#AFORISMO 423/(...)ONDAS E SONS SOB A FRALDA DA MONTANHA# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO


Os raios solares não me atingem; a poeira ainda não se levanta da estrada, após a chuvinha desta madrugada, chuvinha fininha, quase que uma simples garoa, chuvinha de início de primavera, rede preguiçosa para devanear, desvairar-me; eis a fralda da montanha onde a contemplação do para sempre e o jamais resgata a mão fresca da noite sobre um coração sedento da beleza e do belo, de olhos serenos no alvorecer con-templar o invisível, alma esfomeada de visão das coisas do mundo; o espírito se une aos apóstolos adormecidos e os sancionam; e o refúgio coberto de erva convém melhor a um rapaz do que um leito de penas. A nascente murmura lânguida a meu lado. Estaria realmente equivocado? Seja como for, tive sua revelação.


As estrelas velam o ossuário da terra
onde a fralda da montanha se banha nas ondas...
Ouvem-se-lhes sons distantes
das águas tocando as docas,
nalgum rádio
SILENZIO...


Sim, que é o para sempre senão a última imagem, nítida, metálica, vem do lado de lá das arribas, vem do lado de cá da vida, não exclusivamente deste mundo, mas de qualquer mundo que se enovele numa arquitetura de sonho e de permanência numa moldura de imagem do vir-a-ser envolvido nas teias da eternidade, nas notas de músicas e a canção de um instante, lírica singela, romântica.


O advérbio vem entre vírgulas e, mesmo assim, sentido algum possui, pois não se realiza. O verbo vem logo após o verbo e qualquer sombra deixa-se trans-parecer no seu inter-dito. A vivacidade destas vírgulas é de tal forma persuasiva que num primeiro instante nada se distingue, a não ser um efeito de ofuscamento difuso. quiçá a performance das lágrimas, uma a uma, vai molhando o semblante, a fisionomia, o que de sensível se se concebe nalgum recanto de enorme profundidade, entre algumas lágrimas, interrupção e suspiro. Quando, porém, me aproximo do advérbio, os olhos brilham intensamente, as estrelas velam o ossuário da terra onde a fralda da montanha se banha nas ondas, enfim surgiu-me o de que tanto necessito para me locomover nas pedras, rumo a onde a fralda da montanha se banha nas ondas; sempre, se faz necessário esperar o momento propício, não de imediato, e também de soslaio, porque, caso não o seja, uma assembléia de sombras negras e brancas somem dentro da noite.


Re-versas di-versas e ad-versas
idéias ao som dos sonhos e verbos,
pensamentos ao ritmo dos olhares,
desejos e utopia à melodia das inspirações
de modo inverso
já se pode adiantar, revelar-lhe
o rosto
a quem de qualquer modo poderem debitar
a criação da liberdade,
a realidade de sentimentos, emoções,
o amor está aqui...


Às vezes, sinto-me perdido no meio de um sorriso. Não faço sucumbir a palavra ao fosso onde a fralda da montanha se banha nas ondas, onde enterraram a carne, imaginam ao longo do tempo torna-se cinza. O fio de luz plenificou-se no barítono da morte. O medo de persistir atiçou impressões da arte, trazendo o riso da coincidência. No outono, antes de primavera outra, o olhar não intimidava nem retorcia no tempo conjugado do verbo, preenchendo o vazio das respostas às perguntas que perpassam o espelhar os projetos superpostos na indagação.


Sim,
que é o jamais senão a primeva imagem,
transparente, translúcida,
revela-se ao ocaso dos espíritos,
mostra-se à face do vento,
distribui seus mistérios e milagres
às mãos vazias no momento presente.


Conquanto , não é possível desconhecer a pedra. Mudo-a de lugar, mudando os passos. Seja como for, existirá enquanto houver homens que a sentem de por baixo dos pés. No momento, a pedra apóia o desejo de compreensão e entendimento; sempre, faz-se necessário olhar para as pedras e os passos, passos em falso resultam em queda, posso cuidar disso, com destreza e perspicácia, evito as quedas. Mudar os passos é a função e responsabilidade, merecimento e dom, dos homens; é necessário escolher entre realizá-los ou nada fazer, sentar-me na pedra e observar as águas batendo nas pedras; o sol, o vento leve, a inclemente tonalidade azul do céu, tudo já me permite imaginar a doçura do anoitecer.
Presença de dualidade
e divisão consciente,
a guerra intestina,
a dor íntima,
converte-se em alegria
que sempre torna mais
segura,
e mais triunfante
à mesma medida
em que sua pre-disposição
e sua capacidade timológica
diminui.


O triunfo está na derradeira
lágrima,
derradeira lágrima que
revela a luz adiante,
que se torna
brilho nos olhos...
Aproximando-me de ambos, advérbio e vírgulas, já com a atenção bem desperta, verifico que estas pedras, antes de me aproximar de onde a fralda da montanha se banha nas ondas, têm um sentido: a graciosa figura dos direitos à eternidade, o espírito tira proveito desses antemãos de sonhos e desejos. Que tentação mais voluptuosa esta a de identificar-me com as pedras, realizar os liames de mim e dela intimamente a esse universo frio e suave onde as águas escorrem de volta às águas, universo que desafia a história da misericórdia e compaixão – Cristo anda por sobre as águas, salva Pedro de se afogar, porque ele não teve fé – e suas agitações.


Tamanha solidão e grandeza de Cristo dão a estes lugares, onde a fralda da montanha se banha nas ondas, quem sabe até seja possível relacionar este lugar com o Reino de Deus, assim definir o Reino de Deus como o lugar onde a fralda da montanha se banha nas ondas, tais imagens dão a estes lugares um rosto inesquecível. A imagem desenhada, pintada nas nuvens brancas que se deslizam no celeste. Ao nascer da madrugada frágil e singela, passadas as primeiras vagas ainda negras e amargas, é um novo ser o que fende a água da noite, tão exultante de a seguir – Ainda Cristo chamava aos seus discípulos, dizendo-lhes que tudo abandonassem e o seguisse –; e, retornando, o mesmo céu continuaria derramando sobre mim sua carga de suspiros e estrelas.


A lembrança dessas tristezas não é uma saudade triste; por isto sei que não sofri por não haver visto a mamãe morta. Tantos anos depois, vinte e um anos depois, ainda persistem em algum lugar de meu coração, cujas fidelidades costumam ser difíceis, sempre, é com a mamãe, a lembrança viva de ela dizendo a todo momento que saía de casa: “Maria Santíssima ilumine seus caminhos!...”


Sorriso
Ao optimum das condições
Necessárias à espiritualidade mais elevada
mais solerte,
mais audaz,
mais sublime
Não negar a existência, senão que afirmar,
ao in-verso
ao re-verso,
a existência.
e só a existência de mim,
de nós,
de toda gente...


A figuração de jogos e prazer, de achaques e medos, de amores e de traições – força enfim que modela não esse que sou quotidianamente, mas o possível, o constantemente inatingido, que persigo como se acompanha o rastro de um amor que se não persegue, o féretro de um íntimo que não deixou só lembranças e saudades, que se deixou no mundo.


Domingo, à tarde, passeava pela Rua São Paulo, esquina de Tupis, ligo para o amigo, aquando tomei consciência de que a mamãe havia morrido; ligo para minha residência, desejando saber o horário do enterro, tomei conhecimento de que havia já sido enterrada. Não deixou lembranças e saudades, deixou –se no mundo. Deus sabe o que faz!... Com certeza!...


Como homem no mundo, por se satisfazer,
serei o significado e sentido,
serei o presente. Se recebo aplausos e elogios, sonho um pouco, sinto que não me resta muito para assistir aos sonhos na tela resplandecida da eternidade; se descobrem nas entrelinhas a vivacidade do sempre, o jogo de terços de antemão que unem e resumem as orações, sinto-me exultante, uma alegria deslumbrante perpassa o corpo inteiro como sons e imagens acariciam e amam-se de paixão, sou homem quem acredita de corpo, alma, espírito, nos sonhos onde a fralda da montanha se banha nas ondas,


ah, sou quase um deus por criar esperanças;
se me não compreendem, espanto-me menos ainda.
Esqueço e sorrio a quem me ultraja
ou então cumprimento com excessiva cortesia
a quem estimo,
olhando de soslaio para quem me ofendeu,
dizendo-lhe que poderia estar
também sendo cumprimentado
com extrema cortesia.
Gargalhadas, mangofas, risos
sorrisos e lágrimas...
que coisa estafúrdia!...


Tal perseverança em tecer os liames do advérbio e vírgulas, estabelecendo a harmonia de ambos com o para sempre e o jamais, tem algo de emocionante e traz consigo uma lição: a de todos os momentos da criação, do sentimento, da emoção, do sonho do verbo e a da busca do desejo mais divino para a origem e gênese da alegria e felicidade.
Apanho em flagrante a linha que é o verdadeiro nome para o frontispício de uma rocha sólida. O sentimento de plenitude de vida, provável, mas inda não atingido, deixa-se, por vezes, entrever, lega-me o ensejo de vislumbrar, e torna a voltar em meio a essas eternas represálias, esforços ansiosos por murmurar uma nitidez delicada. Poder sentir-me seguro. Sobretudo servem de testemunhos para representar de forma talvez mais significativa.


(**RIO DE JANEIRO**, 28 DE NOVEMBRO DE 2017)


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