
Amanhã as metáforas da macumba ensinam
Os caminhos por onde seguir,
Os mistérios são candelabros de sete velas
Que iluminam os sonhos do sono efêmero.
Não sei ainda a linguagem do mundo
Que terei de re-inventar,
O estilo da ec-sistência que terei de re-criar,
A forma da imanência que terei de re-fazer,
O enredo do cotidiano que terei de artificiar.


E um silêncio longo, feito da neblina ao longe, encobrindo a montanha, da cidade sepultada em solidão, do cerco à volta do espaço para além, abre-me de um abandono final - o de quem está ao pé e já nem se olha, já nem se sente, já nem se vê, já nem se pensa, já nem se vislumbra.


O espaço esvazia-me
Até ao limiar da memória,
Onde alastra o meu cansaço,
O afago quente de um coro,
O aceno de sinais que se co-respondem
Como ecos de um labirinto.
Num bafo secreto afloro
O que estremece sob os gestos
Alfim apaziguados.
E triste volto a mim
Com sede e fome.
Con-templo as folhas verdes
Umedecidas do orvalho da noite?


É no silêncio que vivo, aprenderei outra linguagem? É na solidão que prolongo os dias, aprenderei outro estilo? Não há palavras ainda para inventar o mundo novo. No sensual momento em que se explica o desejo infinito da angústia. Não há sentidos ainda para revelar o outro dos sonhos, utopias, dos verbos que hão-de ser. Estou só, horrivelmente povoado de mim. É preciso que tudo des-apareça para que tudo possa re-construir-se - re-construir-se através de um "deus único", um "deus final".


Augúrio apaziguado, vagas plácidas, medos entupigaitados de nuvens claras e escuras embatem na face das casas, deslizam pelos muros desenhados de lodo, pichados de letras mortas, escorrem largamente pela terra. O meu pensamento fosforece. Minhas idéias reluzem-se. Evola-se no ar umedecido dos pingos de chuva que caíram por instantes, suspende-se o ergo non sum.


Estou nu por dentro,
Desnudo por fora,
Vê-se nitidamente a minha intimidade tímida,
Envergonhada, vexada, e a inocência é aí, agora
Ainda, por sempre,
É tudo da lei
Na eternidade do instante,
No momento da efemeridade,
E a ingenuidade é lá, por algum tempo,
Na etern-itude do momento,
Tenho fé na vida,
A água cristalina ainda está na fonte.


A lua vai alfim aparecer. A neblina alastra ao meu horizonte sem fim, aos meus uni-versos por serem, os olhos doem-me da nitidez estéril, do nítido nulo, da aparência frígida, da folha limpa por escrever.


Timbre de prata... flutua!
As cordas da lua tremem.


(**RIO DE JANEIRO**, 21 DE JANEIRO DE 2018)


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