**LIMITES DO HOMEM PÓS APETITES/APTIDÕES AO SABOR DAS PALAVRAS - SUBSTRATO GREGORIANO** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/AFORISMO: Manoel Ferreira Neto


Vós, sei lá num momento de pleno conforto neste velho mundo sem porteiras, vedes apenas o corte preciso e sem titubeações na carne, a lâmina tira um bife com apenas um corte, podendo chegar a casa, temperar, fritar de acordo com os vossos gostos e apreciações, com ou sem cebolas - adora Guido Neves um bife muitíssimo acebolado, infelizmente hoje não pode ser um bife com muita gordura, outra quantidade de gordura na panela, pois foi tomado pelo colesterol, anda um tanto quanto alto, mas não a qualidade da lâmina, muito bem afiada com o afiador e a arte de afiar, qualidade esta que é o segredo do corte, e não a mão que também é precisa, sabe trabalhar, nem aonde chega a engenhosidade e a arte da lâmina e da mão, segredo este que ninguém tem a empáfia de assumir, pois seria entregar o ouro ao bandido, revelar os segredos da profissão, isto vós não vedes, o segredo da mão e da lâmina que cortam não só para os prazeres do paladar, mas da consciência e da sensibilidade.
Ah, perdoai-me, senhores, se faço muito de vossas inteligências e capacidades intelectuais, pois que estou a relacionar as letras com a lâmina da faca que corta a carne, e vós não tivestes nenhum ensinamento de vossos professores, são uns perfeitos ignaros, apesar de conhecedores de algumas características, e só isto, afinal, se a faca de um açougueiro deve cortar bem uma carne, servir ao freguês de acordo com os seus gostos, tirando os sebos e as gorduras, deixando as gorduras, isto depende do gosto e da apreciação de cada um, as palavras também são deste modo: deve servir à mesa, mostrar o seu gostinho e despertar os seus apetites, e é ele Guido Neves quem tenta fazê-lo nesta viagem pelo sertão mineiro, na carroça, até Juazeiro onde descansará e fará compras com a mulher, retornando a Fazenda dos Bois; também ele teve uma faca em mãos, destrinçou quartos de bois, tirou carne de pescoço, de cabeça, limpou ossos de alcatras, fez todo o serviço de um açougue. Cortar com a lâmina de uma faca é também uma arte, conheço alguns que começaram com as carnes, acabaram com os limites, e não é verdade, senhores, o limite de um açougueiro é o osso? O limite do homem são as cinzas, que, antes, foram ossos.
O que direis vós em resposta a estas palavras, à explicação ásnica de o limite do homem serem as cinzas, que, antes, foram ossos? Pensais que não as posso relinchar por além de ser impossível que penetre em vossos pensamentos e idéias, sentimentos e emoções, até mesmo o que vós não sabeis, e desejais tanto saber?
- Eis que percebemos que quereis vós o substrato vibrante do relincho repetido num canto gregoriano. Está ciente, consciente de que tudo o que sabe não pode relinchar, só sabe insinuar, e as insinuações nada mais são que falta de senso, pois que é um equus asinus.
Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de não poder descrevê-lo, creio que esteja me faltando disposição de o fazer neste momento. A eternidade não termina aqui, há outros caminhos infinitos a serem trilhados através de minha cachola instintiva que se tornou ainda mais sutil e sarcástica, e o que mesmo quis relinchar sobre o limite do homem serem as cinzas, que, antes, foram ossos, só o tempo irá dizer.
São as vossas estultices de ímpios e ineptos... Tantos sorrisos abafados, tantos suspiros, tantos desejos de verter lágrimas as mais agradecidas por palavras tão carinhosas, tão amigas, tão plenas de consideração e apreço, em primeiro lugar reconheço os vossos valores, e isto muito poucos o fazem, e sou eu que, enfim, tenho um certo conhecimento de emoções verdadeiras e puras, agradeceis a mim por, de início, uma consideração tão verdadeira quanto me referir às vossas estultices. Um termo muito pomposo, não, além de pomposo, um termo que desde toda a eternidade merece uma atenção maior, chega-se a dobrar a língua para o pronunciar, só um homem conhecedor dos sentidos e das atitudes humanas para se referir com tanto carinho às vossas estultices.
Não há de que, senhores!... Não vos poderia faltar com as finesses e delicadezas todas, ao contrário, é o meu desejo mais profundo de vos prestar todas as homenagens possíveis, até jurando que nalgum dia irei chorar, aquando me dirigir a um homem para lhe prestar um momento de carinho e apreço. Desejo sim que vos sintais homens realizados, confortáveis neste velho mundo, e achei que outra alternativa não teria em mãos senão em primeira instância vangloriar-vos as estultices todas. Mas à laia de uma verdadeira imagem dos pensamentos e das idéias, digo-vos que estais sobremodo equivocados com o sentido mesmo da palavra, não o tratamento que lhe dou, estais equivocados por ser ela uma bela palavra, outorga ao homem o seu prazer maior de apenas a pronunciar. Quem sabe, senhores, até possa eu sentir-me virtuoso por a felicidade do espírito basear-se nisto: em ser ungido pelas lágrimas diante dos encômios, das palavras difíceis de pronunciar, do conhecimento destas palavras, os sentidos e os significados, dos apreços e carinhos de todos os homens que, de algum modo, endossam as vossas idéias, desejam que vos torneis imortais com todos os feitos, não haja dúvida de que ireis assinar papéis em branco em benefício destes homens. Também a felicidade de vossos espíritos se baseia em serdes vítimas sagradas da condição humana.
Estais senhores equivocados com o sentido da palavra “estultice”. Se vos chamo de tolos, néscios, imbecis, já que antes de ser eu a esclarecer o sentido, fostes ao dicionário para consultar, e, infelizmente, não deixo de ser verdadeiro, ao invés de vos encomiar, estou a negligenciar-vos, denegrir-vos a imagem? Se assim vos chamo, não saberia precisar, mas o que bem sei é elevar o espírito ao cume das colinas e montanhas, tenho energias o suficiente para esta empresa. As fontes interiores do espírito, senhores, são frias, o frio trazido pelo vento de todas as lonjuras, passando por entre as montanhas, seguindo viagem ao infinito. Os ventos de todo o conhecimento profundo são frios, gelados ao extremo, penso que por isto no inverno os russos disputam a propriedade de suas próprias orelhas. E penso que por esta razão específica sou equus asinus que nasceu para o inverno, a primavera, por saber que os ventos de todo o conhecimento profundo são frios, há instantes em que sinto perpassar por minha coluna vertebral um frio intenso, quando digo para mim próprio: “O conhecimento deixou mais um passo e traço seu, sou eu agora a interpretar e tentar conciliar ao meu quotidiano, à minha vida, à eternidade e imortalidade”.



(**RIO DE JANEIRO**, 14 DE DEZEMBRO DE 2016)


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