**ORADOR DE SOBREMESA - REVISADO** - Manoel Ferreira


Cabo Rego era o tipo de orador de sobremesa – há quem isto aprecie de paixão, depois de uma feijoada suculenta nada melhor que um discurso dos mais empolados para colaborar na digestão, muito mais eficiente que laranja; prefiro mesmo um Sal de Andrews, odeio discursos -, desde que vestiu pela primeira vez o seu uniforme da polícia militar, havia trinta e três anos, ainda com certa timidez e vergonha, devido à sua voz de “taquara rachada” e a sua falta de raciocínio de improviso – nunca os escrevia, só escrevia “boletim de ocorrência” com uma caligrafia mais que horrorível, garrancho, numa palavra, ninho de guaxo, valendo-lhe sermões do delegado por não entender bulhufas, era preciso que ele os lesse; discurso à moda dos boletins não chamaria a atenção de ninguém -, no início, mas depois de uns três anos, como o hábito faz o monge, adquiriu destreza não apenas no raciocínio como também na linguagem que chamava a atenção, a voz lhe fora esquecida pelos ouvintes, era aplaudido de pé e com euforia. A pergunta que todos faziam, depois do discurso: "Por que será ele não usa "adjetivos"?". Era verdade não usava mesmo. Consideravam-lhe o gênio da oratória, naquele buraco de mundo de 30 mil habitantes ainda não havia nascido outro, algumas pessoas diziam que jamais haveria outro, seria o único, de que muito se orgulhava.
Possuía ele o entorno, a facilidade, a graça, todas as condições necessárias a este mister. Se discursar desse dinheiro, com efeito Cabo Rego seria hoje um bilionário, continua ganhando a sua aposentadoria de um salário mínimo. A posse de tão régios talentos, egrégios ímpetos sensíveis de uso das palavras, proporcionava-lhe alguns lucros de valor inestimável, distinção e reconhecimento. Raro domingo ou dia de festa jantava em casa em companhia de sua digníssima família, entre um garfo e outro, gole dágua, a conversa saudável com todos, regada de casos típicos da polícia, de militares a quem faltavam alguns parafusos, só se falava nisto naquela casa, enfim ser da polícia militar era motivo de orgulho, uma profissão de primeira linha.
Convidava-se o Cabo Rego com a tácita condição de fazer um discurso, como se convida um músico para tocar Bach, Vivaldi, Beethoven ao piano, após o jantar, não para ajudar na digestão do filet mignon, caviar com arroz à grega, salada de rúcula, tomate e pepino bem avinagrada, mas para espairecer o apetite que continuava, a boca que continuava salivando devido à delícia do menu preparado a critério e talento pela chefe da cozinha e suas ajudantes.
O cabo Rego estava entre o pudding e o café, e não se cuide ser acepipe, seria injusto com a capacidade de discernimento das pessoas. O bom cabo, antes do bom homem, que era, um verdadeiro coração de criança carente, se falava bem, tinha um excelente vocabulário, para aquele buraco de mundo de 30 mil habitantes, vale ressaltar para que ninguém pense ou imagine que comia Os sertões, Euclides da Cunha, Os Lusíadas, Camões, Brás Cubas, Machado de Assis, nos seus dias de folga ou nos plantões, em verdade odiava a leitura, nada lia, sabia usar as palavras no seus devidos lugares, fazendo rir com as ambigüidades e paradoxos que inevitavelmente se manifestavam com as construções in-versas da língua, com suas ironias com o brio dos homens de caráter, dos sem caráter e espúrios, o brio habita a ambos, os primeiros com raios, os segundos sem eles, com as mazelas e dignidades de cada um, com as suas frases feitas, às vezes ridículas, às vezes inteligentes demais para a compreensão e entendimento dos ouvintes, desfeitas, melhor comia, um excelentíssimo bom garfo, seus pratos eram o dobro de um peão de enxada, e ainda repetia, se possível, não fosse faltar nas panelas sobre a mesa, mais duas vezes. Todos terminavam e o cabo Rego continuava comendo com a cara enfiada no prato e muita compenetração, com movimentos lentos, uma paciência de Jô na mastigação dos alimentos, enfim quem não mastiga bem enche o estômago rápido, não mata o que estava matando, a fome, quanto mais mastigados os alimentos mais sobra lugar para outros. De modo que, bem pesadas as coisas, na balança do direito civil, o discurso valia o jantar; a bebida não, pois que não tomava único gole antes de seus discursos, questão de precaução que consistia em não trocar o sentido das palavras, bagunçando o coreto das intenções, sendo objeto de chacota de todos os ouvintes, e fofocas por todas as esquinas. Ainda no início da carreira, tomou umas duas ou três taças de vinho antes de um discurso em que estaria presente o juiz, no momento de cumprimentá-lo, trocou “meretíssimo” por “meretríssimo”, levou o maior sabão do delegado e também do juiz. Depois disso, nunca mais bebeu antes de discursar.
Quem com ele estiveram à mesa, vendo-lhe comer compulsivamente, com os olhos esbugalhados, a respiração sôfrega diante de um excelentíssimo bom garfo quanto ele, nunca pôde entender como podia fazer discursos tão empolados, gesticular tanto, emocionar-se, tantos recursos de linguagem, de impostação da voz – era necessário este por causa da taquara rachada que lhe era peculiar -, dir-se-ia até frente às câmeras de televisão e todas as representações eram necessárias para identificar seus grandes talentos, comer muito e discursar ainda mais. Gente normal, depois de uma comilança deste naipe, quer mesmo é saber de cama, dormir, nada de falar igual matraca em procissão de Quinta-feira da Paixão.
Foi grande assunto de debate nos três dias anteriores ao dia de votação de uma lei contra a corrupção deslavada na política daquele buraco de mundo de 30 mil habitantes, se o evento de aprovação da lei pelos políticos e presidente da câmara devesse ser a uma da tarde, depois do almoço, ou em caráter especial, às nove da noite, depois do jantar – os eventos de reunião dos políticos aconteciam impreterivelmente às segundas-feiras às cinco e quinze da tarde -, pois que Cabo Rego fora convidado para discursar, e sem comer antes não conseguia abrir a boca. Também se o seu discurso seria antes ou depois da votação da lei. Não se falava noutra coisa naquela cidade por três dias. Cabo Rego iria discursar na câmara dos vereadores. Muitos eram de opinião que depois do almoço era o horário propício, quem vai sair de casa às nove horas da noite para ir à câmara ouvir discurso de votação de lei, outros eram de opinião que depois do jantar era horário propício, mas no restaurante Casa Grande, lugar dos mais tradicionais e “chics”, comia-se antes, discursava-se depois, votaria a lei. O discurso só poderia acontecer depois da comilança, pois era uma exigência do orador. Prevaleceu a vontade do presidente: depois do almoço, a uma da tarde, na câmara, e o discurso antes da votação. Assim quem estava indo para assistir ao discurso do Cabo Rego, poderia sair depois, e a votação, se todos saíssem, seria feita só entre os políticos. A casa estava esperando um sem número de pessoas, teria gente até no teto, de cabeça para baixo, para ouvir o excelentíssimo Cabo Rego, o gênio da oratória daquele buraco de mundo de 30 mil habitantes. Depois de vinte e quatro anos de muitos discursos por todos os lugares, em palanques, encarapitado num tambor de gasolina como fora num para o tiro de guerra, em clubes sociais, na academia de letras por ocasião de empossamento de membros, era a primeira vez na câmara municipal. A comunidade estava orgulhosa, era o auge de sua carreira.
Fecharam as portas da Casa Grande para o almoço dos políticos e de cabo Rego. O prato foi escolhido pelo próprio cabo Rego: pé de porco com jiló, havia uma semana que estava muito desejoso deste prato, estava só esperando o salário sair para comprar, cinqüenta e dois políticos, o cabo, esposa, dois filhos, fizeram um verdadeiro tacho de pé de porco, ainda com uma panela regular, pois que Cabo Rego estava desejoso, podia-se esperar que comesse mais da conta. Nada de discursos no almoço, conversa simples, muitas piadas de salão, casos típicos do métier político. Comeram, comeram... Dizem as más línguas que jamais na história da cidade políticos comeram tanto, Cabo Rego aproveitou a ocasião mesmo, não houve quem não tenha se admirado, como era possível a um homem comer tanto. Meu Deus. O estômago fazia jus à cabeça – se se pode chamar cabeça a uma jaca metida numa gravata de cinco voltas. Era um exemplo duplo da prodigalidade da natureza quando quer fazer estômagos e cabeças grandes.
Não sobrou nem uma sombrazinha da unha dos pés de porco, limparam o tacho e a panela. Terminado o almoço, foram direto para a câmara em fila indiana. Estava entupigaitada de gente de todas as classes, credos e raças.
O presidente não quis gastar a sua verborréia como lhe era peculiar no início das sessões, cumprimentando um a um dos vereadores, convidados, amigos e conhecidos presentes, estava numa preguiça daquelas. Abriu a sessão com única frase: “Chamamos Cabo Rego para o seu discurso na tribuna”. Cabo Rego levantou-se de sua cadeira, desabotoou o paletó de seu terno da polícia militar, dirigindo-se à tribuna, aplausos de pé de todos, alguns assobios de alguns jovens e mesmo de soldados rasos, tenentes, delegado, seus companheiros. Sentia-se orgulhoso.
Subiu à tribuna. Silêncio total.



“Senhoras, senhores, excelentíssimos vereadores e políticos de toda laia e estirpe – risos de alguns presentes, olhares de soslaio de alguns políticos -, estamos num mundo de tanta corrupção que até Deus se culpa de haver dado a vida a homens de condutas tão espúrias. Punidade não existe, políticos não vêem o sol nascer quadrado numa cela suja e fedorenta no meio de marginais; quando o são, ficam numa cela especial com todas as regalias, podendo jantar pratos finos, dormem em cama bem confortável, mas logo são soltos, continuam suas atividades indecorosas, ferindo todos os princípios morais e éticos, enfiando dinheiro na cueca, na meia, desrespeitando os direitos da população que paga seus impostos com dificuldades e muito suor na testa, constroem mansãozinhas em ruas nobres da cidade, dão banquetes homéricos para os amigos e correligionários. Pergunto-me às vezes, se houvesse punidade para os políticos corruptos, como ficariam as cadeias públicas, super lotação ainda maiores do que a comum em nossa atualidade, e também as câmaras, prefeituras, congressos, vazios, infestadas de ratos, baratas, não haveria governantes ou governados. Não encontro respostas, chego até a dizer com os meus botões, “antes políticos corruptos em seus devidos lugares do que cadeias públicas abarrotadas deles no meio da ralé criminosa e marginal – gargalhadas altissonantes -, do que os prédios públicos vazios, sem lei, sem princípios” – observou Cabo Rego que a grande maioria dos ouvintes passavam a mão no nariz, alguns com os dedos tampando-o, seria o seu discurso que estava cheirando mal, esperavam maior empolação de sua parte; a porta do banheiro estava com fila, compreendeu que era o efeito do pé de porco com jiló.
Devemos colocar a mão para o céu, agradecer a Deus por sua generosidade em dar vida ao vereador Justiniano que criou esta lei contra a corrupção, mandando para a cadeia mesmo quem a desrespeitar, pois não podemos mais suportar tanta corrupção neste métier. Sejamos sinceros, na época dos militares, quando mandávamos mesmo no país, corrupção havia e das grandes, militares sempre foram corruptos e safados, com algumas poucas exceções, reservando-me o direito de defender-me desta acusação – o vereador Justiniano, se antes se remexia a cada palavra de Cabo Rego, estava quieto mesmo, algumas pessoas saíram da primeira fila, ficando só ele. Mas as corrupções ficavam escondidas, ninguém delas ficava sabendo. Mas com a saída dos militares do poder, a corrupção generalizou-se, sem político corrupto não há política, corrupção é sinônimo de política, de homens públicos e notórios, de autoridades.
Esperamos todos aqui presentes que os vereadores tenham mesmo dignidade e honra em votar nesta lei contra a corrupção, e que ela não fique apenas no papel dentro de uma gaveta da mesa do presidente. Seja executada a critério e rigor. Nossa função de militares é cuidar da cadeia, guardar a chave aqueles que não respeitam os direitos humanos, se ainda temos um minuto para o lanche da tarde, que não mais haja, fiquemos todo o tempo trabalhando, cuidando dos encarcerados. Nosso município ainda é pequeno, progresso e desenvolvimento ainda não chegaram aqui, é tempo de melhorar as nossas condições, tornarmos um povo de valores dignos e honrados, e a primeira coisa que devemos fazer é punir os corruptos da política. Poderia eu citar alguns políticos de gestões anteriores a esta cujas especialidades foram a corrupção deslavada, mas levaria um tempo inestimável até citar todos os nomes, e não temos condições de fazê-lo. Vereador Justiniano, em meu nome e da polícia militar, de todos aqui presentes, que não são poucos, de toda a comunidade, queremos agradecer-lhe haver projetado esta lei, com efeito é um fato inédito em nosso município, um político que tem peito de fazer lei contra corrupção. Jamais será esquecido até a consumação dos tempos. Eu próprio peço a algum historiador que comece já a escrever sobre o senhor, desta sessão que aqui está sendo realizada minutos antes da votação, não se esquecendo de registrar que está uma fedentina daquelas neste salão nobre, efeito mesmo do tacho e panela que os políticos, eu, minha esposa e filhos, limpamos na Casa Grande, o vereador Justiniano se encontra com a calça cheia, a porta do banheiro abarrotada de gente, esperando a sua vez.
Vou-lhes contar algo, para terminar este meu discurso. Numa tribo de índios canibais – ainda existem no Brasil, o que poucos sabem -, comia-se padres, professores, advogados, empresários, nunca políticos. O cacique proibira mesmo, e quem isto desrespeitasse, seria comido vivo. Os senhores hão de me perguntar a razão desta proibição. Políticos não são homens? Os antropófagos eram preconceituosos? Eram supersticiosos? Nada disso, senhores e senhoras. Simplesmente porque “limpar político dá um trabalho daqueles...”



Risos altissonantes. Tudo foi interrompido. Muitos não conseguiram se controlar. A câmara ficou numa catinga daquelas. Até o presidente estava pregado na cadeira. Só se via gente andando de pernas abertas, saindo. Não houve votação. Foi adiada para a próxima sessão. O resto da tarde foi entregue à lavagem mesmo do prédio para o expediente do outro dia. E mesmo assim não foi possível. Tiveram de esperar dois dias para a fedentina acabar. Os tablóides sensacionalistas estamparam na manchete: “sessão de votação de lei contra corrupção acaba em caganeira dos políticos”.
Até hoje essa sessão é comentada pela comunidade daquele buraco de mundo de trinta mil habitantes. E o cabo Rego famoso, motivo de orgulho de toda a comunidade. Merda também assina eternidade de “orador de sobremesa”.



Manoel Ferreira Neto.

(29 de janeiro de 2016)

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