**MÃOS NAS ILHARGAS** - Manoel Ferreira


Bons dias!

Ouço o canto ausente, ouço a ausência de cantos, ouço cânticos de nada e nonadas. Em que arribas da terra me encontro eu? Em que confins do mundo fui levar os meus sentimentos e emoções para um banho de estrelas e lua?  Seria que me evadi de mim? São feitos de silêncio cortado de gritos da as-sistência, de ritos sem con-sistências. Dentro da clareira do silêncio, em semente ardente, em raízes vivas, um homem de estatura um pouco acima da mediana, olhos castanhos, magro,  quase pele e ossos, escuro, de mãos nas ilhargas, cabeça atirada para trás, marca com o duro taco dos sapatos o ritmo incessante da Ausência. Seria de que ausência, hein? De quando em quando,  a provocação rouca de uma cartomante, toda de trapos vermelhos, em quem a fome se tornou ardor e ameaça. Não era uma execução:  quem ouvia era tão essencial como quem batia os pés em silêncio.
Vou-me re-fletindo em mim, a fim de mostrar quem estou sendo, quem em mim dentro está gritando pela liberdade que lhe é de direito ou que deseja tanto usufruí-lo, e saber alfim que destino seguir neste caminho de estradas sinuosas, terra seca e trincada, e de apenas poeira. Sem alma e sem fogo, assim parado e distante, mudo para sempre, quiçá calado a fora os uni-versos de todos os infinitos, as palavras e as coisas, árias e liras, éclogas e sonatas, elegias e pavanas. Agora que o olhar é frio, gélido seria até o termo mais adequado, isto porque o sinto no contacto com os troncos secos de árvores, com a grama seca, com as pedras, e desesperadamente cego e mudo, as coisas têm mais importância, voltam à sua desvalida indiferença, ao nada que lhes habita, existem silentes ou são as silências de todas as coisas que me habitam o mais íntimo e profundo. De longe, esvaziadas de toda carga, de toda aura, de todo sentido, posso até ver o movimento dos movimentos, presenciar o som do nada imerso no abismo de todas as ilusões e quimeras. Revelação de andanças. Consigo superar a dedicação de minha amizade, o ser na intimidade do interior. O desejo de sua realização? No fundo, quer ser o único, as suas atenções voltam somente para o alimento do amor, para o húmus de sentimentos do sonho e das verdades. Teme não conseguir conquistar-se, sentir-se sempre contente e em paz, teme não ser quem pro-jeta o ser na continuidade do tempo. Teme a vida, teme o mundo, teme tudo – só o que há de verdadeiro é o temor? Numa quase perpétua estupefação apaixonada, conquista a relação quotidiana e contínua com a impossibilidade possível. Encontro-me na oportunidade de uma sede a esperar-me, uma sede particular diante de cada fonte, de cada gota de água cristalina. Almejo palavras para imprimir e marcar outros desejos, almejo sentidos para brilharem e resplandecerem aos raios do sol, às luzes das estrelas e luzes, almejo sentimentos que me possam mover na aridez da terra, que elevem a minha triste condição de pária do mundo.
A aliança realiza-se na primavera, o inverno já passou, chegou o tempo das canções, líricas de contemplação, melodias de refletir o esplendido e belo amanhecer de flores e bem-te-vis. O fato curioso reside em que tudo o que há de livre sobre a terra, tudo o que existe de fino, de ousado, a dança, a maestria segura tanto no pensar, no governar, do perdoar ou do convencer, seja na arte ou nos costumes, exulte a amizade superior ao vinho, exulte o amor superior ao pão nosso de cada dia. 
Quem teve a oportunidade sempre inusitada e excêntrica, de observar bem o mundo, adivinha facilmente quanta sabedoria existe no fato de os homens serem sobremaneira superficiais, serem apenas de sim(s) e não(s). O instinto de conservação ensina rapidamente a ser imbecil, idiota, leviano. Encontra-se cá e lá uma veneração apaixonada e exagerada pelas “atitudes puras”, pelas “formas belas”, pelos “ornamentos magníficos”,  tanto entre os magistrados, quanto entre os artistas; mas, sem dúvida, quem acha tão necessário o culto da superfície deve ter feito algumas tentativas mal sucedidas de ver “sob” a mesma, no seu equívoco interior, o mesmo em suas trilhas de nada.
A inclinação a amar o homem, inerente à amizade, aos seus valores, aos seus interesses, a algum grau de parentesco, deve alcançar sua medida, sua finura, seu grão de sal, a sua dose de almíscar, qualquer que tenha sido o homem que primevamente experimentou um tal sentimento, o primeiro que “viu” o homem antes de tudo, acima de nada, quanto a sua língua deve ter vacilado, os seus lábios tremido, os seus olhos piscado, o seu coração batido, quando tentou exprimir pela primeira vez sentimento tão delicado e gentil, este homem deveria ser venerado desde sempre, deveria ser glorificado por sua sensibilidade e poderes divinos, porque foi o primeiro que voou mais alto que todos os outros e perambulou no mais delicioso dos mundos.
Uma pessoa esconde-se, oculta-se, acovarda-se, e até chega a envergonhar-se de mostrar a ponta do nariz por medo das troças, pois já se sabe que qualquer atitude neste mundo pode prestar-se a zombarias, ainda mais quando se diz respeito a amar alguém, quando se diz respeito a mostrar o íntimo e os interstícios da alma e espírito. Ponho a vida toda a reluzir em letra de forma, tanto a pública como a privada, que tudo se publique e se leiam motejos e risadas.
Entranhas enternecem, a cabeça coberta de orvalho. Permaneço imóvel,  não faço nenhum gesto para evitar o jogo, não são de meus interesses as cartas de naipes marcados. Não vejo meu sorriso, que, no entanto, é tão familiar; só vejo diante de mim o belo desconhecido. Diante da implacável decisão que percebo, esforço-me para prosseguir no jogo, mas não tenho forças, não tenho ânimos, não tenho desejos ou vontades, nada tenho nas mãos, posso abaná-las enquanto troco os passos nas ruas e avenidas. Pensei que o jogo não podia continuar, que, ao me despir da iniciativa de fazer um gesto com a mão, nada tinha a perder ou ganhar, não haveriam as sendas, um gesto que apagaria tudo e a partir do qual só haveria lugar para as íntimas sensações.
Pouco a pouco, o vento, que mal se percebe no início da tarde, parece-me crescer com o passar das horas e ocupar novamente toda a paisagem, todo o panorama do sertão e suas árvores secas e contorcidas. Sopra de uma abertura entre as montanhas longínquas, a leste, chega apressado do fundo do horizonte e vem cabriolar em cascatas por entre as pedras e o sol. Sem parar, zune com força através das ruínas, gira num circo de pedras e de terra, banha os montões de blocos devastados pelo granizo, envolve cada uma das colunas com seu sopro e depois vai derramar-se com gemidos incessantes sobre o foro que se abre ao céu. 
A timidez, a sensação de pânico no mais profundo do ser, a vertigem, tudo o que se sente quando se despe, tudo isso desaparece, tudo isso esvaece. Permaneço surpreso por descobrir de repente gestos até então desconhecidos, despindo-me da iniciativa de fazer com a mão um gesto. A paixão se apodera pouco a pouco do corpo, termino por abafar os gemidos da alma.
O ressoar pelo espaço, como respiração da montanha. Imperceptivelmente, nos recantos de sombra, o ó da geada brilha. O ar gélido des-fibra-me a garganta. Até que tudo findou. Manoel Coveiro, com a pá, alisa a terra sobre o túmulo num requinte de perfeição. Dá-lhe ainda uma olhadela perita e satisfeita. Depois começa a carregar o caixão e a ferramenta na carroça. Nós partimos.
Fora fácil liquidar os deus e semideuses de todos os meus sonhos, de toda minha inquietação. Mas ao fim de todas as mortes, nos limites do silêncio, há um fantasma sem nome, oblíqua presença de nada. A terra é estéril e virgem, é a hora do Re-começo Perfeito. Entrego à minha Mãe o silêncio total. A voz se cala com a minha voz. Erguer-se-á da própria terra. Vem a voz desde o útero à Palavra. Subitamente, uma iluminação!... O silêncio estala a minha boca como uma pedra, estala-me nos ossos. É o Silêncio do Espírito, da minha condição última. É uma luz de dentro, íntima. É uma luz. O luar vibra – uma lua enorme escorre pela montanha, coada luminosidade, pálida. É uma luz de dentro, do útero, íntima. Luar aberto. Repassa a terra, residência, acende-lhe a superfície o Halo do Mistério.
Como em esperança o alimento da vida, paragem breve ou longa para o balanço de um re-nascimento e re-começo possíveis. O mundo é pequeno: cabe todo numa mão colérica. Pelas entranhas dos montes, a areia acumula-se ao pé dos buracos, formigam homens dentro e fora, obstinados, dentro e fora, tecnificados, formigam - o–tempo morreu. É o presente absoluto.
Para a eternidade da memória dos milênios de silêncio, para a contemplação e vislumbração, a Fé e Esperança, no negrume das sombras do céu, no cruzado símbolo da Cruz e do Tempo, dobram os sinos, dobram – quem re-nasce?!... quem abre os olhos no mundo pela primeira vez?
Todas as montanhas as mais altas, todas as esperanças as mais difíceis, todos os caminhos os mais longos... Que em tudo isso realize no maior Clamor a Glória do Amor e da Vida, mas que ao fim ainda continuo buscando, ainda desejo encontrar. Há uma filha agora, uma outra filha, e aí a continuidade da terra e da vida. Há no seu horizonte o sem-fim do meu grito, na perpetuidade da Cruz e do Tempo.
Trêmula fímbria de loucura, de febre além de humana, os olhos sofrem, o sol estilhaça-se na neblina. Subo a rampa da igreja – não penso. Uma voz obscura, ouço-a – que mais? Sê mulher aquém das razões, na Iluminação de teu Útero. Mas quando chego à porta da igreja, um sussurro dócil e gentil, agudo e estrídulo, queima-me as pupilas na estridência da luz. A toda roda o silêncio, nas vagas de chuva, pela massa da montanha.
O que acontece agora é o que sempre temera mais que tudo no mundo, o que sempre evitara: o amor sem sentimento e sem amor. Sei que atravesso a fronteira proibida, além da qual me comporta sem a menor reserva, sem o mínimo constrangimento, sem a ínfima vergonha, e em total comunhão, com o quê é o que não me é dado saber, não o sei.  Apenas experimento, num recôndito do espírito, uma espécie de medo ao pensar que nunca sentira tal prazer e tanto clímax como dessa vez – além dessa fronteira. A luz apagou-se. Não há como ver o meu rosto; sei que o jogo terminou, mas não tenho vontade alguma de voltar ao universo das relações habituais. Tenho medo desta volta, deste retorno à realidade da vida e do mundo.
Abro a porta do quarto e acendo uma luz. É um quartinho com duas camas, uma mesa, uma cadeira e baú de colocar as roupas íntimas – antiquíssimo  este baú, um século e tanto. Olho-me e esforço-me por descobrir por trás da expressão lasciva os traços familiares que costumava observar no espelho, antes de atravessar a fronteira proibida. É como olhar duas imagens na mesma objetiva, duas imagens superpostas aparecendo transparentes uma sobre a outra. Estas duas imagens superpostas dizem-me que posso ter tudo dentro de mim, que a alma é terrivelmente amorfa, que a fidelidade pode existir tanto como a infidelidade, a criação, como a inocência, a sedução, como o pudor, enfim; essa mistura selvagem me parece tão repugnante quanto a mistura de um depósito de lixo. As duas imagens superpostas aparecem sempre transparentes, uma embaixo da outra. Com todos os sentimentos, todos os pensamentos, todos os vícios possíveis, o que justifica minhas  dúvidas e meus ciúmes secretos; a impressão de contornos delimitando a minha personalidade não é senão uma ilusão a que o outro sucumbe, aquele que a olha, isto é,  eu mesmo.
O jogo acaba se confundindo com a vida.
Cinzas são palavras. Atravessei já de um lado para outro. Além da porta. Não estou trancado no inferno para a eternidade. Aceno adeus... Oh, formas... A morte transforma as palavras em cinzas. A consciência burila-as, delineia-as.
Oh, facho de luz!...
Portas esmiúçam epitáfios que roçagam terras esquecidas em montículos de barro. Absurda teia de vento amargura as bocas; cinturões da tragédia que morrem em sinais do alto e baixo; palavrões que morrem e a espera de dizerem, murmurarem, sussurrarem, ao pacto de fraternidade anterior...
Fechadura achincalha lápides, abrindo covas em grânulos de ervas. Gritos audíveis, condensados em parágrafos e alíneas, numa evidência inevitável, até ao limite de minha própria tragédia, de meu absurdo. Só Deus sabe, Senhora, quantas vezes mergulho no sono com a esperança de despertar não tendo mais qualquer dificuldade, não me sentindo um estrangeiro no meio das pessoas que conversam tranqüilamente sobre todas as coisas, de um modo simples, num estilo simples; e, pela manhã, quando arregalo os olhos e torno a ver o sol, sinto-me profundamente infeliz, com as mesmas dificuldades, a mesma solidão.
Oh! Se eu pudesse mudar de humor, se pudesse, sim, desvirtuar todos os pensamentos, tergiversar todas as emoções, esquecendo-me de tudo, tendo outras emoções, entregar-me ao tempo, a isto ou aquilo, ao insucesso de uma iniciativa qualquer, ao fracasso de um projeto qualquer, ao menos o fardo de minhas mágoas não pesaria tanto.
Aumenta o meu sofrimento verificar que perdi quem fazia o encanto de minha vida, quem a todo instante era um novo mundo a ser decifrado, quem a todo momento era uma emoção nova a ser sentida.
Deus sabe o que faz!...   
Carro passa. Dentro, pessoas. Muito rápido. Do carro, lembra-me a cor. Alaranjado. Fecho a janela. Caminho. Lagartixa na parede. Oito anos. Lagartixas passeando no teto do alpendre, comendo insetos. Cheias, escondiam-se nos buracos do alpendre, quadro suspenso, quase rentes ao teto. Posso não recordar-me tão fácil assim. Contudo, este quadro ficava na parede da sala de estar, próximo ao relógio de parede. Era um quadro de navalhas. Só o que me lembro.
Sei, de antemão, que, caso olhasse no espelho, não veria somente um cansaço, mas uma fisionomia estilhaçada, olhos fincados no rosto, pequenos, em conseqüência do cansaço. Além disso, veria um Ronildo Guerra exilado de si. Não me desejo exilado de Ronildo Guerra. .

Manoel Ferreira Neto.

(28 de janeiro de 2016)

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