**A NEGATIVIDADE DO ATÉ ENTÃO... EXISTIR!** - TÍTULO E ESCULTURA: Graça Fontis/AFORISMO: Manoel Ferreira


Eu, se pudesse saber alguma coisa, compunha um almanaque, gênero Ayer, anunciando as tempestades ou simples aguaceiros. Mas não sei nada, coisa nenhuma. A única coisa positiva é que a primavera começa em setembro e que a semana dos quatro domingos ainda não está anunciada. É verdade que, tendo um geólogo moderno calculado que a duração da terra vai a mais de um milhão de séculos, há tempo de esperar alguma coisa, ainda quando o milhão de séculos deva ter um grande desconto, para a nova vida, desde que se apague o Sol, isto é, daqui a dez milhões de anos.
O que me agrada particularmente nos mestres da astronomia são os algarismos. Como essa gente joga os milhões e bilhões! Para eles umas mil léguas representam pouco mais que da igreja da Penha à avenida da Saudade. E o tempo? Quem não tiver cabeça rija cai por força no chão; dá vertigens todo esse turbilhão de números inumeráveis.
Ainda não vi astrônomo que, metendo a mão no bolso, não trouxesse pegados aos dedos uns dez mil anos pelo menos. Como lhes devem parecer ridículas as nossas semanas! A própria moeda nacional, inventada para dar estímulo e grandeza à gente, os seiscentos, os oitocentos mil-réis, que tanto assombram o estrangeiro novato, para os astrônomos valem pouco mais que coisa nenhuma. Falem-lhes de milhões para cima.
Se eu tivesse vagar ou disposição, puxava os colarinhos à filosofia e diria naquele estilo próprio do assunto que esta deleitação a respeito dos trilhões astronômicos é um modo de consolar a brevidade dos dias e do nosso tamanho. Parece-me assim que nós os equus asinus e os homens é que inventamos os tempos e os espaços; e não somente as dimensões e os nomes. Uma vez que os inventamos, é que eles estão em nós.
Muita gente ficará confusa com o milhão de séculos de duração da Terra. Outras dirão que, se isto não é eterno, não vale a pena relinchar nem esculpir ou pintar. Lá, eterno como se costuma dizer, não é; mas aí uns dez séculos, ou mesmo cinco, é o que se pode chamar (com perdão da palavra, do relincho inconseqüente) um retalho da eternidade.
Há muitas causas para isso. Uma delas é justamente a falta de sentimento de posteridade. Ninguém trabalharia, em tais casos, para efeitos póstumos. Polêmica, vã; folhetos para distribuir, citar, criticar, é mais comum. Memórias pessoais para um futuro remo, é muito comprido. E quais sinceras? quais completas? quais trariam os retratos dos homens, as conversações, os acordos, as opiniões, os costumes íntimos, e o resto? Que era bom, era. Mas, se isto acaba antes de um milhão de séculos?
Comportamentos. Gestos. Atitudes. Ações. Constituem angústia por estarem sendo gratuitos, indecentes, imorais. Só a mudança deles não irá proporcionar a harmonia de que tanto necessita. Algo superficial. Harmonia, a união das manifestações sensíveis e emocionais com os desejos de construção. O mergulho deverá ser feito no emocional. Nele, é que toda a problemática está. Encontrar-se em quem é. Não tombará em colapso senão quando lhe fugir a consciência. Somente a morte fará surgir a água esmorecida e depenada. Tornar-se digno de estar existindo. Existir com dignidade. Antes, necessita de ter fé. Não acredita que em si existe outro Guido Neves, de ser possível o encontro de valores.
As flores, as lágrimas (quando contidas), as partidas e as lutas são para amanhã. No âmago do dia, quando o céu abre suas fontes de luz no espaço imenso e sonoro, todos os promontórios da costa se assemelham a uma frota que parte.
Extasiado em alguma abstração fascinante, de que não tem consciência. Erra pelas ruas e pela cidade em redor, fixando tudo e, contudo, sem nada ver. Fala raras vezes, quase não tem relações com os habitantes da terra; nem é pessoa para meditar; consome-se numa orgulhosa tensão de hostilidade, como o pólo negativo.



(*RIO DE JANEIRO*, 09 de dezembro de 2016)


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