**OLHO DE CACHORRO** - Manoel Ferreira


Só quem já viveu na carne e nos ossos a angústia nos seus limites últimos sabe o que é capaz de fazer ao homem.
Em abril de 1980, quinto semestre do curso de Letras, mais que acometido das crises de angústia, estava descendo para casa, saindo da universidade, morava nesta época no bairro Dom Cabral, perto da universidade, tinha no outro dia prova de Teoria da Literatura II. No caminho, numa alameda, dois lances de escada. Eram mais ou menos cinco e meia da tarde. Sentei-me no primeiro lance da escada e fiquei olhando o horizonte. Junto com a angústia um enorme vazio. Depois de algum tempo, levantei-me determinado a escrever um romance intitulado O VAZIO, inspirado n´A Náusea, de Sartre. Fui direto para um botequim no bairro, próximo à pensão em que morava, frente a uma pracinha. Tirei o caderninho de anotações e comecei a escrever o romance, numa mesa na calçada.
Alguns meses depois, em pleno processo da confecção do romance, num domingo, estava subindo a avenida João Pinheiro, em direção à Praça da Liberdade, Feira Hippie. Acometido da companheira de todas as horas a angústia. Um cachorro havia acabado de ser acidentado, o carro passou em cima da sua cabeça. Os bagos dos olhos estavam à soleira da calçada. Curvei-me, peguei um olho e na palma da mão fiquei balançando. A crise de angústia aumentando. Levei o olho à boca. Movimentei-o de um lado para o outro dentro da boca. Mastiguei e cuspi a película, engoli o líquido. Continuei a caminhada, passando a língua nos lábios.
Deu um capítulo de meu romance O VAZIO. Tempo depois Paulo Ursine e eu fomos à casa de um ator de teatro, colega nosso da faculdade, Toninho. Levei o caderno do capítulo do olho do cachorro. Tomando um bom vinho e comendo carne frita, decidi ler o capítulo. Antônio teve uma crise daquelas, suando frio, com a leitura do texto. Tivemos Paulo Ursine e eu de levar Antônio para o banheiro e lhe dar um banho de água fria para ele melhorar da crise de vazio que sentiu.
Antônio morava sozinho num apartamento na Avenida Augusto de Lima. Passamos a noite com ele no apartamento com medo de ele ter outra crise de vazio e não ter ninguém para socorrer.
No outro dia, pela manhã, na mesa de café, disse-me:
- Este capítulo de seu romance merece ser levado para o teatro. Manoel, senti a sua angústia, comendo o olho do cachorro.



Manoel Ferreira Neto.


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