**DILAÇÕES IN-DEFINIDAS E DEFECTIVAS** - Manoel Ferreira



A brisa antes de todos os oceanos desliza-se em palavras a desejarem de si fluír sons eternos e solitários, nada mais posso esperar que sejam as palavras ouvidas sem talentos ou dons, sensibilidade ou subjetividade, apanho uma pedra no chão e, com as mãos em concha, distribuo os olhares em direções imensas do horizonte. Neste instante, que talvez esteja a servir-me eu para alguma coisa, que talvez esteja a fazer-me bem, (se não bem, pelo menos, mal espero que não faça!) deixe que a verdade me ilumine.

A beleza encontra-se suspensa.
A suspensão encantoa os instantes e momentos,
Borrifica os segundos e minutos,
Esboroa o deslizamento das horas.
Tempo acinzentado,
Submerso.

Músicas.
Fácil. Vejo-me andando por um jardim. Florido. Rosas, lírios, crisântemos, orquídeas brancas e lilases formam harmonia inverossímil.
Incrível a força para as evasões. Apanho o cachimbo – herança de meu bisavô. Dou umas puxadas. Não está sendo puxada a fumaça. Tiro do bolso uma caixinha redonda, cor-de-rosa, onde está colocado o tabaco. Ponho. Acendo o isqueiro. Abaixo, invertendo a posição da mão. Tento puxar. Entupido. Preciso arame para desentupir.

Beira de lagoa.
Água clara, sendo possível ver-lhe o fundo.
Pequenos peixes, dando continuidade à existência.
Apanho pedrinha, atirando-a na água,
A fim de ver-lhe o ricochet.
Peixes espavoridos, fugindo.
Ao lado, o orvalho da manhã sobre o capim.
Chilreado de pássaros. Nova imagem.
Luz, contra-luz, perspectivas, ângulos
Apesar de calma, há muito de sinistro e misterioso.

Como desvelar isto? Quase impossível. Ao longe, reses pastam. Calango sobe numa pedra. Coelho passa. O aspecto dos rastos. Braços para trás, olhando a natureza. Face sombria que a custo de esforço consigo tirar. Transborda ao frio exuberante. Outono. Último homem. Caminhada solitária. Prazeres. Solidão intensa.
Dilação indefinida – desde que tomei consciência desta expressão, tenho sobremodo pensado a respeito; talvez nem seja uma expressão e sim uma categoria – consiste em manter o processo permanentemente em uma das fases iniciais. Para conseguir tal coisa é preciso que o acusado e seu colaborador, embora, certamente, sobretudo este último, mantenham de modo ininterrupto um contato pessoal com a justiça. 
As horas acham-se encantoadas no mesmo sítio, inquietas e dilacerantes. Os minutos encontram-se presos no pêndulo, langues e entorpecidos. Os segundos estão parados nos ponteiros. É à tarde, quando o dia se vai penetrando no abismo do tempo, que a existência é monótona, quotidiana. Há uma ansiedade vã na noite, no céu sem luminosidade alguma. Até mesmo nesta solidão imensa, neste torpor sem limites, nesta leveza, cada ação e gesto revelam-me a mim próprio. Há um buraco no céu.  No contorno, nuvens escuras. No centro do buraco, uma enorme luminosidade branca.

Cada nota de música desperta algo:
Rugidos embrulhados em vaga imensa enraivecem a presença morta – o olhar avança nos trilhos, transcendendo idéias alucinadas. De quem sentimos o que é imprevisto se supõe. Encaramos o bem e o mal com o mesmo rosto.

O freio possesso abre dos rigores o sonho.
Por minúcias na distância,
Penetram na esperança faces túmidas do corpo oculto.
O dúplice machado corre
Sobre a singrada rocha,
Aspargindo nas duas fontes o gesto amável e sensível.
Cai entre silêncio perto e rumores ao longe, distantes, a tarde em mim. Vem uma voz como uma palavra menor, gota de água acabando de sair da mina. Logo se mistura a outras, e um pequeno córrego se forma... Não mais que um instante, as coisas vão tomando a feição de uma correnteza, para logo em seguida virar uma violenta cachoeira. Já não são palavras miúdas, meus gritos; caem dentro de mim. Forma um lago, quase não consigo ler em suas águas, turvas linhas, como se por toda a vida tivesse chovido na cabeceira do rio...

Interfere num sentimento:
Ao julgo do vento, os olhos cerram-se-me adormecidos, cobrindo de insultos a agonia dilatada, des-cobrindo de encômios a ansiedade paradoxalmente ampliada. Campos de sangue rompem, na maldita conjuntura, as dilações insondáveis. Mãos fixas revolvem os funerais gargânteos do fogo. Sensações amargas volteiam desejos de sombras irrefletidas nos gestos incertos, nas atitudes ambíguas, nos comportamentos devaneados. 
Não sei por que estou falando isto. É que foram tantas as vezes que fiz silêncio, ao escutar o grito do mundo, e hoje você, meu amigo, calou o mundo e eu pude, então, falar, esgoelar, colocar a boca no trombone. Às vezes, tudo que precisamos é que alguém nos empreste o coração e deixe nossas palavras tão guardadas, tão en-cofradas irem como uma cabeça se abrigar entre o peito e o ombro.. Suas palavras podem me levar para um lugar onde tudo começou? Há alguma palavra que eu deveria ouvir, generoso amigo?  Há outra linguística, semântica, estilística que devo criar para dedilhar as cordas dos sentimentos e emoções que se re-velam no coração?

Intervém numa emoção:
Serpentes devoram mortais expulsos
Desta terra maculada de deuses.
Por limites,
As águas apartam da morte olhos perspicazes
Não perturbados pela embriaguez.
Muitas vezes.
Muitas vezes quando a luz se apaga
Sobre minha insônia, pergunto-me
– fazia-o mais assiduamente –
com os ossos entre(dedos)
com a carne entre(dentes):
De onde vem esta indiferença?
De onde me vem este mal-estar
Que não me permite estar em lugar algum?
Quanto ao riso, o Filho de Deus ensinou-nos que há muito mais alegria em dar do que em receber. Não há outro caminho. Não há outro estilo ou forma. O passo é nessa direção...
Será que existe longe daqui uma outra humanidade vivendo histórias melhores? Não sei por que estou falando tanto e fugindo sempre... A verdade é que sofri a traição, e ela é o veneno que contaminou a água dos meus poços. Confiança perdida é como um espinho caminhando corpo adentro, sempre lembrando que está passando, não deixando olvidar o que se passou... Por que dói tanto assim ser traído? Existe perda maior do que a perda da confiança?  

Interdiz no espírito e na alma:
Nas tardes de verão, continuava a ficar sentado à amurada do alpendre, olhando o infinito – em que nada se encontrava nele, nem mesmo a minha imagem no futuro: um vazio pleno e absoluto – vendo os pedestres, e bem à tardinha um senhor com uma vara conduzindo as suas ovelhas. Às vezes, a máquina de trem de ferro passava. Fixava os olhos no vagão cheio de bois.  Era a alegria da garotada. Não era a minha, com efeito. A minha alegria tinha a medida exata de um novo livro. Terminada a leitura, acabava a alegria. O homem da casa em frente só chegava em casa bêbado. As prostitutas pulavam a linha. Passando à porta, indo ao Mercado Municipal fazer as suas pequenas compras. De vez em quando, passava uma mulher muito bem vestida, um homem de terno e gravata, mãos entrelaçadas, sorrindo, conversando tranquilamente. Havia de por trás da criança um quintal, um passeio, onde, sentada, olhando para o infinito, deparou-se com um enorme vazio. Mas estas nunca se confundiram com ele, nunca o preencheu. Com os olhos erguidos, procurava nalgum lugar um ponto não vazio. Todos sem exceção. No céu, somente nuvens.
A noite, estrelas.

Manoel Ferreira Neto.

(28 de agosto de 2016)

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