#O PROSCRITO DA PRAÇA BENEDITO VALADARES# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA ***


O espírito humano, à imitação da planta que floresce do modo mais esplendoroso entre os evangélicos e testemunhas de Jeová, não-conformistas e anticristos, muçulmanos, judeus, aliás, onde sempre floresceu, na sombra, como a violeta, embora com outro odor, deve seguir uma curva que o devolva ao seu ponto de partida, ao seu lugar de origem. No início, falo deste estado maravilhoso em que se encontram os divinos proscritos, onde o espírito se encontra, às vezes, lançado como que por uma dádiva especial; digo que estes mesmos divinos proscritos anseiam incessantemente a reanimação de suas esperanças e a sua elevação ao infinito; mostram um gosto frenético e alucinado, alucinógeno e desmiolado, psicodélico, qual Mercador de Corinto, com uma carroça de alfafa, muito embora em suas mentes e imaginações estas palavras suscitem quase o mesmo sentido, por todas as experiências prazerosas e sublimes, mesmo que perigosas, mesmo que em demasia ininteligíveis e portadoras de conseqüências as mais desastrosas, virtudes as mais escabrosas, dignidade e honras escalafobéticas; ao exaltarem suas personalidades, suscitam por instante ínfimo aos seus próprios olhos o paraíso de segunda mão, quinta categoria, objeto de todos os desejos, orgias, trafulhices, bandalheiras, ladrices e ladroeiras, e digo, enfim, que este espírito arrojado, trigueiro, levado e teimoso feito uma mula, sem o saber, até o inferno, confirma assim a sua celebridade original.

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Neste mar, neste mar tempestuoso do viver e do actuar, subo, desço, nado, mergulho, bronzeio-me ao sol, não repouso, vou e venho sem cessar neste mar. Morredoiras vidas, mortes renascidas em fogosas lidas, sem jamais parar... eis de que eu fabrico no imenso tear as roupas fulgentes que o rico mais rico, que o Ente dos Entes se digna trajar, camiseta e bermudão, sandália árabe, inda performando a "pinta".

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Creio não ser necessário e nem conveniente transformar o espetáculo em um comércio que visa apenas o lucro e o conforto, vender a alma para pagar as carícias embriagantes e a amizade das Parcas, solidariedade das sereias, compaixão de Pandora, piedade da Esfinge. Imagino um homem (um poeta, um filósofo cristão, teólogo árabe, pastor coreano, um anticristo, colocado no árduo Olimpo da espiritualidade, à sua volta as Musas de Rafael ou de Mantegna, as meretrizes de Fernando Cunha no banquete dos Vereadores, para consolá-lo de seus longos e invernosos jejuns e preces assíduas, observam-no com seus mais doces olhares e úmidos lábios, os sorrisos mais iluminados. O divino Apolo, mestre em tudo saber, afaga e acaricia com seu arco as cordas mais vibrantes. Abaixo dele, ao pé da montanha, nas sarças e na lama, a multidão dos humanos, o bando dos apátridas, a estirpe dos hereges, laia dos ateus, raça dos clérigos e pastores, simulam os esgares da alegria e do prazer e soltam urros provocados pelas dentadas do veneno.

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Entristecido com tamanho espetáculo de luzes e palavras, gestos e insinuações, digo-me: “Estes infortunados que não jejuaram, nem oraram, não ajoelharam diante da Medina, e que recusaram a redenção pelo trabalho, enfim o trabalho enobrece o homem, assim o dizem com orgulho e empáfia, afianço que Marx desataria na gargalhada, Sartre sério e circunspecto enfiaria a Crítica da Razão Dialéctica na sua mochila, e atravessaria o deserto do Saara, garante que o seu epitáfio seja por todo sempre iluminado pela luz solar, buscam submeter-se aos escárnios e humilhações de toda sorte como alguém se submete a um câncer, a uma aids, covids19, esta a mais inédita das doenças mundiais, a uma psicossomatização cujas dores se patenteiam nas costas, dores dilacerantes, morfina sendo tão simplesmente água com açúcar nas veias, inútil para saná-las, ou à morte, com aquele impávido fatalismo sem revolta, em virtude do qual os russos, por exemplo, ainda hoje têm vantagem sobre nós, os ocidentais, no trato com a vida, sabem tratá-la com esmero.

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Isto, como agora sou bem autêntico e ousado em afirmar, rebelde e insolente em destilar os ácidos inda não concretizados por falta de palavras que silenciam até o silêncio, é digno de um grande trágico, de um Eurípedes ou Sófocles: o qual, como todo artista, somente então chega ao cume de sua grandeza, ao ver a si próprio e à sua arte como abaixo de si – ao rir de si, havendo muito que o faz, aprende a realizá-lo, mas de quê? de si ou de nada? Ri de existir nada, ri de viver e pensar vazio.

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Em face da velha senha mentirosa do ressentimento e da mágoa, a do privilégio da maioria, enfim é mais fácil um proscrito adquirir o seu leito de penas macias, diante da vontade de rejeição, preconceito, discriminação, de atraso e ocaso do homem, ecoou forte, nítida, simples e insistente como nunca pensado e imaginado, a terrível e fascinante contra-senha do privilégio dos raros. Farfalhices e guizalhada a bobos, idiotas só pertencem.

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Eis, portanto, homens supostos, divinos proscritos, o espírito de minha escolha, chegado a esse grau de prazer e serenidade, onde sou levado a admirar-me solenemente, admiração que causa, senão inveja das mais célebres, os fatídicos aplausos. Toda contradição desaparece, toda polêmica se resolve com um aperto de mãos e três tapinhas nos ombros, como é sobremodo peculiar nos mineiros corvellanos, todos os problemas filosóficos e teológicos tornam-se transparentes, ou pelo menos assim parece, todas as rugas individuais ornamentando a face provocadas pela hipocrisia e sobretudo pela ausência de senso, cultura. Impérios ruíram ao longo dos tempos, por que, então, Corvello inda não sumiu do mapa, estão fazendo hora extra no mundo os habitantes deste covil. Tudo é motivo de prazer, de júbilo, de ostentação. Uma voz nele fala ("Infeliz... É a sua própria voz!") e lhe diz: “Você agora tem o direito de se considerar superior à raça humana, a toda a humanidade, agora que é um miserável proscrito, o que tem para comer é só por alguns dias, depois é sair pelas casas de conhecidos e filar a bóia ou pedir a alguém dinheiro para um prato feito no botequim do Marcinho; ninguém conhece ou poderia entender tudo o que você pensa e sente, poderia suspeitar de tudo o que sente até nos ossos. Seriam mesmo incapazes de apreciar a benevolência que lhe inspiram. Você é um rei que os passantes desconhecem, por nada ser, ser um estorvo para os nossos valores e princípios divinos, e que vive na solidão de sua convicção: mas que isto importa? Aliás, nada disso importa realmente. Você por acaso não possui este desprezo soberano que torna a alma tão humilde e boa, capaz de praticar as mais perfeitas misericórdias e compaixões?”

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De quantas ações tolas e imbecis não estão cheias o passado, que são verdadeiramente indignas deste rei do pensamento, sheik das idéias alvissareiras, tenente-coronel das atitudes diplomáticas, general dos gestos obtusos, professor de etiquetas no Liceu Corvello, o grande sábio, intelectual, e que profanam sua dignidade real e ideal. É só co’a inspiração própria, espontânea, que se domina a turba, o chocho, o inerte, como de seu não tem, mas quer pôr mesa, pilha aqui, sisa ali; mistura, assopra no seu fogareirinho um lumezito, e sai-se co’um pitéu de mistifório que só porcos ou cães o tragariam. Mas banquete que seduza, e convide, e preste aos homens, só dos miolos se pode guisá-lo. Quantos homens encontraríamos no mundo tão hábeis e perspicazes para se julgarem, tão severos para se condenarem, tão sérios para se redimirem dos equívocos, fracassos? Com a horrível lembrança absorta, dispersa, desta forma na contemplação de uma virtude ideal, de uma caridade ideal, de um gênio ideal, entrega-se candidamente à sua triunfante orgia espiritual.

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Agora, da contemplação de seus sonhos e desejos e de seus projetos de virtudes, decidiu-se pela sua aptidão prática à virtude; a energia ao mesmo tempo vigorosa, esplendorosa, resplendorosa, apaixonante com a qual ele abraça este fantasma de virtude parece-lhe prova mais do que cabível e suficiente, peremptória da energia viril necessária para a realização de seu espetáculo, de seu ideal, de sua carne de palhaço, de sua sede de brisas e orvalhos noctívagos. Confunde ele, com toda a empáfia de sua personalidade, o sonho com a ação, com a autenticidade, e com sua imaginação aquecendo-se mais e mais diante do espetáculo encantador de sua própria natureza corrigida e idealizada, substituindo por esta imagem fascinante de si próprio, divino proscrito, o seu indivíduo real, tão pobre em vontade, tão rico em vaidade, tão cretino em orgulhos, termina por decretar sua apoteose nestes termos nítidos e simples que contêm para ele todo um mundo de abomináveis prazeres e contentamentos: “Sou agora o mais virtuoso dos homens”

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Logo de imediato este furação de orgulho e empáfia se transforma em uma temperatura de êxtase tranquilo, calmo, mudo, repousado, e a universalidade dos seres se apresenta colorida e como que iluminada por uma aurora ácida e sulfurosa.

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Se uma ruminação selvagem, um grito rebelde, ardente, arrojar-se de seu peito com uma tal energia, um tal poder de projeção que, se as vontades, desejos, sonhos, e as crenças de um homem ébrio tivesse uma virtude eficaz, esta ruminação, este grito revirariam os anjos disseminados nos caminhos do céu: “Sou um Deus!” Qual é o filósofo francês que, para ridicularizar as modernas doutrinas alemãs, dizia: “Sou um deus que jantou mal”? Esta ironia, ou cinismo, ou sarcasmo não afligiria um espírito elevado em nível de um herege, marginal, ateu, proscrito, e ele responderia com todo o carinho e ternura que sua alma fosse capaz de expressar e revelar: “É possível que tenha jantado mal: suã de porco com aipim, couve refogada, farofa de bofe bovino não caíram bem no estômago, mas eu sou um Deus, embora as copadas de boldo cujo sabor é mefistofélico de tão ruim e nesta instância em nada amorteceu a consequência do mal-estar”.



#RIO DE JANEIRO(RJ), 20 DE AGOSTO DE 2020, 08:40 a.m.#

 

 

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