CORUJA DISTANTE DE LONGÍNQUOS BOSQUES GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA @@@@


A noite segue custando a passar. "Passar", o que é isto? Esvaeceram-se-me o sentido, significado.

@@@

Na poenta vereda do horizonte,

Vejo trilhas.

Ao longo das ampulhetas das horas e anos,

Um pé algures, outro alhures,

Olhos perspectivando não sei quê desconhecido

O Espírito Santo observava-me pensativo.

Adotava a escolha de remontar ao Reino Paradisíaco;

Dispunha eu apenas do tempo para me ofertar:

Mostrava-lhe as chagas de minha alma,

As lágrimas que embebiam meu peito.

Via-me por cima da cabeça

E suas observações passavam.

Fora aplacado pela profundidade das dores,

Sofrimentos residentes em mim?

Os cânticos mais desesperadores

São os que dão frutos mais deliciosos.

Mantinha conciliábulos com o Espírito Santo.

@@@

Microfone no ouvido, ouvindo músicas, melhor diria, sons, os dedos rápidos digitando dígitos que formam palavras - até nisto a gafe: só se digita em digitos, só se datilografa em teclas; pleonasmo vicioso! -, um corpo nu, sem quaisquer vestes, sentado na cama, curvado numa mesinha. Corpo: cabeça, tronco e membros, carne e ossos, veias e sangue, instintos - tão simplesmente.

@@@

Sussuram-me as líricas das rosas da existência,

Dos cânticos da vida,

Cânticos em dó, ré, mi, fá das carências, alegrias,

Que, às vezes, tantas lágrimas me custam,

Sensibilizado que fico com os sentimentos em fluxo

Revelam-se-me de amor pelos verbos

Desejo pronunciar com euforia,

Verbos do que me habita os recônditos inconscientes.

@@@

"Socorro!... Preciso de ajuda." Pelo que possa saber de mim, não era homem que dizia despautérios, era até muito sério. Tão sério que despertava desconfiança: a seriedade era sudário para esconder, envelar todas as mazelas, mauvaises-foi da vida. E agora tantos a perderem de vista. "Socorro!... Preciso de ajuda." O que é isto de "socorro", "ajuda"?

A alma dói inteira em todos os níveis. Alma doer? Se o vazio é na alma, como pode doer? Posso até crer com o vazio na alma. Embora assim, isto é inconcebível. Vazio, a alma esvaeceu-se, escafedeu-se.

@@@

Quê idiotice a minha gritar pedindo ajuda, socorro! Ninguém me ouve, todos estão dormindo. Até Deus está tirando a soneca, sonhando com o tempo de sua criação, quando criou o mundo, a terra, as espécies, o homem, sentindo-se Perfeito, com o Filho que morreu na cruz, sentindo-se Desgraçado. No sono, o Perfeito Desgraçado. E na vigília? - eis a questão. Mesmo que Ele estivesse acordado, não me daria qualquer ajuda, não me socorreria. Não ajudou o Filho na cruz, a quem vai ajudar? Sou por mim no mundo. Procuro saída para os problemas ou sigo na penúria deles. Com uma palavrita só, desabei o mundo inteiro na minha cabeça.

@@@

O que é o hábito das palavras!... Simples, trivial. Escreve-se. Escrevo e não tenho noção do sentido e significado do que escrevo, meras palavras registradas na página. Chamo de palavras: será isto mesmo? Talvez amanhã desmonte este escrito por inteiro e compreenda o que nele há, o que lhe habita. Só mesmo desmontando-lhe para sabê-lo.

@@@

O mundo estilhaçou-se. Agora sou eu no vazio, no nada. É-me sabido ser noite porque, quando pronunciei a palavra, o quintal de meu casebre estava escuro. Guardei esta imagem para não me sucumbir de todo, por inteiro. Pronunciada, mergulhei fundo na alma à busca de seu regaço, onde repousar, onde descansar. Quê alma?!... Quê regaço?!... Nada encontrei. Havia coisa alguma naquele espaço. Só uma imensidão vazia, não iria ficar perambulando à revelia, à toa. Perambular na "imensidão vazia": quê coisa mais estapafúrdia! Retornei à superfície. Retornei ou fui retornado de lá? Não retornei, não fui retornado. Onde a consciência de "retornar", "ser retornado."? Nada, simplesmente nada.

@@@

Despronunciar a palavra, voltar ao que era antes. Aqui não existe aquilo de "Devo, logo posso". Devo des-pronunciá-la, posso fazê-lo. Não me são dadas esta atitude, esta ação. Razão prática? Quê isso!... "Devo, logo posso" é dimensão da moral. Moral do Vazio? Ah, ah, ah... Está pronunciada. Ai... Antes não o tivesse feito. Não pensei que poderia doer, a dor em mim por sempre, mesmo que o tempo a trans-literalizasse, trans-elevasse-a, trans-cendesse-a.. Estará presente em mim, a memória estará a mostrar-me todas as coisas acontecidas, antes, durante, depois da palavrita pronunciada: "Adeus".

@@@

A noite segue custando a passar. Interessante isto: o mundo estilhaçou-se, não me estilhacei. Meu Deus, quê série de nonsenses, despautérios! Estilhacei-me sim: o que resta do que fui, do que de mim fui, o que me fora? Sigo vivendo no vazio, no nada. Estou aqui sentado na cama, escrevendo - quem sabe seja para passar o tempo, alfim o tempo existe sem o mundo, o mundo existe sem o tempo, mundo e tempo não existem. Quem sabe seja para deixar a dor registrada no espaço virtual, retirá-la de mim. Putz! Isto é a pior de todas as fantasias: pensar que escrever esvazia - nada disso, encho-me mais de coisas, as lembranças e recordações surgem inteiras na mente. Ainda mais que há um paradoxo, ou melhor, nonsense: como é que se esvazia o vazio? O mesmo que esvaziar um copo vazio? Quebrá-lo não é esvaziá-lo. Como podem surgir lembranças e recordações inteiras na mente, se estou vazio? Talvez por não ser o vazio, não ser vazio. Estou vazio. Nada compreendo, nada entendo. Esvaeceram-se-me a compreensão, o entendimento.

@@@

Não me lembra bem se fora angolano ou africano quem me dissera que a coruja é ave desagradável. E não é que ela canta ininterruptamente. Não sei onde é que ela se encontra; soubesse, sairia de cueca correndo pelo deserto das ruas e esganaria essa ave ridícula: "Isto é para aprender a não cantar dentro do meu vazio". Os inocentes sempre pagam pelos culpados. Sou o culpado de o mundo estilhaçar-se na minha cabeça e é a coruja que paga a conta. Não tenho superego! Por que me sentir culpado? Isso é que é. Restaria apenas um sorriso daqueles bem "es-mareliçados", sair à francesa de tanta vergonha. "Pare de cantar, corja maldita!"

@@@

Só me resta tomar um litro de suco de maracujá e dormir. Se houver alvorecer, talvez a dor da palavrita pronunciada haja desaparecido. Não vou des-pronunciá-la. Fora pronunciada definitivamente. Não há retorno.

Quiçá, sente eu à soleira de meu casebre, passando o dia a olhar para o vazio, o nada, o mundo está estilhaçado!

@@@

Adeus, amiga da madrugada! Fique aí no seu mundo, fico eu aqui no vazio e nada de mim.

RIO DE JANEIRO(RJ), 25 DE MARÇO DE 2021, 13:35 a.m.

 

 


Comentários