/**DESDÉM DE EGRÉGIAS PRÉ-FUNDAS - REVISADO**/ - Manoel Ferreira


Apaguei, não sem uma pontinha de remorso, aquela saudade de agora que amanhã que será "tempo ido", a lanterna de Diógenes. Quaisquer sociedades, quando ouvem sobre a lanterna de Diógenes, estremecem, tremelicam, pitizam.
Foi-me companheira inestimável por anos a fio, luz de meus caminhos, indicou-me inúmeras veredas em minhas buscas de indivíduos de brio, cidadãos não apenas de carne e ossos, pessoas de inteligência e sensibilidade, homens de condutas e posturas inestimáveis. Já andava à beira da incredulidade absoluta e divina, desiludido, frustrado, fracassado – selaria a saga de minha família, o fracasso; para sempre lembrado como filho do fracasso - jamais iria satisfazer os profundos desejos que me habitavam o espírito. Só agora encontrei um homem. Não é político, nem eclesiástico, nem advogado, nem delegado da Polícia Cívil, nem Diretor de Colégio, Reitor de Universidade, não pintou uma grande tela, não compôs música clássica, erudita, não escreveu obra-prima da literatura, não é filósofo, não divulgara a todos os ventos que os ângulos obtusos se encontram no infinito ou no inferno, os egrégios obtusos habitam o desdém das pré-fundas. Também não fundou academia ou república, não enfiou a mão nos cofres públicos e construiu mansão, não fez aliança com Mefistófeles para adquirir conhecimentos absolutos da verdade. O homem que encontrei não é nada disso.
Há uns quarenta e cinco anos, as personalidades da cultura, das artes, profissionais, jurídicos, eclesiásticos, cientistas, professores, eram idôneas em todos os níveis, imaculadas, chegava-se até a pensar que o mundo, pela primeira vez na história, fora habitado por deuses, os gregos da antiguidade teriam aprendido muito, não teriam de acreditar naqueles deuses corruptos, voluntariosos, autoritários, ditadores; a história seria outra, seria até o caso de in-verter: colocar os homens de há quase cinqüenta anos na época dos deuses gregos, estes em nossa modernidade, deixando os tempos rolarem: a raça humana, as artes, a política, as ciências teriam atingido a perfeição perfeita, com a vênia do pleonasmo vicioso, mas a ênfase se faz necessária, os homens não precisaríamos mais sonhar com o paraíso celestial, felicidade e paz absolutas, não precisaríamos arrancar as unhas dos dedos, os cabelos da cabeça, espremer os miolos, correr atrás dos prejuízos, pedir perdão a Deus por nossas culpas, pecados, brincar sozinhos para satisfazermos os desejos libidinosos, viveríamos o paraíso terrestre. Crimes hediondos, corrupções, furtos, estupros, pedofilia eram praticados pela ralé, marginais, loucos.
Tempo que eu, particularmente vivi, sempre ouvindo de meus pais que não andasse pelas periferias de nossa comunidade, evitasse colegas indisciplinados, moleques; então fui proibido mesmo de me sentar atrás ou do lado, na sala de aula, do maior marginal que tinha no grupo, Sérgio Benedito de Castro Macedo Oliveira..., ele e a família não valiam um vintém furado, “nem a terra vai aceitar o cadáver desta família nas suas entranhas, ela que aceita de tudo”, diziam alguns fregueses que consertavam suas bicicletas na oficina de minha família. Vivesse a minha vida, diziam meus pais, fosse aplicado, fosse exemplo, só a verdadeira cultura iria ser a lanterna de minha vida, convivesse com os colegas de famílias idôneas, Figueiredo, Souza, Balsamão, Gasbarrotos etc., etc. Sempre fui filho obediente, sempre primei minha vida à luz da cultura e dos bons princípios.
Tempos idos... Não vou cair no ridículo, colocando a minha estrela em cheque-mate, afirmando as personalidades de todos os âmbitos são hoje corruptos, safados, canalhas, são os lídimos representantes da suciedade, e o povo, marginais, bandidos, traficantes, assassinos do passado são hoje homens em quem se deve confiar, em que se deve acreditar, se deve votar para vereadores, prefeitos, vice-prefeitos: personalidades e marginais hoje são farinhas do mesmo saco. Há exceções: há personalidades mais honestas e dignas como há bandidos mais especializados, bem munidos de armas suntuosas, fazendo a polícia tremer, sujar nas calças de medo e pavor. Dizem as línguas de trapo que a polícia hoje anda de calça curta: qualquer coisinha corre para debaixo da calcinha da mamã. Uma coisa é indiscutível: até mesmo os sábios, intelectuais não me desmentiriam, se necessário assinariam documento a meu favor: os homens foram reduzidos à natureza humana, são apenas instintos reles, os jegues são mais dignos que eles. Que reviravolta! Meu Deus! Dizia o filósofo alemão Hegel que a história é circular, o que foi ontem, nas curvas e retas da estrada, nos aclives e declives das ruas e avenidas, será amanhã, vice-versa; se isto for mesmo verdade, não for mais algum despautério do absolutismo do filósofo, seremos outra vez perfeitos.
Dizia que, enfim, encontrei um homem, não mais preciso de lanterna para me mostrar e indicar as veredas por onde devo seguir em busca de idoneidades, de verdadeiras relações; vou poder morrer tranqüilo e sereno, não selarei a saga de minha família, o fracasso puro e absoluto. Que homem encontrei? Encontrei um mendigo, mas tal mendigo, a quem todos chamam Chico B..., não é exatamente mendigo, apesar de ser mendigo. Achei um verdadeiro homem. Ele não pede esmola para beber cachaça, para fumar, craque ou maconha; pede para comprar sua “quentinha” no almoço e jantar. Diz sempre, quando pede seu trocado: “É prá comê, moço”. Não há quem não enfie a mão no bolso da calça ou abra a carteira e tira uma moeda ou nota. Agradece. Conta o que já ganhou, corre para o restaurante do Pedrinho e compra a comida, D. Evarista ainda dá uma caprichada, dois pedaços de carne, um pouco mais de maionese, senta-se debaixo do leque da praça principal, come alegre e satisfeito da vida, gritando a plenos pulmões: “Deus!, sempre abençoa as pessoas”.
Não posso afirmar com categoria, foi-me dito que alguém, vendo-lhe pedir trocado para completar a quantia de seu almoço, cinqüenta centavos, um dos homens mais orgulhosos e prepotentes, metido a intelectual, de personalidade das mais importantes da cultura e das artes, o maior e mais grande de nossa história, praticou uma façanha das mais inéditas: apanhou o livro de um dos escritores famosos de nossa terra e escreveu de trás para frente – nossa comunidade não conhecerá outro, primeiro e último, para sempre citado nas escolas públicas, particulares, faculdades, nos manuais, na história, o gênio de nossa cultura -, parou, enfiou a mão no bolso traseiro esquerdo de sua calça de tergal, de figurino francês, tirou a carteira, abriu-a com todas as pompas de personalidade máxima, olhando de esguelha e soslaio, à cata de observadores, ser motivo de orgulho e palmas, empunhou uma nota de vinte reais. Nesse momento, passava o real grande escritor, a quem o prepotente, egrégio homem, não quer ver nem pintado de ovo de galinha caipirinha, prefere trocar dedos de prosa com o "O", Isto porque o grande escritor lhe deu o famoso "cerca lourenço", no jornal, denunciando o plágio do livro. Chico B... disse: “Brigado. O senhô é uma vergonha prá todos. Vô morrê de fomi, bota seu dinheiro no borso”. O homem quase caiu duro e fedendo, algumas pessoas assistiram à cena, saíram rindo, gargalhando: “Nem mendigo quer saber de esmola deste homem”. Mas ele, quem enfiou a mão no bolso, estava por real-izar seu maior sonho, a sede real e mesma da academia de artes e letras de nossa comunidade, tornar-se imortal e eterno. O mendigo que não entendia nada disso, nem sabia ler ou escrever o seu nome, só ouviu algumas pessoas dizerem pelas ruas, depois de lerem ou ouvirem dizer de uma matéria de Junqueira Neves sobre ele e a academia, o objetivo era mandar os talentos e dons aos quintos do inferno, serem os farsantes os lídimos representantes da cultura. Nem Chico B... aceitou.
Encontrei o verdadeiro homem!...



Manoel Ferreira Neto.
(14 de fevereiro de 2016)


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