**ELOGIO DA TOLICE** - Manoel Ferreira


Suportai pacientemente os tolos... Considerai-me também um tolo... Não falo segundo Deus, mas como se fosse tolo...
(São Paulo)



Bons dias!

A tolice é que “atola” o indivíduo, dá-lhe o nome de tolo, classifica-o, nomeia-o, id-ent-ifica-o, designa-o, homenageia-o e tributa-o, isto é. Não mais será esquecido, negligenciado, discriminado, não mais será ajuizado com olhos de não, não mais será pensado e sentido como mortal. Nome é nome, carrega-se-lhe por todo o tempo de estada no mundo, com seus problemas emocionais, psíquicos, ec-sistenciais, com suas frustrações e fracassos, até mesmo com a sua anonimacidade própria e peculiar, e ainda na certidão de óbito, e ainda na lembrança de todos os amigos, inimigos, íntimos, conforme o nível de profundidade nos anais da história, no patrimônio dos valores e virtudes escusos, nos manuais dela para a aprendizagem dos homens, para lhes orientar em todos os horizontes do conhecimento e do ser, da busca da VERDADE SUPREMA E ABSOLUTA. Será lembrado, glorificado, louvado e venerado pela tolice que o atolou e pelas outras que darão prosseguimento, continuidade, que mais e mais irão solidificando, concretizando, realizando o seu nome, noutras palavras, irá adquirindo renome, fama, sucesso, tornar-lhe-á eterno e imortal.
Conheci um tolo nos tempos de estudante no ginásio, reduziram-lhe os colegas o nome, tornou-lhe afetivo, não que por ele alimentassem terna e meiga amizade, chamavam-lhe Viminha. Sempre que os professores lhe faziam perguntas, as tolices saíam espontaneamente. Alguém, não me lembra quem, sugeriu-lhe que usasse um boné, nem precisou gastar para adquirir um, o pai era comerciante de bonés, chapéus. Passou a usar-lhe, sentiu-se grande e poderoso, o boné permitiu-lhe tornar-se verdadeiro tolo, as suas tolices divinas, sempre que lhe vejo nas ruas observo-lhe o rebolado, o peito insuflado, a cabeça ereta, o tempo contribuiu para o desenvolvimento de sua tolice. Por mais inteligível que seja, sonhei que estávamos almoçando num restaurante na saída da cidade, se não me engano no Posto Denise, na rodovia para Belo Horizonte, discutíamos a respeito da satisfação e felicidade, quanta tolice e despautério, estava mesmo admirado. Sugeri-lhe, então, que tirasse o boné, quem sabe as idéias saíssem espontaneamente, se revelavam tão profundas que eu nada estava entendendo. Tirou-lhe. Não o reconheci, parecia ser outra pessoa, não que as suas idéias tenham se tornado profundas e inteligentes, tornaram-se ainda mais tolas, o boné identificou-lhe a imagem e as tolices todas.
Deveria esse indivíduo pensar bem em seu epitáfio a ser escrito na pedra de seu sepulcro, agradecendo à tolice lhe haver atolado, um tributo a ela, bem sensível, cordial e espiritual, de fazer caírem os olhos de todos que a lerem, vagando e perambulando en passant na cidade dos pés juntos, só para uma Ave-Maria e Pai-Nosso na sepultura do íntimo, amigo, pedindo a Deus acolher-lhes no seu Sagrado Coração, servindo-lhe de re-flexão para os instantes posteriores e póstumos de sua andança pelo mundo. Dar-lhe-ei uma sugestão: inspirar-se no alto conceito que faz de si próprio, na humildade que o boné em sua cabeça dera-lhe de presente com todo afeto e carinho – sim a tolice torna o homem humilde, de uma simplicidade devassadora -, na glória de seu mérito. Acredito que, sabendo mesmo colocar as palavras no seu devido lugar, motivado pelas glórias e júbilos de seus sentimentos e emoções, não haverá no cemitério epitáfio mais divino e maravilhoso, merecendo até foto da sepultura nas colunas sociais dos jornais e tablóides da comunidade.
O tolo por si só não existe, não se nasce tolo, é mister que a tolice lhe preceda, é a tolice que determinará a condição, a espécie, a raça, o credo e as esperanças, a fé do tolo. A tolice desde a concepção até a consumação plena e absoluta está inscrita no feto, diria até mais, parte dela está no óvulo, parte dela está no sêmen, e ao se encontrarem formam o todo, o inteiro, ela habita o ser que virá ao mundo após nove meses de gestação, e acompanhará o indivíduo por toda a eternidade, mesmo que ela não o torne eterno e imortal, porque as vivências não lhe permitiram o encontro, não atinaram com ela no espírito, na alma, na carne e nos ossos, o destino não foi anunciado e re-velado, preferiu seguir os rumos e uni-versos das asneiras mil e dez, por di-versas circunstâncias, obs-táculos, barreiras, sofrimentos e dores, e, acima de tudo isso, pela falta de coragem, pela ausência de sensibilidade, pela covardia, e mesmo porque os interesses dos bens materiais foram bem maiores, orientaram todos os caminhos da roça e dos becos sem saída, buracos e cavernas, abismos, em suma, pelos confins e arribas da ladroagem e corrupção.
Há quem pense que uma tolice rotula, coloca uma placa na testa do indivíduo, e assim nunca irá se libertar, será visto por todos como tolo, e isso, com a devida e sublime data vênia, é deprimente e angustiante, triste e desolador, e haverá um sorriso nos lábios de todos os homens quando lhe vêem, quando seu nome é declinado em quaisquer circunstâncias, nas esquinas e pracinhas do centro e ad-jacências comentados, nos velórios nas funerárias e nos batizados nas igrejas, e ele se arrependerá, sentir-se-á culpado e responsável pelo que dissera ou pelo modo como se comportou, até dizendo para si próprio “onde é que estava eu com a cabeça para mostrar a minha tolice”, pelo estilo que agiu, pelos gestos que fizera, e procurará de todos os meios que a inteligência e a sensibilidade lhe permitirem de suas atitudes, gestos e palavras serem outros, serem dignos de reconhecimentos e ovações. O que rotula é a asneira e não a tolice. A asneira rotula porque a alegria, a satisfação é de quem a ouve, de quem a percebe, de quem a intui, de quem a vê, um motivo para rir à toa, estar sempre com um sorriso de orelha a orelha, “pimenta nos olhos do outro é sempre refresco”, e refrescar-se com a alegria é uma volúpia sem limites, um êxtase indescritível, e diria até uma estesia sem confins, isto porque é inteligente, é sensível, tem os seus princípios idôneos, age e atua conforme as regras e normas do figurino, conforme as etiquetas do menu, conforme as finesses do cardápio, com seus detalhes e arrebiques, seus dizeres e suas palavras seguem as lógicas instituídas pela história do conhecimento, suas idéias e pensamentos seguem a sua visão-(de)-mundo e de vida, com seus pormenores e ornamentos. A asneira é a base, é o alicerce de referência para os valores e as virtudes não serem esquecidos, serem pensados e refletidos em todos os momentos da vida. A asneira é a satisfação e felicidade do asno, isto porque andar sempre na linha não possibilita mesmo conhecer a vida, é aquilo mesmo de dizer que “quem não arrisca, não petisca”, quem não mostra as suas asneiras jamais vai saber o que é isso viver de rótulos, o que é isso ser objeto de chacota dos homens de todas as classes, credos, ideologias, raças, morrerá, a terra comerá os restos mortais, restarão somente as cinzas misturadas na terra, e depois de cinqüenta anos de falecimento nada mais, os prazeres da vida mesma não experienciou instante sequer. Quê lástima! Não sentiu os êxtases das chacotas alheias, as felicidades da glória.
A tolice não rotula, em primeira instância porque não é a alegria do outro, não é a volúpia do outro, não satisfaz os interesses do outro; em segunda, porque não está diretamente ligada, relacionada ao asno, não é toleira, o tolo não é atoleimado, ao contrário, é de uma inteligência incomum, beirando à genialidade - o que um radical é capaz de proporcionar, fazer! A tolice é a alegria do tolo, a alegria de si próprio, a sua suprema satisfação, o que lhe causa todos os prazeres, volúpias, êxtases, é ela que realiza todos os desejos e vontades do ego de ser reconhecido e venerado no Templo dos Deuses do psíquico e do emocional. Dizer uma asneira ou agir feito um asno é bem simples, digamos até trivial, não sai das pré-fundas da alma, dos interstícios dos sentimentos e emoções, das cavernas do pensamento e das idéias, das transcendências do espírito, sai sim dos instintos e dos tutanos dos ossos metidos a esplendorosos, do que lhe há de mais profundo e essencial. Enquanto a tolice habita o “ser” do indivíduo, está no que lhe há de mais dentro, ao longo de suas situações, vivências, experiências, vai-se-lhe a-nunciando, escondendo-se, re-velando-se, no mesmo movimento da natureza, e a cada passo se desenvolve, aprimora-se, diviniza-se, nas suas trilhas todas, por onde vai passando deixa seus traços eivados de características particulares, singulares, esplendorosas e essenciais.
Haveria algum tolo que não ria dos sábios, dos inteligentes, dos sensíveis e cultos, dos homens que só abrem a boca quando estão conscientes de seus pensamentos, idéias, quando têm certeza de seus juízos e discriminações, razões e pré-conceitos, estão cientes da verdade que professam, sabem bem o que dizem e têm argumentos fortes para comprovarem as palavras? Não apenas um dentre todos, todos em uníssono riem desses homens, a partir de seus pontos de vista, suas opiniões, suas elucubrações, fantasias e quimeras, de suas masturbações gratuitas, arbitrarias, a saída do sêmen pela saída do sêmen unicamente, a arte dos movimentos pela arte dos movimentos. Os sábios, inteligentes, sensíveis e cultos riem dos tolos não a partir de suas opiniões e pontos de vista, mas por intermédio da verdade que re-velam, re-presentam, emitem e professam. Riem um do outro mutuamente e continuarão rindo por sempre, a presença do riso entre ambos é que determina a relação ec-sistente, é que consolida a tolice e a sapiência. Ora o tolo é sábio, ora o sábio, tolo, por vezes não se é possível distinguir-lhes. Na ordem eclesiástica, segundo o cerimonial em uso, o primeiro em dignidade é o que ocupa o último posto, de acordo com o preceito de Cristo.
Se a tolice é a alegria do tolo, a asnice, a tristeza do sábio. O sábio abrir sua digníssima boca e dizer asnice não fica nem um pouco bem, causa espanto e susto, como de Mefistófeles, quando viu a cruz pela primeira vez, porque só é asnice aos olhos do outro, à consciência do outro, ao juízo e à razão do outro, será sempre observado com olhos críticos e sarcásticos, com o id e o ego insuflados – quem diria que uma inteligência tão primorosa e incomum fosse dizer tamanho nonsense, tamanho absurdo, tamanho despautério! A tristeza desce-lhe no íntimo com toda a força e empáfia, por causa de algumas palavras indevidas perdeu toda a sua credibilidade, perdeu a admiração e os elogios, tornou-se objeto de chacota, de risos, e mesmo que não mais diga única asnice a que dissera estará sempre na pauta do dia e dos artigos em jornais e tablóides, assim que as oportunidades se mostrarem. Noutra perspectiva, a tristeza do sábio é que a asnice transcenda a sua sabedoria, as suas ciências do saber e da verdade, o saber e a verdade de seus conhecimentos, e ela está imperando em todos os níveis e horizontes, suas verdades ainda que algumas sejam eternas, outras sejam efêmeras, não têm sentido, são baboseiras, são objeto de risos e chacotas, e ele visto pelas bandas dos olhos, pela bílis do fígado. Só lhe resta a alternativa de se unir aos tolos, apreender e aprender, professar suas tolices, mesmo que estejam na contramão de todas as suas idéias, firam-lhe a sensibilidade, intuição e percepção da vida e do mundo. O tolo diria acerca do sábio: “eu o digo com menor sabedoria, eu o sou mais do que ele”. Faz disso um novo capítulo que acrescenta nova seção. Eu o digo com menor sabedoria, isto é, se parecem tolos quando se igualam aos sábios, mais tolos parecerão ainda se quiserem preferir-se a eles.
Para tudo neste mundo, há a primeira vez, até a psicologia confirma e endossa que na segunda vez tudo é bem simples, humilde, não há qualquer sentimento e emoção – tolice e coceira identificam o mesmo, é só começar, nunca mais acabará, e sempre irão causar espanto e susto, admiração, os ahs e ohs, os uiuiuis -, na idade mais tenra ela se mostra toda pomposa, cheia de si, empafiosa, e o indivíduo sente sua presença bem forte, sente alegria indescritível, sente-se bem confortável, nada mais agradável que a alegria, embora isso provoque inveja, ciúme, despeito no outro, não importa o outro, o mais importante é a alegria, ela irá para sempre florir e dar frutos os mais di-versos ao longo da vida, e no que tange e concerne ao nível serão a maçã da árvore proibida do paraíso celestial, os prazeres do paladar serão divinos e absolutos. O indivíduo, diante dessa alegria tão grande e tão tão, irá sempre procurar manifestar outras tolices, criar novas para identificar a fertilidade de suas imaginações e inspirações, dedicar-lhes todas as atenções e esmeros, desenvolvê-las, aprimorá-las, sê-las em todos os momentos, e assim dignificar-se para além do bem e do mal – eu, particularmente, conheço um povo que de tanto viver de aparências está difícil de encontrar as suas idoneidades virtuosas e valorísticas, embora eu lhe possa sentir e pensar a sua auto-estima, é só descrever o in-verso, re-verso, avesso de suas atitudes e ações, é só jogar o seu coronelismo na sarjeta ou considerar-lhe na boca-de-lobo dos desejos e emoções, por mais que isso não tenha sentido algum, suscite apenas paradoxo - não deixar que se tornem unicamente aparência, porque a aparência não satisfaz, não dá pano para mangas, não permite sorrisos e elogios, não lega dormir o sono do justo e do verdadeiro, sonhar com as belezas e o belo das coisas e dos objetos, com as águas claras e transparentes, passando por debaixo das pontes de todos os séculos e milênios, ao contrário, denigre a imagem frente ao outro, atola na lama de todas as vulgaridades, arbitrariedades, gratuidades, joga o indivíduo na boca-de-lobo mais imunda das ruas e avenidas, nos esgotos a céu aberto. Tomando em consideração a esperança ser a última que morre, a verdade só será vivida nas prefundas do inferno ou no paraíso celestial, o que proporciona a aparência.
Uma tolice aqui, lá, acolá, ali, nos confins e arribas, e o caminho do campo vai sendo construído, absolutizando-se, cristalizando-se, as alegrias e prazeres vão aumentando, o peito insuflando-se, a cabeça cada vez mais ereta, o brilho nos olhos mais resplandecente e iluminado, os orgulhos e lisonjas mais verdadeiros, o rebolado ainda mais aperfeiçoado, uma dança digna de ser comparada ao ballet russo, a agulha do salto do sapato ainda maior e mais fininha, dando até vontade de colocar no pescoço uma correntinha e uma medalha dependurada nela, nela escrito “sou um tolo”, mas a verdadeira tolice dispensa medalhas no pescoço, quem é não se mostra e quem se mostra não é, não tem necessidade de o outro reconhecê-la e considerá-la, só não dispensa as estrelas nos ombros, as patentes, o nome na tarja preta costurado no bolso da camisa, o desejo de viver, viver, viver, ir caindo aos pedaços, tendo-lhes de catar ao longo de suas veredas, de tanto viver, de saber e conhecer o que é a felicidade plena, nascida e instituída, estabelecida, divinizada com as tolices. Se a Tolice se faz continuamente, a continuidade é também a Tolice. Quem criou a estrutura dessa frase, não imaginou nem elucubrou que estava criando algo que qualquer palavra pode ser posta, os efeitos e resultados serão esplendorosos, além da esplendorosidade de sua estrutura original. Escolhi eu colocar o substantivo Tolice no lugar do verbo Ser, e sinto nas pré-fundas de minhalma o que ela tem de maravilhoso e magnífico, caiu bem nas minhas verdadeiras intenções e propósitos.
Diante de todas as experiências que o tolo vai vivendo, as tolices que se lhe vão a-nunciando e re-velando, que ele vai sentindo os seus resultados e efeitos supimpas, características sampas, os sentimentos e emoções sempre mais sensíveis e transcendentes, mais espirituais e contingentes, a beleza das águas de seu rio cristalino, o que lhe vem à mente nada mais, nada menos é dizer “a tolice é o verbo que se torna carne no homem”, até criou uma frase que irá servir de questionamentos e indagações até ser dignamente traduzida, analisada e interpretada, ao longo dos séculos e milênios, tendo aquele ímpeto de garatujar algumas letras primordiais, inspirado nelas, eivado de todas as estratégias e jogos do ser e do não-ser, para mostrar aos homens que alcançarão a felicidade por que foram vocacionados desde todas as eternidades do mundo e do paraíso celestial, se estiverem mesmo dis-postos a serem tolos, dis-postos a morrerem pela tolice, só ela é que proporcionará o ser de que tanto carecem, por que lutam e se estrebucham, por que empreendem todos os esforços e tremem diante das dificuldades e obstáculos, jamais estão seguros e conscientes de que estão se realizando, estão tornando todos os seus sonhos reais e verdadeiros, se o que sentem, pensam, imaginam, intuem, percebem, o que vivem é a verdade insofismável, a verdade é sempre efêmera, fugaz.



Manoel Ferreira Neto.
(28 de janeiro de 2016)


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