**DA CARNE AO VERBO DOS OSSOS** - Manoel Ferreira


E o verbo se tornou carne... Verdade insofismável, indiscutível, irrevogável - não o fosse com todas as absolutidades da verdade de que a minha carcaça que a terra irá comer não haver desconfiança, Cristo não teria nascido, o Novo Testamento não seria conhecido por ninguém, teríamos de continuar vivendo sob a égide do Deus carrasco, autoritário, qualquer mínimo deslize da humanidade o castigo seria realizado com toda a empáfia. E o in-verso, isto é, trocando as palavras de lugar, "E a carne se tornou verbo", também seria verdade insofismável, indiscutível, irrevogável, pois que dizem a ordem dos fatores não altera o produto? O verbo se tornou carne: o Filho de Deus veio ao mundo, professou a Verdade Divina, a única que liberta os homens de suas mazelas e pitis, pirraças e teimosias, legando-lhes o Reino de Deus, o Paraíso Celestial; a carne se tornou verbo... Bem, se não estou varridinho da silva, despirocadinho da oliveira, a carne se tornou verbo com a crucifixão de Cristo - sendo Filho de Deus era Deus, mas também homem, de carne e osso como todas as criaturas -, mas se estou nestas condições, psíquico e emocional des-miolados, só o verbo pode se tornar carne, a carne em verbo se tornar é des-miolice sem precedentes em toda a história do homem, ser ele capaz de tudo.
E pensando nisto, des-miolado que sou, tragando a fumaça do cigarro com volúpia e êxtase, com aquela ansiedade de quem está abraçando o nada do vazio, beijando o vazio do nada, fazendo cachinhos com os cabelos, olhando de banda para as coisas e objetos, vislumbrando as trevas da noite que se aproximam, veio-me isto "Da carne aos ossos do verbo", o que aos olhos dos doutos nem é mais varridice da silva, despirodice da oliveira, trans-eleva e trans-cende, vai além da sandice, vai da razão tresloucada de certezas e verdades às in-verdades da miséria da metafísica.
Elucubre-se que isto de o verbo se tornar carne significa que a vida se re-velou, a vida se presentificou, a vida se apresentou, a vida se manifestou à luz do mundo. Vai-se viver de carne ao longo das dialéticas do nada e nonada, ao longo das contradições dos sonhos e da realidade, ao longo das mesquinharias e mediocridades da natureza humana, ao longo dos conflitos, dramas, traumas, sofrimentos inomináveis e dores inauditas, ao longo das hipocrisias e verdades do caráter e personalidade... Mas pelo que sempre ouvira dizer, disseram-me ao pé do ouvido, tive a chance de verificar e confirmar na jornada pelas estradas da vida, a carne é fraca. Sendo assim viver ela de dialéticas, contradições, mesquinharias e mediocridades, conflitos, dramas, traumas, sofrimentos inomináveis e dores inauditas, hipocrisias e verdades do caráter e personalidade seria pior que o castigo de Sísifo e Prometeu, decretado pelos deuses, estaria, se não arrastando a cara pelas ruas, alamedas, becos e avenidas, mas caindo a todo passo dado de tanto peso nas costas. Poderia até ser assim, uma vez no mundo o destino é esse mesmo, mas precisaria de algo que lhe sustentasse, fizesse-a permanecer de pé e não curvada. Dizer que o verbo se tornou carne é incompleto, porque a carne sozinha não suportaria o peso da existência. Ter-se-ia de dizer que o verbo se tornou carne e ossos. Perfeitamente compreensível e inteligível frente a estas elucubrações, que, aliás, nem são elucubrações, mas fruto da razão e da inteligência, que reunidas re-velam genialidade. A carne necessita dos ossos e os ossos necessitam da carne para que a carcaça fique de pé, tudo o que a vida lega ao longo do tempo e dos anos seja carregado com dignidade e honra, seja a-nunciação da força e ousadia do homem.
Pois, pois... Está lá... Não é dito também, se não me engano, e se estiver enganado debite-se em conta da desmiolice a que fui acometido nestes instantes de re-flexão e verborréia, que viemos das cinzas e às cinzas voltaremos. À carne jamais fora, jamais é, jamais será dado tornar-se cinza. Só os ossos podem se tornar cinzas, trans-formar-se em cinzas, trans-mudarem-se em cinzas, trans-cenderem-se em cinzas, trans-elevarem-se em cinzas. A carne apenas se putrifica, desmancha-se, some-se, nadifica-se, nulifica-se. Da carne ao verbo dos ossos... Ah, sim... O verbo dos ossos são as cinzas, e as cinzas o fim de tudo, a morte plena e absoluta.
E eu vou alimentando as misérias do ser e da metafísica com o vir-a-ser do nada. Amanhã, nada de carne, nada de ossos, nada de cinzas.



Manoel Ferreira Neto.
(25 de janeiro de 2016)


Comentários