#AFORISMO 177/A MISÉRIA TIROU-ME A SENSAÇÃO DE SARJETA# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO


Paro alguns instantes para respirar, apalpar-me, convocar as idéias dispersas, reaver-me alfim no meio de tantas sensações profundas e contra-dictórias. As profundidades com que con-sinto são as do mar e do abismo, quaisquer outras abomino de pés juntos, então idéias, pensamentos, sonhos, utopias profundos deixam-me com os nervos à flor da pele, nada dizem, nada expressam - o que a imaginação fértil não é capaz! Agora, no que tange às contra-dicções sinto-me por elas com eminência seduzido, vocifero impropérios ao mundo e à vida, amaria ser a contra-dicção plena, absoluta, e só vivo miríades dela.


Gasto duas mortais horas em vaguear pelas ruas mais excêntricas e desertas, onde seja difícil dar comigo. Vou mastigando o meu desespero por ser só meio contra-dictório, com uma espécie de gula mórbida, evoco os dias, as horas, os instantes de devaneio, delírio, e ora me comprazo em crer que sejam divinamente eternos, a própria eternidade se surpreende, que tudo isto é um pesadelo, ora tripudiando comigo próprio, procuro, tento rejeitá-los de mim como um fardo inútil.


Grande futuro! - digo-o a meia voz, sorrindo de escárnio. A língua é que tergi-versou o que a mente dizia, e ela dizia "Grande eternidade". A razão por haver agido de má fé não me é dada; minha mente é hilária, adora fazer os seus jogos comigo, creio sua intenção sine qua non seja mostrar-me o zero de minhas percepções das coisas, com isto superestima-se, vangloria-se. Grande futuro? O dia é entardecido, olho o horizonte misterioso e vago. Quiçá arqueólogo, literato, engenheiro civil, político(modo fácil de ficar bilionário sem quaisquer esforços), papa - papa que fosse -, uma vez que fosse uma ocupação de grande estilo, uma posição superior. Lá me iria às fadigas e às glórias; deixaria as donzelas com as calcinhas da primeira idade, e os donzelos com as ceroulas da juventude. Na universidade, era acadêmico vulgar, medíocre, petulante, dado às aventuras surrealistas, romantismo prático, liberalismo teórico. Prolongaria a universidade pela vida adiante...


A miséria me calejara a alma, tirou-me aquela sensação de sarjeta. Nada peço senão a cesta básica, os dois quilos de bisteca de porco, ainda tenho de esperar dois, três dias para receber os pedidos. Era domingo, esperava desde sexta-feira, estava com muita fome. Visitei um amigo, convidou-me a almoçar com a esposa. Comi tanto que passei mal, fiquei deitado no sofá da sala de visitas até melhorar. No outro dia, pela manhã, encheu-me a dispensa por duas semanas. Os pedidos só chegaram na quarta-feira. Até quando aquela miséria? Não me cuidasse, entraria em depressão profunda...


É noite... Acho-me recostado ao parapeito da ponte do córrego Santo Antônio a poucos metros de meu casebre... Pergunto-me a razão de não deixar tudo para trás e seguir uma estrada qualquer, continuar andando sem jamais interromper os passos, só parando à porta de casas para pedir restos de comida. Por sempre enchi os pulmões e gritei a coragem que me habitava. E sou um medroso. Eis a suprema contra-dicção que vivo a todo momento.


(**RIO DE JANEIRO**, 10 DE SETEMBRO DE 2017)


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