#AFORISMO 917/ MONOTONIA EVOCADORA DA ETERNIDADE (Manoel Ferreira - 01 de maio de 2002) - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO



É muito mais agradável e lisonjeiro lutar-se por algo belo e ideal e saber-se ao mesmo tempo que não se conseguirá atingi-lo. Escalo o muro e sigo pelo meio das sepulturas. Mesmo no escuro posso distinguir a meus pés muitos ramos de flores, já murchas. Abaixo-me. As flores parecem-me frias e viscosas. Sinto a terra, por baixo delas, e arrepio-me a este horrível contato úmido e pegajoso. Recuo, cheio de repugnância.


Estou, pois, num lugar sobremodo conhecido e sabido, embora em completa escuridão, ao lado de uma sepultura invisível e recente. Mas o que me interessa isso: Nada tenho a fazer aqui. É como se os pedaços de barro, frios, sujos, pegajosos, se me aderissem à alma. Não, isto é demais!


Sem pensamentos, sem sensações, vou andando ao acaso. Chego a uma clareira, procuro, tateando, a paliçada da vedação, torno a perder-me, e sigo pelas sebes dos campos até descobrir uma saída.
Por fim, encontro a estrada principal. Tinha-me distraído durante a luta cega com o labirinto da noite. Agora, porém, devo tomar qualquer direção, enfim necessito chegar a algum lugar. Não sei sequer onde é que me encontro, mas é preciso dirigir-me para alguma parte. Continuo a andar, sempre a andar, não resolve o problema.
Estou parado na estrada, que me parece imensa nas densas trevas noturnas, e sem saber orientar-me. Dá-me isto uma impressão esquisita; o coração palpita-me e envolve-me; torno a perder-me, e sigo pelas sebes dos campos até descobrir uma saída. Nada resta a fazer senão sofrer o meu destino.
Os ideais serão algo que se possa atingir? Viverei para acabar com as tristezas, as dores, as angústias? Viverei para terminar com a morte? Não, vivo para receá-la, temê-la e também para amá-la e desejá-la, e justamente devido à morte é que a vida vez por outra mostra-se esplendorosa num breve e único instante.


Há uma janela iluminada. Distingo vozes e ao mesmo tempo o ranger de uma porta. Defronte da larga janela da sala de jantar, as cortinas estão corridas. Olhando de onde me encontro, observo que a porta fica entreaberta, deixando passar a luz suave e colorida do vestíbulo. Sigo rápido, sem fazer ruído, pelo passeio adiante e lanço um olhar investigador lá para dentro.
Examino com atenção meu quarto de dormir, elogio a cama e o criado-mudo, experimento sentar-me numa cadeira de uma das mesas, abrindo a gaveta e retirando de dentro dela uma espécie de pequeno cofre onde guardo algumas fotografias. Apanho alguns livros que estão empilhados no chão.


É preciso caminhar simplesmente como se estivesse passeando. Não é necessário esforço qualquer. A alma retorna a respirar, os olhos retornam a ver, às vezes desconfio veementemente que só necessito recolher o mundo disperso das imagens, a fim de adentrar-me, penetrar-me no mundo da imaginação, da fantasia, da quimera, e ser imortal. Não é este o objetivo a que aspira toda vida humana?


A vida fora difícil, complicada, infeliz e transtornada, conduzindo ao extermínio e ao pessimismo, fora dificultada pelo desígnio de todos, mas havia sido rica e esplendorosa; uma vida admirável até mesmo na miséria. E ainda que o resto dos caminhos do campo até o ocaso possa ser desfigurada, a essência desta vida fora notável, teve semblante e feição, não girara em torno de moedas, mas em torno de um sonho, de um ideal, de uma fantasia. Desde o instante de minha decadência re-torno a olhar a própria vida com olhos seguros e decisivos, em que volto a re-conhecer no infortúnio um destino e nas ruínas busco extrair todo o prazer sensível que seja possível obter dos sentidos que possuo.


Mais outra porta entreaberta. O quarto não tem luz. Está vazio. Mais adiante vejo o banheiro, de onde vem o cheiro de sabonete e um bafo morno. Com muitos cuidados, quase num ritual, dou volta à maçaneta e abro uma nesga da porta, que range levemente. Empurro mais um pouco, e mais ainda. O coração nem mais pulsa; é como se eu criasse à minha volta o silêncio e o esquecimento.


Julgo ouvir o ruído das vagas rebentando numa praia invisível, longas ondas indolentes e sombrias que rolam ao ritmo do destino, numa monotonia evocadora da eternidade. Este sussurrar constante do mar lento e triste apodera-se-me da vida, e eu aqui continuo de olhos abertos, contemplando as sombras ao redor. É como se estivesse recolhendo, do fundo mar de sombras, o cabo cintilante das recordações, a puxar uma corda que não tem fim, que nunca mais acaba, e eu preciso arrastar, retira-la, fosforescente, das profundidades ilimitadas da lembrança, até que, sem haver concluído a tarefa, a vencessem a lassidão, a dor e o esgotamento.


Talvez tenham surgido de muito longe, talvez da eternidade, e no entanto nada distingo. Mantenho-me absorto, mas consciente; consciente, porém, de quê?
Brota a fonte das imagens, profunda e excitante, e o coração me interrompe a cada instante, de entusiasmo e decepção, de tristeza também, ao pensar quão abundante fora o cenário de minha vida. Com que grandeza brilha a força da sabedoria, a vitalidade inspirada, a harmonia e o movimento.


Sou um homem com vocação para viver dentro de um elevado padrão, para esperar muito de mim mesmo e para realizar grandes feitos. Poderia Ter um belo futuro, ser marido de uma rainha, amante de uma personalidade, irmão de um gênio, pai de um herói.
Manoel Ferreira
(01 de maio de 2002)


(#RIODEJANEIRO#, 29 DE JUNHO DE 2018)



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