#AFORISMO 853/ FILOSOFIA DO VERBO DE SONHOS# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
A cena é de uma fazenda situada num vale, a treze quilômetros de
qualquer cidade, seja ela agradável de se viver, seja como a maioria, um
inferninho com todas as suas letras. Não é um vale muito grande, apenas três
quilômetros de extensão e dois quartos de quilômetro de largura. Sua principal
característica é que todas as famílias ali residentes formam uma comunidade
familiar, dessas que todos conhecemos e são mais ou menos interessantes. As
montanhas são montanhas reais, com aproximadamente dois a três mil pés de
altura, e a choupana é uma verdadeira choupana, não (como a de um autor de
imaginação fértil, que deseja ilustrá-la, ornamentá-la de poesia-pensante,
respirando fundo e escutando o velho e orgulhoso som do seu coração. Eu sou, eu
sou, eu sou) uma choupana com garagem para dois carros de passeio.
Deixemos que ela seja uma choupana azul, re-coberta de trepadeiras
floridas, assim escolhidas por ter uma sucessão de flores em suas paredes, que
se incrustam pelas janelas durante todos os meses da primavera, verão e outono
– começando pelas rosas de maio e terminando com jasmins de setembro. Façamos,
contudo, que não seja primavera, nem verão e nem outono – mas inverno, e do
mais severo e radical. Esse é um dos principais pontos na ciência da paz e da
tranquilidade, na filosofia do verbo de sonhos da volúpia e da liberdade. E
fico sobremaneira surpreso – atrás da surpresa não há senão a surpresa a
surpreender-se a si própria – ao ver as pessoas não se aperceberem disso e
considerarem motivo de exaltação e júbilo, de alegria e excitação, de
contentamento e exultação, quando o inverno se vai, ou, quando estiver se
aproximando, esperar que não seja tão severo, apenas um friozinho agradável
para despertar um sono mais tranquilo, eivado de a-nunciações de verdades
outras que ampliam a visão onírica do sonho, a alimentação mais saudável e
gostosa. Eu, ao revés disso, peço todos os anos que caia geada, tempestades que
os céus possam nos oferecer. Certamente, todos conhecem o inusitado prazer e
satisfação de uma lareira no inverno, velas às cinco horas da tarde,
acompanhadas de um chá com pães de queijo, quentes tapetes, uma bela mão para
servi-lo, janelas fechadas, as cortinas caindo em amplos drapeados sobre o
chão, enquanto o vento e a chuva estão enfurecidos lá fora...
A vida passada misturou-se-me com a futura – há uma conversa múltipla e
ambígua, e qualquer coisa indivisível que a atravessa em zigue-zague e é a
minha voz. E houve no meio do salão de fumo, na choupana, um ruído, onde, aos
meus ouvidos, acabara a partida de paciência (e, de repente, a vida fica muito
mais extensa, tão extensa que tudo atrás fica lendário. Lendário?! É um termo
estúpido).
Todos estes detalhes são de uma noite de inverno, numa choupana, numa
fazenda situada no vale, que deve ser familiar a todos quantos nasceram em
regiões altas. É evidente que muitas destas ternuras, delicadezas, como os
sorvetes tomados por uma criança, pedem uma temperatura muito baixa para serem
produzidas: existem frutas que não podem amadurecer sem uma tempestade. Até me
dou muito bem com a chuva, desde que chova a cântaros, pois alguma parte de
minha natureza faz com que eu tenha necessidade disso, do contrário sinto-me enfastiado,
uma ojeriza sem qualquer medida e peso, sinto-me enganado, tripudiado: já que
serei obrigado a gastar dinheiro no inverno, com carvão, velas e muitos outros
artigos que faltam até mesmo a um cavalheiro, quero pelo menos que seja um bom
inverno. Quero um inverno londrino para os meus bolsos, ou um russo, um
carioca, onde cada homem divide com o vento norte a propriedade de suas
orelhas. Em verdade, sou tão epicureu nessa questão que não consigo saborear
plenamente uma noite de inverno se já passou há muito a noite de São João – a
noite de São João é a mais longa do ano – e o tempo começa a degenerar a
caminho das aparências da primavera. Não, o inverno deveria estar separado, por
densas paredes de noites escuras, de toda luz e brilho do sol. Das últimas
semanas de setembro, precisamente a semana de 25 em diante, até o dia de Natal,
assim é a estação da alegria e da satisfação. Pois o chá, seja em que estação
for, apesar de ridicularizado por aqueles cuja sensibilidade é naturalmente
grosseira, ou se tornaram assim por beberem vinho e não serem sensíveis a um
estimulante tão refinado, será sempre a bebida do intelectual.
Não há qualquer necessidade de sentir-me confuso, perder a cabeça,
sentir-me solitário, aliás, sou homem feliz por esquecer as horas todas.
Acalmo-me, bebo um copo d´água, bebo-o lentamente, aprendo a respirar, a
dominar as emoções, a alumbrar as dimensões dos sentimentos. Sento-me por um
segundo, olho, ao redor, a serra das águias através da janela, expulso a
nostalgia, que já não tem direito algum de persistir, desfio as palavras, uma a
uma, semeio música entre elas. Com a terra à sola dos pés, eu, o rebelde que se
recusa a ser reduzido à condição de alienado, resolvo os problemas cotidianos
e, depois de tudo, contemplo, do alto, as serras, que conheço desde o chão até
os menores detalhes. Sento-me perto das estrelas e estendo os braços como se
pudesse tocá-las. Miro o céu, de um lado ao outro, de uma nuvem à outra, com o
olhar repleto de luz, o corpo relaxado, a cabeça leve. Salmodio preces que na
verdade são pedidos precisos, destinados a facilitar o acerto de uma desavença
ou a dispensar um pouco mais de felicidade ou riqueza a algum homem
necessitado. Aqui, ignoro a própria santidade que não evangeliza, sim proscreve
com os dez mandamentos da heresia. Minha felicidade é tão simples. Não sofro
muito com minha condição.
Posso imaginar uma choupana com janelas abertas para um campo a perder
de vista, um jardim florido, para um horizonte acolhedor, para casas onde a
felicidade seja constante, ou pelo menos haja a serenidade dos que sentem
orgulho de si mesmos, os que se ocupam em perseverar no melhor de si.
Paro de sonhar acordado. Jogo as palavras nas dobras de meu diário e
depois fecho. O papel fica impregnado do cheiro de incenso. Morte ao cheiro de
incenso, que queimo tanto nas festividades quanto nos funerais. A morte finge
enviar-me para bem longe dentro de mim mesmo, mas, se me faço vislumbrar
novamente os dias iluminados da vida, é para melhor poder cobrir-me de terra e
trevas.
Mas agora, para afastar-me das descrições longas demais, apresentarei um
pintor e lhe darei instruções para que acabe o quadro que comecei a pintar. Os
pintores não gostam de choupanas azuis, a não ser que estejam sobremaneira
gastas pelo passar do tempo; mas, como o leitor já sabe que estamos numa noite
de inverno, os serviços do pintor serão necessários para o interior da
choupana.
(**RIO DE JANEIRO**, 11 DE JUNHO DE 2017)
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