SONHOS DE FELICIDADE E AMOR - Manoel Ferreira. (23 de março de 2010)


Re-colhemos e acolhemos este excerto de Sentimentos da esperança, terceiro volume das memórias de Antônio Nilzo Duarte “A felicidade é claramente comovente, sem poder esconder o meu sentimento interior, pois este prazer está voltado pelo estímulo que ainda sinto em conseqüência do amor e da felicidade que se agrupam no seio de nossa família”, Capítulo 6, Nossos Sonhos, página 93, para tentarmos aprofundar ainda mais na espiritualidade do autor e de sua obra.


Em verdade, neste excerto vislumbramos e con-templamos que em toda sua vida, não apenas a partir do encontro, da paixão, do amor acima de todas as coisas por sua amada e querida, foi um homem que sofreu muito em sua vida, com a perda de D. Neusa, mas conseguiu com os sentimentos de esperança que lhe habitam/habitaram, re-velam/re-velaram, tornam/tornaram mais nítidos e transparentes, com as letras memoriais, conseguiu ver o lado positivo de seu sofrimento. Como podemos imaginar uma pessoa vivendo no sofrimento apresentar-se ao mundo, aos seus leitores, como homem cheio de amor e felicidade? Perdeu a amada esposa, perda inestimável como em todas as obras ele nos mostra verdadeira e autenticamente, mas o seu amor era amplo, múltiplo, era também pelos filhos e netos, e com eles, neles, no seio deles sentiu não estava vazio o seu coração. D. Neusa deixou-lhe o maior tesouro da relação que mantiveram durante quase cinqüenta anos, eram os filhos e netos o prolongamento deles, os sonhos de felicidade e amor que lhes habitaram, desde que se conheceram, estavam em andamento, seguiriam a trajetória da vida em busca das realizações sensíveis. Antônio Nilzo Duarte seguiria com a família buscando eternizar os sonhos de felicidade e amor que construiu com a esposa. Não só isso, mas o prazer dele está voltado pelo estímulo – os filhos, os netos são os estímulos que sentira bem profundo na vida com a sua perda inestimável – que ainda sentia em conseqüência do amor e da felicidade no seio da família, tornou-se este estímulo, como lemos e sentimos na leitura de todas as obras, sua característica essencialmente espiritualista. Antônio Nilzo Duarte conseguiu sentir o pássaro das esperanças, que lhe acompanhou por toda a escritura de suas obras memorialísticas, cantando, e no louvor a Deus por lhe haver agraciado com amor verdadeiro de D. Neusa, de todos os seus filhos, conseguiu olhar a vida e o mundo a partir de sua sensibilidade espiritual, re-velada com os sentimentos de perda.


Mister é interrogarmos esta obra a fim de podermos in-vestigar e avaliar o que lhe habita a profundidade. Quais os sentimentos que habitam a esperança, tomando em consideração o título? Qual a esperança que habitam os sentimentos, lendo o título às avessas? Nas linhas da obra, Antônio Nilzo Duarte diz-nos dos sentimentos vividos, vivenciados ao longo dos quase cinqüenta anos de vivência com a esposa, com os filhos, a estrutura da obra são as memórias, e quais foram as esperanças que ambos regaram com os sentimentos de amor, carinho, ternura, compreensão e entendimento, que foram os desejos e vontades de se real-izarem espiritualmente, de educarem e espiritualizarem os filhos nos princípios da fé, da moral e da ética, da responsabilidade, de a família ser unida pelo amor e espiritualidade verdadeiros e eternos. Tais esperanças, ao longo de todas as lutas, preocupações, dificuldades, foram concretizadas, e isto se tornou o maior orgulho dos cônjuges, as alegrias e felicidades dos filhos. Nas entre-linhas da obra, com a perda da esposa, diz-nos ele sobre a esperança dos sentimentos de perda, tédio e angústia, desolação, medo que passaram a lhe habitar, que foram o leitmotiv de sua escritura memorialista. Os sentimentos da esperança, nutridos e regados no tempo das relações harmoniosas e felizes, amor, entrega, carinho, ternura, felicidades e alegrias eram o alicerce da família, com ele se real-izaram. Com a perda da esposa, estes sentimentos foram misturados a outros, “sentimentos de sim”, “sentimentos de não”, “pólo positivo” e “pólo negativo” habitando o mesmo ser, a mesma intimidade. A esperança que se revelou com a perda foi, através do mergulho em sua vida com a esposa, filhos e netos, em sua vida mesma, o encontro espiritual, a compreensão e conhecimento de si, da vida, o desejo de reunir estes dois pólos num só, unificar-lhes, e assim espiritualizando-se. Contingência e transcendência são as tensões latentes e manifestas no íntimo de Antônio Nilzo Duarte, são as tensões latentes e manifestas nas entrelinhas da obra. O desejo mais que explícito era unir-se a esposa, senti-la novamente em seus braços, poder beijá-la, acariciá-la, estarem juntos como sempre estiveram. Contingência, Antônio Nilzo Duarte, vivo; transcendência, a ausência física da esposa, a espiritualidade. O mergulho na vida lhe proporciona a unificação da contingência e da transcendência, une-se à esposa espiritualmente, tornam-se um na espiritualidade, como se tornaram um na vida. Com esta espiritualização, é que consegue reunir o pólo positivo e o negativo, feito e elaborado com conhecimento, sem a recusa de um em detrimento do outro. Encontrou assim a liberdade e a paz de que tanto carecia nos momentos de dor e sofrimento, encontrou outras esperanças na vida, encontrou outro amor em sua vida, Eliete, que lhe proporciona e proporcionou outros horizontes e uni-versos. Ele mesmo afirma: “Agradeço a Deus por amar duas mulheres, por ser amado por duas mulheres”. A esperança dos seus sentimentos de não foram a liberdade, a paz, a espiritualidade.
Um homem que consegue viver dimensões profundamente sensíveis e espirituais nestas circunstâncias, que vislumbra e con-templa a esperança no interior de si, em meio a todos os sofrimentos e dores, que se curou deles através de um mergulho na vida, na alma, no espírito, em todas as suas emoções sensíveis, não é um homem que deixou de sentir a ausência do ente amado, querido, senti-la-á por sempre, mas quem consegue ver o lado positivo das coisas, o lado mágico e esplendoroso da vida que foi construída de sonhos de felicidade e amor. Todos temos problemas, todos sofremos, todos sentimos dores, todos perdemos entes queridos e amados, existem aqueles que entram em pânico – em princípio, Antônio Nilzo Duarte sentiu um vazio inestimável na vida, tédio de tudo que o cercava – diante de uma situação como esta, enfrentou a ausência de D. Neusa, os tantos sentimentos de perda e ausência, com cor-agem, dignidade, honra, estimulado pela presença da esperança que sentiu em sua alma, espírito.


Essa situação dilacerante, vivida por ele, possui um caráter estrutural: penetra na estrutura de todos os seres, já que não a viveu sozinho, em seu interior apenas, registrou-a em obras, mostrou-as a nós os seus leitores, à família, aos amigos, de todas as iniciativas, de todas as instituições e no profundo do coração de cada pessoa que lê o seu memorial. Não existe um oásis reconciliado ou um jardim recluso de pura unidade e unificação. Tudo vem quebrado, melhor dizendo, nas obras tudo se mostra aos poucos, tudo se manifesta em miríades de sentimentos e emoções. Importava-lhe recomeçar e de novo re-colher as lembranças de todos os instantes e momentos ao lado de D. Neusa, dos filhos, dos netos, genros, noras, para refazer o tesouro precioso na busca incansável pela espiritualidade, espiritualidade-una, isto é, a Koinonia, a comunhão espiritual dele e da amada esposa, o aberto, fecundo, relacional.
O desafio que sentiu, desde que iniciara a escritura de suas memórias, residiu em fazer conviver presença espiritual e ausência contingente de forma criadora, isto é, a criação da espiritualidade que se encontrava latente desde o encontro dele e a esposa, a criação do amor, da felicidade que agruparam não só no seio dos cônjuges, mas no seio de toda a família. Como acumular energias de ambos os pólos, presença espiritual e ausência contingente, cosmo e caos, a fim de que pudesse realizar verdadeiramente a espiritualidade-una que foi o leitmotiv de toda a escritura, que nos mostra de forma simbólica:


Existe em mim um poder determinado: um dia ainda poder inclinar-me e, humildemente, colocar os meus lábios juntos aos seus, minha querida Neusa, para um beijo muito querido e, em sua face, as minhas mãos poderem acariciar-lhe com afeto e meiguice, como outrora. (Sentimentos da esperança, pág. 93)


Este excerto mostra-nos com transparência um pólo: o do amor, da união, da fé, da verdade, da esperança, da alegria e da luz. Assumir e reforçar o pólo positivo, com afeto e meiguice tocar com as mãos o rosto da esposa, beijar-lhe, beijo querido, não significa que tenha anulado o pólo negativo, as dores da ausência contingente, os sofrimentos. O próprio Jesus em seu Evangelho nos recorda que joio e trigo sempre estão misturados e não há como separá-los definitivamente. Se Antônio Nilzo Duarte houvesse tentado separar o amor, a felicidade vividas ao lado da esposa e filhos, as dores e sofrimentos, angústias, tédios, medos com a ausência dela, não teria conseguido que a esperança, a partir das memórias, originasse a espiritualidade. O que real-izou na obra, na vida mesma, foi distinguir com percuciência o trigo e o joio de sua vida amorosa, sensível, assim vivendo o projeto da vida que se orientou não apenas pelo trigo, mas também pelo joio, sem nunca perder de vista a presença angustiante e desoladora do joio.


Há uma convicção dos mestres espirituais e dos sábios de todas as culturas segundo a qual a paz entre as pessoas e os povos passa pela alma e pelo coração. A felicidade e o amor em Antônio Nilzo Duarte, em sua obra memorialística, passou pelas alegrias, felicidades, contentamentos, passou pelas dores e sofrimentos, pela esperança de liberdade, de espiritualidade, pelo seu coração cheio de amor, de carinho, de ternura, de meiguice.


Se alguém quiser estar bem com a vida, com os entes queridos, deve estar bem consigo mesmo, isto quer dizer que deverá mergulhar bem profundo em si, des-cobrir com autenticidade e verdade o que lhe habita, o que lhe vai dentro. Deve pacificar sua alma, encontrar sua centralidade e reunificar as tendências dis-persivas e destrutivas que conspiram contra a paz. Antônio Nilzo Duarte mergulhou profundo em si, conheceu a verdade da esperança em comunhão com o amor e felicidade sentidos, vividos, vivenciados no seio da esposa, de toda a família, conheceu as tendências dis-persivas e destrutivas com as dores da perda e da ausência de seu ente mais que amado e querido, reunificou-os, espiritualizou-os, libertando-se


Podemos real-izar esta tarefa sozinhos? Não! Os mesmos mestres testemunham que podemos fazer muito por nós mesmos e que somos responsáveis pelo que nos cabe. Mas ainda não é o suficiente. Diz Antônio Nilzo Duarte neste excerto que escolhemos para aprofundar mais em suas mensagens de espiritualidade nas entre-linhas de sua vida e obra: “... este prazer está voltado pelo estímulo que ainda sinto em conseqüência do amor e da felicidade que se agrupam no seio da nossa família”. A família então esteve sempre presente na sua esperança de espiritualidade, de liberdade, incentivando, sendo não apenas filhos, mas amigos solidários, compassivos, re-conhecendo-lhe e amando-o ainda mais. Por isso, devemos nos abrir de modo verdadeiro à Fonte primordial da vida, de onde emana toda a paz, Amor, Esperança, Fé. Se não bebermos desta Fonte através de nossos desejos e da busca incessante do Espírito da Vida, nossa paz poderá ser apenas uma trégua momentânea, mas jamais a paz almejada pelo nosso coração.


Santo Agostinho nos adverte continuamente: “Irrequieto estará meu coração enquanto não descansar em Ti, Senhor”. Irrequieto permaneceria o coração de Antônio Nilzo Duarte se não comungasse verdadeira e sensível o trigo e o joio de sua vida, não apenas a contingente eivada de felicidades e tristezas, de alegrias e angústias, mas a transcendente que é o Espírito da Vida. A paz nasce somente quando houver harmonia entre os pólos negativos e positivos, entre os sentimentos de não e de sim, entre as dores e sofrimentos e as esperanças de superação, de liberdade, de espiritualidade, entre a contingência e a transcendência.


A figura física desapareceu, mas ainda posso sentir o calor de seu corpo e uma grata sensação de seus lábios puros e delgados tocarem a minha face e, sobretudo, não ignorar que esse sentimento intuitivo que ainda se apodera de mim, infelizmente, já se encontra envolto na sombra de um passado sem volta, pelo sono eterno no qual encontra definitivamente definido (Sentimentos da esperança, página 94).


Antônio Nilzo Duarte de homem-desejo de liberdade, de espiritualidade através do amor à esposa, da esperança, fez-se homem-paz a partir de sua obra, como ele próprio compreendeu e entendeu:


... este amor que ainda me empolga e que me encanta está como antes, continua presente. Ele está marcado em um coração que pulsa cheio de fé e terá o suporte necessário para um desfecho grácil (Sentimentos da esperança, página 98).


(**RIO DE JANEIRO**, 14 DE SETEMBRO DE 2017)


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