A CORAGEM MATA A VERTIGEM ANTE O ABISMO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: AFORISMO ***



Ah, destino e mar!... No mar, o destino é remar o barco rumo à imensidão, perder-se depois do encontro das águas e as nuvens. Reconheço o meu destino. Começo, agora, a última solidão. Remando o barco das lembranças de momentos estranhos, mas havia prazer em efetivá-los, as conseqüências seriam doídas, remando o barco de expectativas que se tornaram realidade, remando o barco de decisão patenteada à mercê das quimeras, prazeres sentidos.

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É preciso aprender a desviar os olhos do umbigo - de tanto olhar o umbigo, acaba-se entrando num abismo in-finito - para ver muitas coisas: tal dureza é necessária a todo caminhante do chapadão. Quem busca o conhecimento além do solo íngreme, árvores secas e mortas, ossos de animais mortos de fome e sede, com olhos impudentes, como poderia ver mais do que as razões exteriores das coisas? Quero olhar, observar a razão e o fundo de todas as coisas, devo ir para além de mim mesmo, de meu itinerário no chapadão, para o fim dele, até ter o vale esplendoroso diante dos olhos, olhar do vale para mim mesmo, é isto o que ainda me resta por atingir o último reduto.

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Eis-me diante da mais alta serra do vale, um abismo indescritível embaixo, e a mais longa de minhas peregrinações; mister descer mais fundo do que algum dia já desci. Mais fundo na dor, no sofrimento, nas angústias, nas náuseas, no nada, até dentro da mais negra vaga. Assim deseja o meu destino, assim quer a minha liberdade. Pois muito bem, estou pronto!

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Conto um enigma que vi - ou seria melhor dizer um enigma a que presenciei, a que fui presenciado? A visão do ser mais solitário. Pelas ruas, becos, alamedas, avenidas planas, no meio dos homens, sentia-me só e nauseado, os homens provocam náuseas, mas na alta serra, a visão do ser mais solitário sentiu de mim leveza inexpressível. Caminhava no lívido crepúsculo - sombrio e crispado, passando a ponta da língua nos lábios, mordendo-lhes.

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Há uma coisa em mim a que denomino "cor-agem", em verdade, "cor-agem implacável" E ela, até aquele momento, matou em mim todo o desânimo, todo o medo, toda a hesitação. Essa coragem mandou-me alfim parar e gritar: "Ou o mais fundo do que já desci ou sentado numa pedra olhando o panorama, a paisagem, o horizonte, as nuvens brancas e azuis. Não tenho estômago para estas cositas." A coragem mata a vertigem ante os abismos. O próprio ver não é ver abismos?

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Vejo que é escuridão no abismo. De que adianta lâmpada, lanterna no fundo do abismo? É escuridão, não é morte. Não é dor nem paz, é escuridão, é perfeitamente a escuridão. Minh´alma no fundo do abismo está comendo vida, está entupigaitada de vida, a vida escorre nas entranhas. Saber que ainda há florestas, bosques, abismos, sinos, palavras; que no alto do pico o catavento gira, o tempo não murchou.

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Existir: seja como for! Meu nome é "cor-agem", e escreve-se na amurada de pedra do abismo.



#RIO DE JANEIRO(RJ), 26 DE JANEIRO DE 2020, 23:33 p.m.#

 

 

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