#AFORISMO 369/CREPUSCULARES DIRÍGIOS DISSIPADOS# - GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: Aforismo (Escrito 15.04.2004. Revisado em 05.11.2017)


Não sinto o medo próprio de meu caráter meigo e reto, ao me encontrar em choque com a sociedade e em contato com um acontecimento que transcende das regras ordinárias, nem estou, como ela, pressuroso por me reintegrar na vida quotidiana. Elucubram, cogitem, perscrutem, conjecturem, mas a vida quotidiana não concede nenhum sabor de suas circunstâncias e situações, senão gostos insípidos: perambular, deambular na contramão, nas margens é bem mais interessante.


Minha posição atual, de momentânea felicidade, dá-me um prazer selvagem como se colhesse uma flor de estranha beleza, desabrochada em lugar desolado, ao sabor do vento. O segredo, enquanto assim possa ser chamado, mantém-me numa espécie de encanto, numa solidão entre os homens, num afastamento tão completo como o de um abismo no meio da serra.


O mundo me parece estranho, mau e hostil. O meu passado, solitário e obscuro. O futuro, uma tristeza informe que devia modelar em formas sombrias. Transponho o limiar da porta, trazendo esperança, calor e alegria. O momento amargo transforma-se, logo, num momento ditoso.


O mundo deve todo o seu progresso a homens infelizes. Os felizes confinam-se dentro de moldes antigos, retrógrados. Tenho o pressentimento de que, daqui por diante, a minha missão será plantar sementes de outras árvores, fazer cercas, e, talvez mesmo no tempo oportuno, construir uma casa para outra geração, e, numa palavra, conformar-me às leis e aos costumes tranquilos da sociedade. Meu equilíbrio será mais poderoso do que qualquer tendência oscilatória da minha parte.


Nesta hora tão cheia de medos e dúvidas, opera-se o milagre sem o qual toda vida humana é um vácuo. A benção, que torna tudo verdadeiro, sagrado e belo, desce sobre mim.


A face rígida e estranhamente branca recusa-se a desaparecer nesse dissolvente universal. A luz torna-se cada vez mais desmaiada. É como se outro punhado de escuridão tivesse sido espalhado pelo ar. Agora, o ambiente não é mais cinzento, porém negro. Ainda há uma luminosidade demasiada na janela, que, entretanto, não deverá ser tomada como uma incandescência, clarão ou vislumbre; aliás, termo algum porque se denomina a luz servirá para o caso, senão essa percepção duvidosa de que há uma janela.


Frente à janela, campos lavrados e prados ondulantes; mais longe, as montanhas escuras e misteriosas, plantadas nas florestas. Além dessas, sombrias, ainda, desenham-se outras e mais para longe, bem no alto do horizonte, sempre bela e sempre mutável, sempre a jogar com a luz como o diamante, ergue-se a serrania das neblinas eternas.


Devo, pois, constantemente traçar caminhos novos, não importa em que direções. Mas é talvez por causa disso, precisamente, que tenho por vezes desejo de escapar pela tangente, precisamente porque estou condenado a traçar um caminho e também porque, por estúpido que seja eu, adivinho por vezes que toda estrada leva sempre a alguma parte, e que não é a direção que importa, mas o próprio fato de que ela me conduz para um lugar qualquer.
Receio a luz demasiado clara: por isso me resguardo de meu tempo, e do “dia” desse tempo. Nisto é como uma sombra: mais o sol se põe, maior eu fico.


Quanto a minha “humildade”, assim como suporto o escuro, suporto também uma certa dependência, um certo obscurecimento: mais ainda, temo ser incomodado pelo raio, recuo ante a desproteção de uma árvore só e abandonada, na qual toda intempérie descarrega seu mau humor.


Começo de perguntar se esta procura desvairada da pureza, do sublime, da purificação, não vai dar, em verdade, em alguma brancura sinistra e misteriosa, irrespirável. São agora as palavras que parecem violar uma proibição. Nivelando esse passado ao presente num paradigma que me remisse de todos os enganos, erros, de todos os pecados cometidos. Apagando as desilusões, reparando preconceitos e injúrias, re-plantando alegrias e plenas realizações.


Descubro a imagem da sagração e da renúncia. Sim, de certo modo, a arte sempre se serve a si; ignoro quando servi verdadeiramente uma transcendência, e isto me cobriu de orgulho e alegria. Propriamente recordo e não conto.


Ainda uma certa perspectiva de ironia em que a intenção imediata se corrige, em que o espírito e intuição se erguem desde o próprio sentir ao sentir de mim. De novo os homens erguem uma harmonia de sentimentos e emoções, coroada de eternidade; de novo uma vereda sinuosa de águas subterrâneas lhes escapa a segurança. Olho agora eu a incomodar-me com a desgraça de toda gente. Tenho que chorar. Está aqui uma crise, sem um motivo concreto em que nele possa escarrar, coisa que se visse com os olhos, se apalpe. Um demônio incerto surge de fundos obscuros, e, por todo o escritório, o mistério de uma sombra.


As portas fechadas. Ergo os olhos diante de mim melancolicamente, às vezes espiritualista, por vezes louco, nunca perdendo o domínio sobre as impossíveis grandezas, sempre sonhando altos projetos, e sempre acordando para fins imbecis e hipócritas. Na verdade, só o vazio pode acolher o múltiplo. Sei bem que não serei alguém – devo-me tudo, a começar pelo vazio que cavei em mim e ao redor, como o jogador desafortunado que espalha as cartas sobre a mesa, com as costas da mão, - em nível do mar, em clima equatorial, os dedos se emburguesam e o espírito se achincalha.


Ouço o canto ausente. É feito de silêncio cortado de gritos. Dentro da lareira do silêncio, em semente ardente: a fumaça do cigarro tem sido de minha esperança.


(**RIO DE JANEIRO**, 06 DE NOVEMBRO DE 2017)


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