**DO ASNO PENSANTE MISSIVA AO MAGISTRADO - II PARTE** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/AFORISMO: Manoel Ferreira Neto


"Os homens, os asnos que rimam são inúteis à sociedade." (INCITATUS DA FAZENDA DOS BOIS)



Terminando, lera tudo o que, com paciência e inteligência, desculpando-me o senhor-autoridade se as palavras rimam, como lhe é próprio, aliás, de todos os homens. Os homens, os asnos que rimam são inúteis à sociedade. Concordei com tudo o que conseguira traduzir, sentindo muito por não poder assinar, mas com último e lídimo relincho e levantar das pernas dianteiras compreendera o companheiro que devia colocar o nome que todos me dão: “Lúcifer Pernóstico”.
Não sou presunçoso algum, como escrevera e insinuara, julgando-me asno intelectual, o representante último e genuíno de responsabilidades e compromissos com todos os homens. Não o sou, senhor-autoridade. Na correspondência, está bem escrito que só tenho dons de relinchar e puxar carroça morro acima, morro abaixo.
Se isto lhe veio à mente, é que o senhor tomou em consideração estar sendo escrito por homem, advindo-lhe todos os ódios e raivas de mim, devido à linguagem, ao modo e estilo como traduzira ele o que lhe estava ditando através de relinchos e mostrações de dentes brancos, claro já faltando alguns devido às primaveras que vão bem longe. As palavras dele é que lhe fizeram assim analisar e concluir.
Não se julgue ofendido, ressentido, se lhe digo que é até mais fácil para o senhor-autoridade atribuir a responsabilidade ao dono, que é humano, do que a mim, equus asinus. Esta transferência é por demais comum, ninguém mais dá atenção a estas picuinhas: transferências são necessárias, conservam os princípios dignos.
Não tivera intenção alguma de lhe ofender, menosprezar, pedi-lhe unicamente que fosse o mais sério possível em mandar publicar certos prospectos que ofendem a dignidade e honra de alguns homens quem lutam por condições melhores e estilos de vida agradáveis para toda a nossa comunidade, respeitando a História que está sendo construída com o suor de suas testas, às vezes também com a contração das orelhas que no inverno os homens disputam de quem é a propriedade.
Recebo, ora, a correspondência, uma resposta a si enviei – desculpe-me esta construção, tendo-lhe já dito que sou muitíssimo ingênuo, asno mesmo em se tratando da língua erudita registrada nos manuais escolares. Creio que devesse dizer “uma resposta lhe enviada”, ao invés deste absurdo que estou dizendo, o que comprova com todas as letras que realmente a minha função é subir e descer ruas, desembestado, entregando as encomendas que são feitas ao meu dono.
A ironia do senhor quanto à espécie de varal com cenoura dependurada, a distância me impede de abocanhá-la, dizendo que por aí se compreende bem quem sou, “é inútil, jamais conseguirá esta façanha”. De novo, estas interpretações estão sendo feitas por homem. Em verdade, fora modo do dono se tornar conhecido, estratégia de mercado.
Senhor-autoridade, ouvira alguém quem todos da comunidade afirmam ser de conduta ilibadíssima dizer que lera alguns de seus processos defendidos no fórum, e os erros de Português eram tantos que dava preguiça corrigir na mente, enquanto lia, para, enfim, entender o que é defendido ou não. Sendo advogado, senhor-autoridade, não é comprometedor não saber escrever? Defendo a idéia de que os estudantes tivessem a Língua Portuguesa em todos os períodos da faculdade; em se tratando de Direito, a exigência deveria ser ainda maior.
Não retiro o que está escrito pelo companheiro. Está escrito, e o que está escrito não pode mais ser desconhecido, se o for hoje, amanhã inevitavelmente será lançado com todas as pompas e honras, até sei quando, quando já não mais restar nada de mim, jogado nalgum terreno baldio longe da comunidade para não incomodar os homens com o cheiro fétido de meu corpo, alimento os urubus, a minha inutilidade serviu de alimento às aves do céu. Senhor-autoridade, a bem do que é verdadeiro e espiritual, há muito, quem sabe desde a eternidade, sei que no terreno das almas nada há de baldio, se pode compreender a profundidade desta imagem. Fosse asno que tivesse obtido diplomas, quem sabe não pudesse sugerir-lhe leituras, indicando títulos e autores. Ninguém poderá negar o que está escrito. Adianto-lhe desde já que não nego qualquer palavra, qualquer idéia, ao contrário, endosso alegre e relinchante, se assim pode me compreender mais facilmente.
Tenho conhecimentos de homem quem escrevia no jornal críticas deslavadas a todas as condutas, posturas e atitudes da comunidade ateniense atéia; um dos editores-chefe, desejando que ele não tivesse espaço para escrever, sugeriu-lhe que diminuísse o tamanho da matéria, o leitor iria gostar ainda mais por ser pequena. Poderia ensinar-lhe a escrever suas matérias em jornal. Respondeu-lhe: “Aqui em Atenas Atéia não há quem me possa ensinar a escrever; ao contrário, sou eu quem lhes posso ensinar a garatujar alguma palavra. Questione alguns, pedindo-lhes seriedade no juízo: eles mesmos lhe responderão que se alguém tentar plagiar-me o destino certo e evidente será o perfeito ridículo; se ouvirem o pedido que lhes fizera, com certeza não irão negar, mesmo que isso denigra a imagem dos orgulhos ostentados”. Mesmo que ele não esteja mais publicando única letra nos tablóides, o que já publicara está aí por todo o sempre. Alguém sempre guarda bem escondido, com o tempo passa a ser documento valioso para pesquisadores, estando eles dispostos a pagar pequena fortuna pelo escrito.
Desculpe-me, senhor-autoridade, se lhe empato o tempo lendo o que o companheiro conseguiu traduzir sobre o pedido que lhe faço de cuidar com carinho e benevolência de nossa história, não deixando que seja adulterada por algumas facções e mesmo indivíduos em particular. Não se esqueça, senhor-autoridade, de que uma das coisas ditas por aquela autoridade assassinada fora simplesmente sobre alguns poucos que estão enchendo o bolso de dinheiro. Se digo que não sou asno pensante, grande pensador, é que qualquer ser humano poderia estar enviando esta correspondência, qualquer asno de todo imbecil diria com todas as letras, sem faltar uma sequer no devido lugar. Não é necessário ser inteligente, culto, intelectual para saber que as coisas aqui em nossa comunidade andam muito mal, estão verdadeiramente “pretas”. “Mas o que eu quero é lhe dizer/Que a coisa aqui está preta”, servindo de um dos versos de Chico Buarque de Hollanda em sua música Meu caro amigo. Ouço-a por vezes na emissora de rádio no ponto de carroça – ouço-a com o instinto atento e observador, há nela tantos ensinamentos, há coisas que nada modificaram desde a composição, época difícil na História de nossa nação.
Não estou interessado em tecer estas ou aquelas considerações peculiares de autoridades, mas, mesmo que, de um lado, o senhor-autoridade tenha escrito o nome das cidades que compõem o circuito, de eventos do circuito do diamante, de ouro; nas cidades que compõem este circuito, não há evento que esteja ligado diretamente ao diamante, isto fora o que desejei mesmo expressar. A questão é a diferença entre nós – o senhor-autoridade, homem, indivíduo, cidadão, eu, equus asinus. Interpretou a correspondência em nível de homem quem escrevera.
Pergunto-lhe: “Há alguma coisa com relação ao diamante nessas regiões que a comunidade não possa ter consciência?” Deixo-lhe a indagação: creio que deverá estar sempre olhando para aquelas páginas, tentando entender o que dizem, a fim de responder-me à altura, e jamais lhe será possível fazê-lo.
Contudo, senhor-autoridade, reafirmo os objetivos e responsabilidades com a nossa história. Não são só os homens quem, em verdade, sem a história, sem a memória, se tornam imbecis, idiotas, o nada; os equus asinus não poderão nem mesmo exercer a função que lhes cabe, utilizado desde tempos imemoriais como animal de tração e carga. Não há homens para os utilizar. Creio isto lhe ser de conhecimento.
Quem sabe terminando, pois que o dono já começa a ficar nervoso, tem hora marcada para entregar frete de areia que carrego na carroça, ameaçando-me com os olhares para não demorar com isto de estar ditando a um homem a correspondência-resposta. Permitiu, pois que não viu outro modo de contornar a situação. Poderia espancar-me até deixar-me quieto no chão que continuaria relinchando, mostrando os dentes brancos.
Desejo-lhe, senhor-autoridade, muitos empreendimentos e realizações sempre voltados para o bem-comum de todos os cidadãos, às Artes e Culturas. Lembrando-lhe que são os outros que nos fazem, e não me importa o que fazem de mim, sou eu quem me faço a partir do que fizeram de mim, e, portanto, se o senhor-autoridade é homem quem está interessado pelo conhecimento real de nossa história, condição sine qua non para o desenvolvimento e o progresso, não resta a ninguém alternativa outra senão a de reconhecer-lhe a importância.
A fim de que tenha a ciência de que estou muito bem informado das coisas que acontecem nessa comunidade, posso lhe dizer sobre acontecimento num bar entre o senhor e o autor das matérias críticas. Estava ele e a esposa comendo pizza, quando o senhor chegara e, de imediato, fora cumprimentar a sua mulher. Ela respondeu-lhe ao cumprimento, apertando-lhe a mão, dando sorriso. Quando fora fazer o mesmo com ele, não lhe estendera a mão, abaixara a cabeça. Não houve quem no referido restaurante que não olhasse a cena. Envergonhado, sentou-se de costa para ele, e poucas palavras trocou com a esposa, enquanto tomaram cerveja e o senhor ainda tomara uns três gins com gelo e limão. Imaginara, pensara, não me é dado isto definir ou conceituar, por estarem em lugar público, restaurante pequeno, numa cidade do interior se conhece todos, ele iria ser formal e diplomata. Ainda não se conscientizara de que ele não é deste feitio, o que pensa, sente, não tem medo do que pensa, do que sente. Se não fora cumprimentado por ele, a razão dizia respeito a quê? Disto não estou informado, mas ouvira dizer que andara comentando absurdos sobre a sua pessoa.
Não creio que se dirigirá a mim outra vez. Não é verdade que dissera à pessoa que fora à noite à minha casa, num carro de vidros escuros, que mantivesse toda a discrição, seria muito ridicularizado se a população soubesse que recebeu correspondência de asno, dando a resposta? Meu senhor é também analfabeto de pai, mãe e entretantos.
Gostaria de saber o que mesmo aconteceu em Roma. Se não me engano é “cavalo branco”. Lembrou-me haver ouvido “cavalo branco de César”, quanto ao nome do homem é que não estou certo. Quem sabe possa relembrar-me daqui a algum tempo, tendo passado por estas e aquelas situações que ajudem a memória a ser revelar nítida e transparente!... Não me reconheço e julgo gênio da memória, guardar tudo que ouvi por todos os anos que carrego fretes ruas abaixo, ruas acima, em porta de escolas, faculdades, lugares de ensinamentos de idéias importantes ao longo dos milênios de fomes seculares... Sendo História, a população saber que enviou correspondência-resposta ao asno Incitatus da Fazenda dos Bois será muito comprometedor.
Bem, senhor-autoridade, sem mais relinchos, felicidades hoje e sempre.



Incitatus da Fazenda dos Bois



(*RIO DE JANEIRO*, 13 DE DEZEMBRO DE 2016)


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