**PREDISPOSTOS E EMBEVECIDOS REFLETEM REFUTANDO AMBÍGUOS PROVÉRBIOS MILENARES** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


“Até debaixo dágua sou homem”, “Até debaixo dágua honro os meus compromissos”, “Até debaixo dágua serei verdadeiro com a minha vida”, “Até debaixo dágua...” “Até debaixo dágua...” As águas já começam de reclamar, estão insatisfeitas, numa língua mais vulgar, estão mesmo putas da vida, e dizem: “Debaixo de mim não mais... Escolham outro lugar! Já estamos ficando desacreditadas, os olhares estão sim de soslaio para nós... Já perdemos a confiança de todos”. Óbvio. Vá ficar debaixo da água e honrar os compromissos, o fôlego não suporta tantos que foram assumidos. Vá ficar debaixo dágua e ser verdadeiro com a vida, a vida é longa demais, não se é possível ficar tanto tempo mergulhado nelas. Vá ficar debaixo dágua e ser homem, o fôlego acaba, os instintos pedem e reclamam outra coisa. Jamais ninguém cumpriu coisa alguma debaixo da água, pôs a cabeça de fora em poucos minutos.
Mas, para dizer com propriedade, todas as radicalidades à flor da pele, às vistas dos ossos, gritar a plenos pulmões, mostrar valores e virtudes, já que as águas não aceitam mais este dizer, outro teria de substituir-lhe, ocupar-lhe o lugar, e como o poder de criatividade dos homens é infinito, encontro outro dizer, e como ainda está no princípio, há quem acredite piamente, quem confie, quem entre no fogo, “Até dentro da sepultura sou homem”, “Até dentro da sepultura honro os meus compromissos”, “Até dentro da sepultura serei verdadeiro com a vida”, “Até dentro da sepultura... Até dentro da sepultura...” A sepultura é reservada aos cadáveres. Dentro da sepultura ser homem fica esquisito, digamos até sobremodo surrealista. Dentro da sepultura honrar os compromissos é um despautério, disparate, não é mais preciso honrar coisa alguma, se não honrou antes, morto não tem mais sentido algum, o compromisso da terra é que terá de ser honrado, isto é, tornar aquele cadáver em ossos e cinzas. Até dentro da sepultura ser verdadeiro com a vida é conversa para boi dormir, porque a vida não mais existe, nada mais existe, até ser verdadeiro com a morte é impossível, a verdade requer vida, espiritualidade, almidade, sensibilidade, cultura, intelecto. Embora todas estas questões contrárias e reais, a interpretação é que quem o diz está dis-posto a morrer por suas palavras ditas, por sua idoneidade de desejos e vontades impecáveis, tudo o que for possível e impossível será feito, os objetivos e pro-jetos serão cumpridos. Mesmo assim, este modo de dizer para mostrar a idoneidade de princípios, é estranho demais, só se é homem quando se está dis-posto a morrer por alguma coisa.
Se não tem palavra, encontrá-la nalgum lugar, seja no fundo do buraco, tendo de cavar com as unhas ilimitadamente, seja dentro da cisterna, tendo que jogar o balde, puxando com a corda, faz-se necessário, é imprescindível, pois não se é possível viver sem ela, nada se pode fazer sem a sua ec-sistência, é questão de honra e dignidade; não havendo onde procurar, resta inventá-la, sustentá-la, fazê-la prevalecer, custando o que custar, mesmo as vestes, ficando completamente nu, até poder resgatá-las, embora os comentários das línguas de trapo: “Está nu porque colocou suas vestes em nome da palavra assumida, fora o único modo de ser acreditado. Pode uma coisa deste calibre? Cada vez acredito mais que os homens só funcionam de cabeça para baixo”.
Diz o adágio, com efeito um dos mais sérios e radicais que conheço: “Pau que nasce torto, morre torto”. Quanto ao pau, a verdade é insofismável, morrerá torto, se nascer torto, porque Deus faria o milagre de endireitá-lo? Tanto faz torto ou endireitado para o fogão a lenha ou para as lareiras esquentarem o frio, dizem até que o fogo dos paus tortos são mais intensos, a chama é mais viva. Se o homem nasceu honesto das cinzas aos ossos, mesmo com todas as facilidades que encontrar pelos caminhos, com todas as chances que o mundo está oferecendo, os sistemas políticos, sociais, econômicos estão proporcionando, para não ser honesto, a desonestidade traz grandes lucros para os bolsos, prazeres e alegrias sem precedentes, bens os mais di-versos e di-versificados, ainda assim continuará sendo honesto até dentro da sepultura, servindo aos vermes igualmente, nada a mais para uns, nada a menos para outros, necessitam se alimentar para viver. Se o homem nasceu cretino até aos ossos e cinzas, conforme o adágio, morrera cretino, pode acontecer, contudo, que por força de vontade, por lutas sem limites, por um empurrãozinho de Nosso Senhor Jesus Cristo ou mesmo de Deus, a cretinice seja vencida, torne-se probo de inteligência e sensibilidade, intuição e percepção, aclamado e vangloriado por todos, inclusive pelos inimigos capitais e congênitos, quando se quer endireitar, endireita-se com primor, merece ser reconhecido e glorificado, isto é que é um grande exemplo.
Mas aos cretinos os privilégios são especiais, as oportunidades são divinas e perfeitas, as chances de sucesso e poder são inestimáveis, nem valendo a pena mudar as cartas do jogo; antes cretino divinizado e endeusado pelos interesseiros, adoram tudo que é de graça, especialmente a di-versão, nada mais agradável que rir e gargalhar à custa dos cretinos, faz um bem enorme aos neurônios e à bílis, do que probo na miséria total.
Nascera com três objetivos irreversíveis, dizendo a Deus com todas as palavras na ponta da língua em riste: “Pode me botar no mundo. Não honrarei apenas a minha palavra, também a cueca, não vou enfiar nela, só servirá para a glande não ter gastura com o contato do pano da calça, e as pernas da calça. Minhas missões na vida serão: descascar os pepinos, olhar de esguelha os brios empolados, rir às custas das virtudes absolutas. Não arredarei único pé, única palha disto, seguirei isto até ao bagaço da cana. O Senhor terá de me proteger e amparar, os homens não aceitam a verdade, conforme o que estou sabendo a respeito deles estão vivendo só de mentiras, aparências, empolações, cretinices e idiotices, isto sem incluir as hipocrisias, que seria até acabar vez por todas com a estirpe da raça humana. Melhor que eu sabe disso. Lá embaixo a coisa está mesmo de lascar, não é verdade, Senhor? Nascer para morrer, ser encontrado no mato com a boca cheia de formiga, não. Houve um que de tão canalha que fora, só depois de alguns dias é que lhe encontraram a cabeça, fora degolado. Fora enterrado sem a cabeça. Já pensou uma coisa deste calibre? Nossa senhora! Quem diz as verdades é o canalha supremo”. E Deus acreditou na minha promessa, botou-me no mundo. Sabe mais que eu de mim, continuará sabendo até a minha morte.
Por que vou descascar laranjas, batatas, vencedoras ou vencidas, cebolas, abóboras, se é o pepino a minha especialidade? Tenho de descascar-lhe, não deixando nesguíssima de verde, tenho de descascar-lhe até a medula. Por que vou brilhar os olhos de êxtase e volúpia, diante dos idôneos de caráter, se a esguelha do olhar é para os brios empolados, inclusive por Deus tendo sido doada a mim a miopia? Por que vou ficar sério frente às cretinices, se devo rir às sorrelfas de idílios compactos com as virtudes absolutas? Tenho de aperfeiçoar a esguelha das pupilas, os soslaios das retinas, tenho de olhar com os linces satíricos de minhas mazelas e pitis. Se o fizer, desonrando a palavra que dei a Deus, dela dependia a minha vida na terra, e eu já estava ficando um tanto entediado das verdades e purezas de tudo, irei para as pré-fundas do inferno, não é negócio, apesar de que o verdadeiro negócio é comprar galinha na fazenda e vender no mercado municipal, quero é voltar para o paraíso e desfrutar as suas delícias. De forma alguma. Ate dentro da sepultura vou cumprir a palavra dada a Deus, vou mostrar-lhe as minhas idoneidades eternas, não apenas no momento que desejava voltar para a terra, viver no mundo por algum tempo, como alguns fazem no instante do desejo irreversível, daquele desejo que faz doer caso não seja realizado.
Quando não tenho pepinos para descascar, corro atrás dos brios empolados, qualzinho cachorrinho de madames, com a língua para fora, saciem elas a minha sede de glórias com as verdades de escol. Se não há brios empolados, para olhar de esguelha, fecho os olhos e peço a Deus que me faça aparecer qualquer coisa, não posso ficar sem ver o que há, não posso deixar de tecer os meus comentários. Se não encontro virtudes absolutas, para rir e espernear-me, vou atrás dos ridículos, das imbecilidades, das idiotices, embora o comportamento real frente a elas seja de veneração, adoração, divinização, seja de modo sério e comportado, porque são as verdades eternas dos homens, são o que identifica os valores e virtudes.
Não sou maquiavélico, os fins justificam os meios, mas para honrar as cuecas e as pernas da calça é preciso dar duro, ralar pedra em dia de sol de lascar canos, aproveitar todos os momentos vagos e divagações das pré-fundas. E como quero, estou ansioso, voltar ao céu, orgulhoso de haver cumprido a palavra dada, as minhas atitudes no mundo e na vida serem as minhas testemunhas, almoçar frutos silvestres ao lado esquerdo de Deus, Jesus já está do Seu lado direito, conforme o Credo, no crepúsculo do seu lado direito contar-Lhe os “causos” do mundo, rirmos de chorar com as interessâncias da raça humana, não sou capaz de tudo, os meus limites são muitos e di-versos, as minhas incapacidades são inúmeras e inestimáveis – com todas as coisas faço minhas capacidades de vencer, de ser grande, não deixo qualquer oportunidade descer o rio de águas límpidas ou sujas abaixo, qualquer ser em vão. Não deixo coisa alguma passar em brancas nuvens. Preciso mesmo de fazer um murungu com todas as minhas missões, com as três que já afirmei com categoria, doadas gratuitamente por Deus, em nome de minha dignidade como um espírito insatisfeito com os prazeres e felicidades do paraíso, com as cretinices do homens no mundo, para que os objetivos todos sejam realizados com perfeição, e as realizações todas sejam divinas.
Esqueceu-me dizer a respeito de certo olhar com que Deus me observou, quando lhe dei a palavra que cumpriria a missão de descascar os pepinos, olhar de esguelha as virtudes empoladas, rir às custas das virtudes absolutas, que, aliás, deixara-me seriamente desconcertado e envergonhado, mas pude logo perceber com genialidade e alguns arrebiques da intelectualidade. Tinha que fazê-lo com humildade, com simplicidade, não me sentindo superior a ninguém, não me vangloriando, assim não iria conseguir nada com o descascar dos pepinos, ainda que nele, na sua superfície, não houvesse nesga de verde de sua casca, no fundo toda a casca estaria presente; ainda que olhasse de esguelha as virtudes empoladas, mostrando que utilidades elas trazem em si no frigir das claras e gemas sentido algum têm, ainda que risse às custas das virtudes absolutas, todos acreditariam que em verdade estaria engabelando a minha vontade de chorar, esgoelar, por não ser capaz suficiente de estas virtudes imaginar, criar, inventar, fantasiar, ser verdadeiramente um grande atoleimado para vivê-la, estaria mostrando apenas a minha inveja e despeito. Fosse humilde, simples, fosse probo de simulação e dissimulação, se pensasse que isto seria necessário, fosse idôneo nos termos de meus instintos, até fingisse nada observar, nada ver, um cego de querência e desejo, só assim poderia eu realizar as minhas missões no mundo, só assim a minha vida teria sido útil na terra, só assim a minha existência seria lembrada por todos os séculos, dos séculos, amém. Fosse um caipira gozador, não fosse um intelectual satírico – o caipira gozador ainda é suportável, ri-se muito dele, suas gozações tornam-me interessantíssimas, mas o intelectual satírico é intragável, tudo nele são juízos, são censuras, são discriminações, um pouco de todas as suas verdades está em suas mãos. Entendesse isso vez por todas, porque se não seguisse este menu de meus comportamentos, não seria perdoado no Juízo Final, sem dó nem piedade Ele me mandaria para o inferno. Para o inferno, não! A vida jamais foi fácil, são problemas de todos os calibres, são sofrimentos e dores atrozes, morrer e ir para o inferno é difícil de suportar.
Não fora nada fácil a conversa com Deus antes de me botar no mundo, não apenas por ter de assumir um compromisso, já que o meu espírito é em demasia livre, chegando quase às raias da libertinagem pura e singela, mas por ter de levar para a terra, para o mundo o menu de todos os meus comportamentos e atitudes – no fundo, queria mesmo era vir para a terra gozar de todas as coisas, sem luta, sem dificuldades, sem sofrimentos e dores, como fora no paraíso celestial -, de aqui procurar mudar tudo, transformar o meu espírito, a minha alma, quem era eu era o responsável por minhas insatisfações, tédios, angústias e dores, de minha in-aceitação tanto dos prazeres e delicias do paraíso, quanto dos sofrimentos e dores da existência.
Se tenho palavra, se honro com a vida o que digo, eis o que todos estariam me perguntando neste instante, curiosos e ansiosos por saberem, poderem avaliar e considerar, dizer que aceitam, que estão orgulhosos, que é de meu merecimento a vida, não acreditam, não podem aceitar alguém tão caspácio neste mundo, não podendo res-ponder de imediato, pelo sim, pelo não, seria necessário uma in-vestigação bem minuciosa, escarafunchar todos os vestígios que em mim ficaram ao longo de minhas andanças e perambulâncias neste mundo de todas as atitudes e ações, de todas as opiniões, pontos de vista, de toda a consciência, mas posso afirmar com categoria, não descasco os pepinos de ninguém, não olho de esguelha os brios empolados de ninguém, estou sempre com o olhar de lince voltado para a empolação da liberdade de meu espírito, não rio às custas das virtudes absolutas de ninguém, choro aos pesares de minhas canalhices eternas e imortais, e muitas vezes até censuro Deus por me haver botado neste mundo, comprometeu sua perfeição e dignidade, sua divinidade e espiritualidade. Não vim ao mundo, não pedi a Deus para vir, para acabar com a raça dos homens, colocar-lhes abaixo dos cães vira-latas, achincalhar-lhes até mais não poder, vale sim ressaltar, pedi para me botar no mundo, mas para satirizar todos os meus humores, todos os meus enganos e erros, todas as minhas idéias e pensamentos.
Mas até dentro da sepultura vou continuar tentando, vou continuar lutando, mesmo com todos os vermes a comerem os meus restos mortais, para fazer valer, prevalecer as minhas palavras, fazer ser real o que prometi, cumprir as minhas três missões neste mundo; se na vida não pude com dignidade fazê-lo, o que deixei feito será seguido por amigos, íntimos, companheiros, colegas, até pelos inimigos. A esperança é ainda a última que morre, a última que se torna ossos e cinzas.



(**RIO DE JANEIRO**, 30 DE DEZEMBRO DE 2016)


Comentários