#AFORISMO 922/ SERPENTES DEVORAM MORTAIS EXPULSOS DESTA TERRA MACULADA DE DEUSES# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto
Ao amor regressa um fora-da-lei.
Hipocrisia, ironia, cinismo, tudo suspenso na curvatura dos gestos, no
soslaio do olhar. Há um sítio de transparente branco e, nele, guarnece o gozo
das confissões, o vestuário discreto do olhar. Não compreende bem o que quer
revelar. Confessa que se sente exausto. Perde o fio dos pensamentos. Já não é
senhor de clareza do espírito. Nas vaidades pessoais, e mesmo impessoais.
Reconhecendo-lhe à face das crises esquálidas o som último das palavras.
Vergaram-se as lágrimas.
Andava pelas imediações de Serra das Águias, quando lá estava uma
senhora, por volta de seus sessenta e quatro anos, uma fisionomia estranha e
esquisita, enfileirando moedas de um real, havia umas quinze moedas
enfileiradas, outras tantas de um quarto de real, outras tantas de um décimo. Interrompeu
a sua caminhada por um instante, desejando aproximar-se, vendo como ela pegava
as moedas como o sustento de sua vida. Gritou-lhe logo, logo: “Vai embora. Vai
embora”. Afastou-se serenamente para não assustar a pobre e velha mendiga, não
era desejo, como entendera a atitude dela de lhe mandar embora, com medo de ele
tirar-lhe algumas moedas.
Murmúrios facelados, cruzados.
Dramas atormentaram-lhe. Que lhe direi? Assustadora a liberdade que se
desencadeia na posse falsa e medíocre do objeto de simulações, da propriedade
mesquinha e hipócrita do objeto de sublimações. Somente os ossos carnudos
andando por entre os homens. Cornos pontiagudos das relações familiares
desestruturadas, desequilibradas.
A nostalgia gasta o acumulado pecúlio. Obtusa convulsão chapinha no cais
abandonado a toda miséria o evocar longínquo do eterno, o evolar próximo dos
projetos do infinito.
A música, na qual o tema é absorvido pela forma de expressão e não pode
ser separado dela é um exemplo complexo – e uma flor ou uma criança é um
exemplo simples – do que está tentando dizer, mas o sofrimento é o exemplo
fundamental, tanto na arte quanto na vida.
Serpentes devoram mortais expulsos desta terra maculada de deuses.
Por limites, as águas apartam da morte olhos perspicazes não perturbados
pela angústia. Muitas vezes. Muita vez quando a luz se apaga sobre a sua
insônia, pergunta-se – fazia-o mais assiduamente – com os ossos entre(dedos):
de onde vem esta indiferença? De onde lhe vem este mal-estar que não lhe
permite estar em lugar algum? Deixa-se quieto a perguntar. Quieto e confortável
em presença de alguém? Costumava acordar no meio do sono, respondendo a
perguntas não se lembrar haver feito – sabe que, ás vezes, diz algo e não sabe
o que diz, minutos após, - ao menos articulado.
Por trás da alegria e do riso pode esconder-se um temperamento áspero,
grosseiro e insensível. Mas por trás do sofrimento, há sempre mais sofrimentos.
Diferente do prazer, a dor não usa máscara. A verdade na arte não é a
correspondência entre a forma e a imagem, não é o grito que ecoa no vale entre
as montanhas, nem o poço de águas prateadas que refletem a imagem da lua para a
lua, ou a imagem de narciso para narciso. A verdade? As esperanças originais da
filosofia não foram realizadas porque a metafísica, a mais elevada das
disciplinas filosóficas, não dá mostras de ser capaz de alcançar a meta de
conquistar a verdade. Mesmo um ponto de vista negando que ec-sista algo como a
verdade tem de ser apresentado como verdade. O verdadeiro sentimento, o que
re-colhe e a-colhe em seu íntimo, importava-se lá entender ou compreender, o
importante era vivê-lo, o exterior reflete o interior, tornando-se a expressão
do interior, a alma re-vestida de forma humana, o corpo e seus instintos unidos
ao espírito. Por esta razão, não há verdade que se compare ao sofrimento. Só
mesmo uma mulher quem sente demasiado ambíguo, contraditório, excêntrico o seu
corpo, a sua sensualidade não cabendo nele, por os desejos serem perplexos e
eclipsados, podia saber o que é sentir o corpo e seus instintos unidos ao
espírito. Há momentos sim em que lhe parece ser a única verdade não haver
verdade que se compare ao sofrimento - mas é verdade que o "espírito"
é o "pensamento consciente"? Assim, se o for, o espírito do
sofrimento é o pensamento consciente da experiência da dor.
Outras coisas podem ser ilusões dos olhos ou do apetite, feitas para
cegar um e saciar o outro, a visão do outro, mas é o sofrimento que tem
construído os mundos, há sempre dor no nascimento de uma criança ou de uma
estrela.
(#RIODEJANEIRO#, 01 DE JULHO DE 2018)
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