**PRÉ-FUNDAS DA SABEDORIA MILENAR** - Manoel Ferreira


“Let´s put all matters to the date...”
(Bob Dylan – Rollin´and Tumblin´)

Bons dias!

Se não é incomodar-vos, caríssimos senhores, nesta hora de lazer, em que degustais e saboreais as minhas letras, sentimentos leves e agradáveis a vos perpassarem o íntimo, aquela leveza espiritual sem precedentes, sorriso nos lábios, amaria que me res-pondêsseis a uma questão sobretudo capciosa. Amaria saber o que será melhor trancar a sete chaves de ferro, daquelas de cela de criminosos perversos, prestai atenção neste pormenor: as coisas raras e preciosas, ou as vis e triviais?
Pode ser que dentre vós alguns respondam que as raras e preciosas é que devem ser trancadas, pois que suscitam invejas e despeitos, isto é extremamente arriscado, têm poderes ilimitados, são uma praga mesmo, não trancá-las pode resultar numa perda inestimável, num fracasso e frustração daqueles.  As vis e triviais não, não vão causar invejas e despeitos, só se a pessoa estiver mesmo matando cachorro a grito, precisa de qualquer coisa para ser observado no mundo, preencher o seu vazio de valores e virtudes. Quem não tem gato, caça com cão. 
Não acredito que me não possais res-pondê-la – em princípio, posso compreender e entender de modo perfeito, alfim fora feita a queima roupa, e tudo a queima roupa é bem complexo de ser pensado e re-fletido; seria necessário pensar e refletir bem, para não dizerdes tolice, o que é plenamente um despautério, algo de todo censurável. Não iríeis admitir o meu juízo no que tange a esta questão outro não poderia ser, julgar-vos imbecis seria uma ofensa sem precedentes, julgar-vos obtusos seria humilhante. Não me parece, contudo, ser esta a razão. Fazendo-a, de imediato senti que vós tornastes imóveis em vossas cadeiras, nas poltronas ou mesmo sobre a cama de vossas alcovas, de pijama ou como vierdes ao mundo. Permaneceis ainda imóveis como se fosseis perfeitas estátuas ou postes de cimento armado.  Não esperáveis que vos pegaríeis de supetão, de calças na mão. A menos que estejais trancando as raras e preciosas e só revelando as vis e triviais, e isto compromete bastante. Em termos de caráter e personalidade a coisa fica realmente preta, a pretidade do urubu perto dela é um objeto in-estético. Res-ponder-me seria denunciar em que vos tornastes só mostrando as vis e triviais. Bem, há-de se considerar que mostrar as vis e triviais é bem mais fácil, não requer o mínimo esforço, é só dar boas asas à natureza que habita os homens, cada um com a sua própria. 
Não será o vosso silêncio que me fechará a boca, que me impedirá de analisar a questão, mesmo que não a responda a critério e rigor como merece sê-lo. Costumo dizer que os incomodados, irritados, irados com as “manjocas” descascadas por mim, podem cortar-me as mãos, a língua, fazer lavagem cerebral, até matar-me, mas as “manjocas” descascadas continuarão aqui no mundo, ao longo do tempo incomodando mais e mais, pois são abrangentes, basta que a carapuça sirva. Já me avisaram diversas vezes para contratar dois guarda-costas e um batedor, estou bastante necessitado, é uma questão de precaução.
Dentre vós, haverá quem bastante varrido, varrido da silva que, de bom grado, seja capaz de abandonar na rua a sua aposentadoria e as suas jóias? Doar a vossa mansão para os desabrigados?  Não o creio, obviamente! Todos vós, ao contrário, me pareceis, se não estou sobremodo equivocado, – se o estiver, peço-vos que sabeis entender-me e compreender, que me desculpeis, que me perdoais, alfim sou homem e, portanto, estou sujeito a cometer disparates os mais equivocados - desses homens que costumam ocultar muito bem tudo o que possuem de precioso e que só se descuidam das coisas que pouco ou nada importa perder. Importa-vos guardar com todo o esmero a caneta Parker 51, pena de ouro, é sempre importante, dá aquele ar de nobreza, escrever única letra com ela – se houver algum fotógrafo por perto, é momento propício para uma foto para a posteridade - aos olhos de quem quer que seja faz-lhe babar de inveja e despeito. Não vos importais contudo com um chaveiro comprado nas mãos de um camelô da feira da Bela Vista, se vós os perdeis tanto faz como tanto fez, não tinha mesmo qualquer valor, nem mesmo sentimental, a chave pode ser colocada no bolsinho da pasta do escritório, nalgum bolso da calça.
Assim, pois, requerendo a prudência que se escondam as coisas de valor e que não se deixem expostas senão as coisas de pouca entidade, a minha causa venceu, triunfou! Creio que isto diz respeito ao bom senso, ao saber valorizar o que deve sê-lo. Faria o mesmo que vós, não me refiro a uma caneta de pena de ouro, não me refiro a um chaveiro. Saberia eu valorizar uma correntinha de prata, guardá-la-ia com cuidado, e não daria a mínima para uma medalha de honra ao mérito, os que realmente a merecem pelas suas obras e feitos são os que nunca as recebem, os tolos as recebem sempre, fazem até coleção delas. Para o evento de entrega delas, há todo um ritual, baile, reserva de mesas, os gastos com as bebidas e guloseimas, paga-se para recebê-las, só um cretino não vê isto, os orgulhos e as vaidades não deixam, sentem-se valorizados e reconhecidos, as colunas sociais estampam em suas páginas com aquelas palavras lindas e maravilhosas como endosso da homenagem.
O Eclesiastes ordena que se manifeste a sabedoria e se oculte a loucura. Ipsis Litteris: O homem que esconde a própria loucura é melhor que o que esconde a própria sabedoria. Isso não é o suficiente, isso não basta. As sagradas escrituras atribuem ao louco a candura de ânimo, da qual não é suscetível o sábio, embora se julgue sempre melhor que os outros, são mais merecedores de todas as glórias, de todas as graças. É assim que, lendo não apenas com a atenção, colocando todas as dimensões sensíveis, racionais e intelectuais, mas com os poderes do terceiro olho, que interpreto outra passagem do Eclesiastes: Ao passear, o louco supõe que todos os que encontra sejam loucos como ele. Não faz muito tive a oportunidade de garatujar sobre o Zé, o Mané, o famosíssimo Zé Mané, e andando pelas ruas todos que eu encontrava era um verdadeiro Zé Mané.  Haveria quem, pergunto-vos, pode deixar de ad-mirar essa candura e essa sinceridade? Aliás, tive a oportunidade de ler para um Zé Mané que se encontrava sentado numa lanchonete ao lado da Prefeitura Municipal, estava ele acompanhado de outro, que não suportando o nível da sátira pediu licença e se foi, creio que teve medo de alguém o vir ouvindo a sátira, ser comentada a sua presença, e, chegando ao ouvido do objeto de minha crítica, perder algum de seus privilégios com ele.
Os homens fazemos alto conceito de nós mesmos, sentimo-nos no Olimpo dos deuses, mas a loucura torna o homem tão humilde que procura dividir a sua virtude com todos os outros homens e comunicar-lhes a glória do seu mérito. Que direis, caríssimos senhores, se, após vos terdes de-monstrado, provado que a mim se devem todos os louvores atribuídos à força e ao engenho humanos, eu vos provar que a mim também pertencem os que recebem a prudência?  Essa é do balaco-baco – dirá, talvez, alguém, olhando-me com bastante atenção e um pouco de admiração com obviedade, qual é a fonte de toda essa minha espirituosidade, em que lago tomei um gole da gota mágica, um sorriso maneiro nos lábios, com o coração um pouco acelerado. Pretendeis misturar os alhos com os bugalhos, pois a Loucura e a Prudência não são menos opostas que esses duas coisas contrárias. Não pretendo misturar, nada obteria como resultado, nem mesmo o benefício da tentativa. Contudo, sentir-me-ei lisonjeado por vos convencer disso, posso afiançar-vos, desde que continueis a prestar-me vossa gentil atenção, vossos finos sentimentos em ouvir-me.
Se a prudência, iniciemos por ela que é mais conveniente em face dos propósitos que elencamos com carinho e esmero para esta nossa con-versa de homens cujos valores transcendem os triviais, consiste no uso comedido das coisas, eu desejaria saber qual dos dois merece mais ser honrado com o título de prudente: o sábio, que, parte por modéstia, parte por medo, nada realiza, nada faz, nada constrói ou institui, ou o louco, que nem o pudor (pois não tem a mínima noção dele, em verdade pensa que isto é fruto de imaginação fértil) nem o perigo (porque não o sente, não o vê) podem demover de qualquer empreendimento. O sábio absorve-se por inteiro no estudo dos filósofos gregos, especialmente no pensamento de Sócrates, a hermenêutica é seu interesse maior; mas que proveito tira ele dessa constante leitura, desse esforço sobrenatural para encontrar as veredas do conhecimento pleno e absoluto? Fausto encontrou uma saída supimpa para chegar ao conhecimento por que tanto ansiava: vendeu a alma a Mefistófeles.
Digo-vos os proveitos que tira ele, pedindo as devidas escusas pelo sarcasmo que acabo de sentir bem presente em mim, mais presente do que sempre esteve, pedindo-vos que não me tomeis por ridículo ou algo nessa estirpe – não ríeis de mim, por favor! Raros conceitos espirituosos, alguns pensamentos requintados, algumas simples puerilidades – eis todo o fruto de sua fadiga. Vale a pena isso? Bem, por mim, diria que não. Quanto a vós, não o sei, permaneceis em silêncio absoluto, com o traseiro pregado na cadeira, olhando ao redor com olhos estranhos e esquisitos, um indício de angústia no peito.
O louco, ao contrário, tomando a iniciativa de tudo, enfiando-se em tudo, arrostando todos os riscos e perigos, nada disso lhe diz qualquer respeito, parece-me alcançar a verdadeira prudência. Lembra-me Homero: embora cego, enxergava claramente essas verdades, dizendo ele que o tolo aprende à própria custa e só abre os olhos após o fato. Quê sabedoria! Quem não gostaria de possuí-la? Confesso que eu gostaria e muito, também gostaria de haver dito isso, mas as experiências e observações levaram-me a essa mesma conclusão, e eu não conhecia isto que Homero houvera dito.
Continuemos com o nosso raciocínio, continuemos expondo as nossas idéias até que... até que cheguemos a uma posição mais esclarecida. Duas coisas são os obstáculos, os limites que impedem que o homem saiba ao certo o que deve fazer: uma é a vergonha, que cega a inteligência e arrefece a coragem; a outra é o medo, que, indicando o perigo, obriga a preferir a inércia à ação. Ora, é próprio da Loucura dirimir todas essas dificuldades. Raros são os que sabem que, para fazer fortuna, é preciso ser desavergonhado, inescrupuloso, e arriscar tudo, vender a própria alma, colocar a mamãe no leilão público, noutras palavras mais inteligíveis para a situação. Contudo, não vou encher lingüiça, não vou tripudiar, não vou engabelar ninguém, preciso tornar-vos cientes de que os que preferem a prudência fundada no julgamento das coisas se encontram bem longe do lugar onde Judas perdeu as suas botas, e teve de andar descalço o resto de sua jornada, estão bem longe de possuírem a verdadeira prudência.
Vós, com efeito, já ouvistes centenas de milhares de vezes dizerem que o que parece não é, entre o ser e o não-ser a distância é imensurável, e ainda não re-fletistes bem a respeito, sempre vos parecestes uma verdade inconteste, e o que é inconteste não carece de ser questionado. O que à primeira vista parece ser a morte, na realidade, se observado com esmero e a olhos de lince, é a vida, vice-versa; o que parece ser o bem é o mal, o que parece belo é disforme; o que parece rico é pobre; o que parece infame é glorioso; o que parece douto é ignorante; o que parece robusto é fraco; o que parece nobre é ignóbil; o que parece a felicidade é a desgraça; o que parece alegre é triste; o que parece favorável é contrário; o que parece amigo é inimigo; o que parece amor é ódio; o que parece salutar é nocivo; alfim, virado o Sileno, logo muda a cena. Sim, concordo convosco: estou falando muito filosoficamente, e isto vós não podeis compreender de imediato. Pois vou explicar-me com maior clareza.
Difícil isto, não?! Mais difícil ainda é saber que se está mais que comprometido com isto, pois se está vivendo num lugar em que predomina, impera, governa a aparência, é pé-rapado metido a celebridade, é miserável metido a milionário, é analfa de mãe e beto metido a intelectual de cinco estrelas. Iríeis vós jogar-me todas as pedras por estar dizendo o que é a nossa realidade em nossa comunidade?
Todos vós estais convencidos, por exemplo, de que membro de uma academia de letras deve ter obras publicadas, não simples obras, que qualquer Zé Mané é capaz de escrever, mesmo com todas as dificuldades do engenho e da arte, mas obras que contribuam para a caminhada da humanidade ao longo de sua jornada; se não possui qualquer obra escrita, se as suas idéias não servem nem para si mesmo, não concordareis comigo que a sua membridade na academia é um perfeito despautério.
Com que fim – podeis questionar-me incisivamente – nos dizeis tudo isso? A paciência é a mãe de todas as conquistas. Tendes um pouco de paciência comigo. Não estais pensando que as coisas me vêem de graça, num piscar de olhos? Não, é com muita dificuldade que consigo registrá-las. Há três dias que estou triturando os neurônios para lhes dizer estas coisas, e devo afiançar que ainda não atingi o cerne nevrálgico da questão, mas com persistência e muitas esperanças ainda vou conseguir fazê-lo com distinção.
Se alguém se aproximasse de um palhaço mascarado, no instante em que estivesse desempenhando o seu papel, estivesse fazendo rir a todos, e tentasse tirar-lhe a máscara para que os espectadores lhe vissem o rosto, não perturbaria assim toda a cena? Mereceria ser expulso a pedradas, como um estúpido e petulante. No entanto, os palhaços mascarados tornariam a aparecer; ver-se-ia que a mulher era um homem, a criança um velho, o rei um infeliz e Deus um sujeito à-toa. Desejar, querer acabar com essa ilusão importaria em perturbar inteiramente a cena, pois os olhos do espectadores se di-vertiam justamente com a troca das roupas e das fisionomias. Se colocasse as entre-linhas no lugar das linhas, fizesse essa in-versão, com efeito não iríeis querer ler coisa alguma, pois que o prazer que sentis é tentar des-cobrir o que estou dizendo, insinuando, o que estou criticando, o que estou ironizando.
Que é, alfim, a vida humana? Sinceramente, a partir de todas as experiências e vivências, de todos os conhecimentos adquiridos, das observações percucientes a que me entreguei de corpo e alma, não concebo outra res-posta digna e honrada, res-posta que identifique mesmo a minha idoneidade, senão que a vida é uma verdadeira comédia. Cada qual aparece diferente de si mesmo, cada qual representa o seu papel sempre mascarado, pelo menos enquanto o diretor dos comediantes não os faz descer do palco. Lembra-me uma representação de uma peça teatral, era um monólogo, só havia um ator. Estava ele brincando com uma bola. Não estava no script que a bola cairia na platéia. Teve de descer e apanhá-la, mas foi aí que a sua arte se mostrou ainda mais bela. O mesmo ator aparece sob várias figuras, e o que estava sentado no trono, soberbamente vestido, surge, em seguida, disfarçado como escravo, coberto por miseráveis andrajos. Para dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra forma. 
Pensemos num sábio da mesma estirpe e índole de Zaratustra, dirigindo-se a alguém que verte lágrimas pujantes devido à morte de seu ente mais que querido e amado, a mãe, exortasse-a a rir, cair na gargalhada, dizendo-lhe que esta vida não passa, em verdade, de uma contínua morte e que, por conseguinte, a mamãe só fez cessar de morrer; se, enfurecendo-se com algum vaidoso soberbo de sua genealogia, o tratasse de ignóbil e de bastardo por estar afastado da virtude, que é a única e exclusiva fonte da verdadeira nobreza; e, se desse modo o nosso filósofo fosse falando de todas as outras coisas humanas, pergunto eu que resultado obteria ele de sua declamações. Passaria, decerto, para todos, por louco furioso. Eis uma sabedoria: ficai certos de que, assim como não há maior jeguice do que querer passar por sábio fora do tempo, assim também não há nada mais mesquinho, medíocre, ridículo e imprudente do que uma prudência mal compreendida e inoportuna.
Na verdade, caríssimos senhores, nós nos enganamos redondamente quando queremos distinguir-nos no gênero humano, recusando-nos a nos adaptar aos tempos. Na minha parca opinião, jamais se deveria olvidar esta lei que os gregos estabeleceram para os seus banquetes: Bebei e ide-vos embora. O contrário seria pretender que a comédia deixasse de ser comédia, a vida deixasse de ser vida. Ademais, se a natureza vos fez homens, a verdadeira prudência exige que não vos eleveis acima da condição humana. Noutras palavras poucas, de duas uma: ou dissimular intencionalmente com os seus semelhantes, ou correr ingenuamente o risco de se enganar com eles. E não será esta outra espécie de loucura? Quem teria a ousadia absoluta de o negar? Que me concedam, porém, que é esse é o único modo de cada qual fazer a sua pessoa aparecer na comédia do mundo. 
A tolice é a alegria do tolo, o que outra coisa não significa, outro sentido não tem senão que, sem a loucura, nada se acha de agradável na vida.
    

Manoel Ferreira Neto.

(28 de janeiro de 2016)

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