#AFORISMO 854/ O ARTISTA É A ORIGEM DA OBRA E A OBRA, ORIGEM DO ARTISTA# - MARTIN HEIDEGGER - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
Às avessas da in-finitude, semeando a sempre-viva consciência, ética e
estética das dialéticas da iluminação, acompanhada de vivacidade, de que saciar
as fomes e sedes da humanidade é con-templar o verbo amar, de que regar as
volúpias da essência do pó-ema do ser é vis-lumbrar, a-lumbrar, des-lumbrar, na
continuidade das esperanças, caminho sinuoso das estrofes, na continuidade dos
amores, na des-continuidade das sensações, sentimentos e emoções.
Às re-versas e in-versas da sublim-itude, ensaiando intimamente a
música, que só o íntimo da alma sabe e conhece, de espíritos da vida
singularizando, entre-laçando os ideais e sonhos com as raízes da verdade,
cria-se, inventa-se o aforismo da leveza do sublime.
O tempo-boi me deixa vazio, acontecendo no acontecer que me criva de balas,
retalha a sabres; quero pontuar a alma dos pastos de meu regresso passado,
quero marcar boi-tempo, tenho de criar palavras para, na forma circunspecta,
en-si-{mesmada}, estilo e linguagem colocarem versos na prosa, prosa nos
versos, comungarem sentimentos e idéias em busca das verdades que me habitam a
alma, sentimento da “casquinha” de felicidade e alegrias passageiras,
“Antes o nada, depois o cosmos”, “O artista é a origem da obra e a obra,
origem do artista”
Manoel Ferreira Neto
(#RIODEJANEIRO#, 11 DE JUNHO DE 2017)
#O CAMINHO DO CAMPO#
Por Martin Heidegger
Do portão do Jardim do Castelo estende-se até as planícies úmidas do
Ehnried. Sobre o muro, as velhas tílias do Jardim acompanham-no com o olhar,
estenda ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço entre as sementeiras que
nascem e as campinas que despertam, ou desapareça, pelo Natal, atrás da
primeira colina, sob turbilhões de neve. Próximo da cruz do campo, dobra em
busca da floresta. Sauda, de passagem, à sua orla, o alto carvalho que abriga
um banco esquadrado na madeira crua.
Nele repousava, às vezes, este ou aquele texto dos grandes pensadores,
que um jovem desajeitado procurava decifrar. Quando os enigmas se acotovelavam
e nenhuma saída se anunciava, o caminho do campo oferecia boa ajuda:
silenciosamente acompanha nossos passos pela sinuosa vereda, através da
amplidão da terra agreste.
O pensamento sempre de novo às voltas com os mesmos textos ou com seus
próprios problemas, retorna à vereda que o caminho estira através da campina.
Sob os pés, ele permanece tão próximo daquele que pensa quanto do camponês que
de madrugada caminha para a ceifa.
Mais freqüente com o correr dos anos, o carvalho à beira do caminho leva
a lembrança aos jogos da infência e às primeiras escolhas. Quando, às vezes, no
coração da floresta tombava um carvalho sob os golpes do machado, meu pai logo
partia, atravessando a mataria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo
de madeira destinado à sua oficina. Era lá que trabalhava solícito e concentrado,
os intervalos de sua ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos, que,
uns e outros, mantêm relação própria com o tempo e a temporalidade.
Os meninos, porém, recortavam seus navios na casca do carvalho.
Equipados de banco para o remador e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach
ou no lago da escola. Nesses folguedos, as grandes travessias atingiam
facilmente seu termo e facilmente recobravam o porto. A dimensão de seu sonho
era protegida por um halo apenas discernível, pairando sobre todas as coisas. O
espaço aberto era-lhe limitado pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se passava
como se sua discreta solicitude velasse sobre todos os seres.
Essas travessias de brinquedo nada podiam saber das expedições em cujo
curso todas as margens ficam para trás. Entrementes, a consistência e o odor do
carvalho começavam a falar, já perceptivelmente, da lentidão e da constância
com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer
pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão
dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo que é
verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for
simultaneamente as duas coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado
pela proteção da terra que oculta e produz.
Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre
seguro de seu destino. O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele;
e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos campos, as
mesmas encostas da colina escoltam o caminho em cada estação, próximos dele com
proximidade sempre nova. Quer a cordilheira dos Alpes acima das florestas se
esbata no crepúsculo da tarde, quer de onde o caminho ondeia entre os outeiros
a cotovia da manhã se lance no céu de verão, que o vento leste sopre a
tempestade do lado em que jaz a aldeia natal da mãe, quer o lenhador carregue,
ao cair da noite, seu feixe de gravetos para a lareira, quer o carro da
colheita se arraste em direção ao celeiro oscilando pelos sulcos do caminho,
quer apanhem as crianças as primeiras primaveras na ourela do prado, quer
passeie a neblina ao longo do dia sua sombria massa sobre o vale, sempre e de
todos os lados fala, em torno do caminho do campo, o apelo do Mesmo.
O Simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os
homens inesperadamente, mas carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O
dom que dispensa está escondido na inaparência do que é sempre o Mesmo. As
coisas que amadurescem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em
sua plenitude dão o mundo. Como diz o velho mestre Eckhart, junto a quem
aprendemos a ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que Deus é
verdadeiramente Deus.
Todavia, o apelo do caminho do campo fala apenas enquanto homens
nascidos no ar que os cerca forem capazes de ouví-lo. São servos de sua origem,
não escravos do artifício. Em vão o homem através de planejamentos procura
instaurar uma ordenação no globo terrestre, se não for disponível ao apelo do
caminho do campo. O perigo ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua
linguagem. Em seu ouvido retumba o fragor das máquinas, que chega a tomar pela
voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o
Simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entendiados só vêem
monotonia a seu redor. O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa
esgotou-se.
O número dos que ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram,
diminui, não há dúvida, rapidamente. Esses poucos, porém, serão, em toda a
parte, os que permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo,
poderão sobreviver um dia às forças gigantescas da energia atômica, que o
cálculo e a sutileza do homem engendraram para com ela entravar sua própria obra.
O apelo do caminho do campo desperta um sentido que ama o espaço livre e
que, em momento oportuno, transfigura a própria aflição na serenidade
derradeira. Esta opõe-se à desordem do trabalho pelo trabalho: procurado apenas
por si, o trabalho promove aquilo que nadifica.
Do caminho do campo ergue-se, no ar variável com as estações, uma
serenidade que sabe, e cuja face parece muitas vezes melancólica. Esta gaia
ciência é uma sagesa sutil [1]. Ninguém a obtém sem que já a possua. Os que a
têm, receberam-na do caminho do campo. Em sua senda cruzam-se a tormenta do
inverno e o dia da messe, a irrupção turbulenta da primavera e o ocaso
tranqüilo do outono; a alegria da juventude e a sabedoria da maturidade nela
surpreendem-se mutuamente. Tudo porém se insere placidamente numa única
harmonia, cujo eco o caminho do campo em seu silêncio leva de um para outro
lado.
A serenidade que sabe é uma porta abrindo para o eterno. Seus batentes
giram nos gonzos que um hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da
existência.
Das baixas planícies do Ehnried, o caminho retorna ao Jardim do Castelo.
Galgando a última colina, sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega às
muralhas da cidade. Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia sobre
as coisas. Atrás do Castelo alteia-se a torre da Igreja de São Martinho.
Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas,
desfazendo-se no ar noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de
menino se aqueciam rudemente, treme sob o martelo das horas, cuja silhueta
jocosa e sombria ninguém esquece.
Após a última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até
aqueles que foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O
Simples torna-se ainda mais simples. O que é sempre o Mesmo desenraiza e
liberta. O apelo do caminho é agora bem claro. É a alma que fala? Fala o mundo?
Ou fala Deus?
Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira. A
renúncia dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar
uma distante Origem, onde a terra natal nos é devolvida.
Martin Heidegger
(11 DE JUNHO DE 2017)
(#RIO DE JANEIRO#, 11 DE JUNHO DE 2018)
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