IT AIN´T JESUS/WOULD NEVER FORGET/WHAT YOU DO - (BOB DYLAN – MASTERS OF WAR) - Manoel Ferreira


Incertas palavras... Inquietas letras... Espalhando-se pelas linhas da página, preenchendo espaços, ocupando margens de lacunas, e os séculos e milênios não serão suficientes para interpretá-las, serão por sempre mistério indevassável.
Mas, de tudo bastam a ilusão, a fantasia, as utopias simples, a simplicidade das utopias, as quimeras e volúpias de que nada é por acaso, nada é por coincidência, nada é por nada, que viver faz sentido, que viver tem seus valores, que viver é uma dádiva, é uma luz que incide nas trevas do mundo, são raios de sol que incidem nas amuradas dos lares em festas de re-nascimentos e fal-ecimentos, que o dia é um só, outro não lhe será semelhante nem de longe, a léguas e milhas de distância, outro não lhe ombreará, e que o segundo que está chegando, os minutos e horas futuros não preencherá os vazios, faltas e ausências, o amanhã é incerto, o futuro é duvidoso, a morte é única e não por acaso... As pessoas nascem... As pessoas sofrem e sentem dores... As pessoas crescem e amadurecem. As pessoas morrem... Vivem interligadas a sonhos muitas vezes em vão ou não, algemadas a utopias muitas vezes à toa ou não, acorrentadas a medos e temores muitas vezes sem sentidos e aleatórios ou não, presas a conflitos e traumas os mais di-versos ou não... buscam-se a todo tempo, buscam a felicidade a todo momento, buscam a alegria, desejam o ser, desejam a paz e o amor, desejam a perfeição e a sublimidade, querem a travessia do efêmero ao eterno, querem o perdão de suas culpas e pecadilhos, querem o paraíso celestial, querem o orvalho da noite a molhar seus cabelos, querem os raios de sol a iluminarem seus caminhos do campo, querem-se, desejam-se. Umas tentam encontrá-los no poder, outras na paixão, outras na hipocrisia e farsas, outras nas condutas e posturas espúrias, outras na violência e libertinagem, outras nem sabem se existe, ou não querem saber se existe...
Busco na solidão com que me deparo nesta manhã de após chuva noite inteira, no silêncio que se me a-nunciou desde que abri os olhos, meus sentimentos distantes, emoções à soleira da eternidade, pensamentos e idéias perdidos em não sei que sendas, intuições e percepções em estado de expectativa, alma e espírito dispersos na imensidão dos infinitos horizontes do mundo, mas tão perto que posso senti-los vivos e presentes, posso senti-los pujantes, posso sentir-lhes os êxtases e volúpias, vagam nas linhas curvas de letras e frases curtas que não tenho qualquer pejo ou medo de mostrar, id-“ent”-ificar, a-nunciar e re-velar, e mesmo que houvesse relutâncias não saberia como evitar a presença – como existir pejo ou medo em incertas palavras, inquietas letras, se antes não existissem em mim, se antes não fossem re-presentações do que em mim habita profundamente, não fossem símbolos de desejos e vontades, não fossem signos de esperanças e fé, não fossem metáforas dos sonhos e querências, não fossem estilo e linguagem do outro atrás do meu eu? Isto é perfeitamente impossível, isto é totalmente irrealizável. O peito procura abrigo com o coração dilacerado num só pulsar que troveja e me transpassa os nervos.
Sim, sei bem, embora isto me deixe mesmo angustiado e entristecido, desesperado e desconsolado, deixe-me com o peito confrangido, nada posso fazer que modifique ou trans-forme, que tergi-verse as perspectivas e ângulos, que nunca serei alguém, todos os sonhos e fantasias que tive em nada resultaram, esforços e lutas empreendidos em nada deram, a nada me levaram, para nada contribuíram no amadurecimento através das experiências e vivências, esvaeci-me no tempo e espaço, vaguei entre as nuvens brancas e azuis, perambulei por entre as estrelas distantes da lua, divaguei pelos infinitos espaços, dancei no ritmo e melodia do silêncio e solidão, re-criando “blues” e “jazz”, rebolei de ansiedade no deserto de minhas frustrações e fracassos. Sei de sobra que nunca escreverei uma obra cujos valores transcendam os tempos, seja objeto de inspiração e reflexão para a vida, e nada é capaz de explicar-me o porquê de minha insistência, de ainda ter esperança de a inspiração se revelar viva e presente, podendo, assim, concretizar esse desejo – não é que a esperança seja a última que morre? não é que antes tarde do que jamais? É continuar trilhando as veredas em busca das palavras incisivas e das letras definitivas, nalgum tempo alhures será re-velada, hora e vez são reais, hora e vez são na verdade do tempo, hora e vez são no espírito dos verbos feitos carne, hora e vez são nas mãos de estilo e linguagem feitos concha. Embora não deseje ou não tenha vontade de fazê-lo, não há mais como evitar, não há como esconder a cabeça de por baixo da terra ou no fundo do mais abismático poço, não há como desaparecer com o corpo na curva sinuosa, não há como fugir para além do mundo e da terra, não há como negligenciar o para além do bem e do mal, não há como não ser. Intelectualmente, as coisas se fizeram precoces, mas na vida mesma, no quotidiano das coisas, objetos, dos homens, ou demoraram muito ou chegaram tarde, e eu tive oportunidade de usufruir-lhes as graças ou não. Sei, alfim, que jamais saberei de mim, qual é o outro que me habita atrás do eu, quem sou nas palavras incertas, o que sou nas letras inquietas, que sou nos parágrafos e exclamações, qual é a verdade que mui profundo se encontra em mim, qual a mentira que em mim vive nas atitudes, ações, comportamentos, nas visões do mundo e da vida. Penso que a insistência em escrever obra que transcenda os tempos seja isto de querer, custando o que custar, até a própria vida, a verdade. Haveria quem não a buscasse, não tivesse qualquer necessidade dela, fosse uma coisa efetivamente inútil? A vida é nada sem o desejo da verdade. Houvesse quem não a buscasse, fosse a vida algo sem ela, não me sentiria sem ela, não me sentiria sem o desejo dela, ser-me-ia insensível a vida, ser-me-ia insensível o espírito dela.
Sim, mas agora, enquanto dura esta manhã, este tempo de após chuva por toda a madrugada, esta neblina que cobre a montanha, esse friozinho adstringente, as flores, as folhas respingadas, essa paz que sinto no mais profundo de mim, embora seja inacreditável, seja-me con-sentido crer o que jamais poderei ser, seja-me permitido nada saber do que já sei, do que desejava saber.
Ergo-me para uma nova manhã, manhã docemente viva, manhã efetivamente presente em todas as coisas, especialmente nas minhas retinas – quem dera pudesse con-templar as imagens que perpassam as minhas pupilas! quiçá as volúpias e êxtases fossem mais pujantes! A minha felicidade é pura, é o reflexo do sol na água, é a imagem da sombra no chão que é de giz. Cada acontecimento vibra em meu corpo como pontas finas de estalactites que se espedaçassem, que se tornassem simplesmente pó ou areia. Depois dos momentos curtos e profundos, mínimos e abismáticos, vivo com serenidade e calmaria durante longo tempo, quase impossível conceber a sua extensão, diria em termos dos confins às arribas, com-preendendo, recebendo, resignando-me a tudo, sendo-lhe indiferente de todo. Parece-me fazer parte do verdadeiro mundo e estranhamente haver-me distanciado dos homens, haver-lhes desconhecido, ser indiferente a eles, se existem, se são frutos de imaginação fértil, isso muito pouco diz-me respeito, isto muito pouco me desperta para outras jornadas em busca da verdade. Embora neste instante consiga estender-lhes a mão com uma fraternidade e solidariedade de que eles sentem a fonte viva. Falo-lhes das próprias dores, falo-lhes dos desejos e esperanças, falo-lhes dos sonhos e da fé, e eles, embora não ouçam, não pensem, não falem, têm um olhar bom, um olhar compassivo.
Distante da margem do rio de águas turvas, o impenetrável bosque de fetos verdeja ainda; é um bosque de folhas ondulantes, no qual o gado, pisando, traça permanentes veredas. Como nos dias da meninice, abria passagem violentamente, através da espessura, fundindo-me entre as plantas altas, nadando com as mãos, e procurando, às apalpadelas, onde pôr o pé. Inseto e répteis assustavam-se à minha aproximação.
Pergunto-me, às vezes, que é o amor, se é alguma coisa mais do que simples viração que murmura entre as rosas, samambaias, que sussurra entre as begônias e damas-da-noite. que esmorece e que morre. Se, ás vezes, não se assemelha a um sinete indelével que dura a vida inteira, que dura até a morte. Deus o fez multiforme e assim o viu perdurar às vezes, às vezes perecer. E continuará por sempre a fazê-lo multiforme, é assim que ele é e será, multiforme.
Sim, que é o amor? Um vento que murmura entre as rosas... Oh! não, uma luminescência amarela que incendeia o sangue, que pulsa o coração, que abre as veias para a liberdade da passagem do sangue. O amor é uma música ardente, um “blue” endiabrado, com lírica de contestação cristã e política, com versos de rebeldia e revolta, com estrofes de insatisfação e ódio, que faz pulsar até o coração dos jovens; é como a margarida que se abre inteiramente à chegada da noite; é a anêmona, que a um leve sopro se fecha, e a um simples contato fenece.
Na imensa escuridão de minha alcova, na obscuridade do temporal que descia do céu – não me lembra de no mês de março chover tanto como agora, “águas de março fechando o verão”, assim o definiu o “poetinha” Vinícius de Morais; não existem somente as águas de março, existem as do início de setembro para as flores da primavera abrirem e extasiarem a alma, instigar a busca da beleza eterna ou o eterno dos sentimentos e sensações da beleza, do puro, do belo, alfim do divino; a primavera e o amor é que me inflamam, o sublime e a amizade é que me enternecem, a verdade e a ternura que me sensibilizam. Que a um abismo irei ter, em vão percebo, e me rio aos toques e retoques. Em vão atraco, e em vão ponho brida a esta selvagem paixão -, meu coração se entristecia na solidão, sentimentos de ausência, carência, falta perpassavam o íntimo, no esquecimento da felicidade que já ia embora, no olvidamento da alegria que já partia e acenava o incólume adeus. Meu ser vivia na escuridão da noite, meu ser vivia na obscuridade do temporal, meu ser vivia no desejo, minha alma era uma lembrança que existia em mim, eu não era qualquer recordação, eu era nada e nada con-templava a manhã que se re-velava aos poucos, lenta e serenamente. Quando abri a cortina e semicerrei a janela, o vento frio tocou no meu pálido rosto, respirei amor, respirei carinho, respirei ternura, respirei o sublime carinho e a eterna amizade, suspirei de prazer e alegria, suspirei de tantas volúpias que me habitaram o íntimo, as pré-fundas de meu ser, o abismático não-ser de mim, criei poesia a des-vendar o céu, as estrelas, o espaço sideral, a des-velar as meiguices insolentes do inferno, a percorrer as florestas silvestres, a sobrevoar os abismos, procurando intensamente a loucura de trazer a sublimidade para junto de mim. Senti-me feliz, e a tristeza é que ficou no esquecimento dentro da obscuridade, derretendo-se em chuvas, caindo pelas estradas, sendo levada pela enxurrada, e esquecendo-se de mim, que não lhe dei qualquer guarida, não compreendi os seus valores naquele instante.
Do supremo repouso a hora nefasta soou, os sinos de todos os domos de igrejas simples e humildes redobraram. A treva impenetrável, densa, cresce em torno; e enche a noite da descrença, da desesperança, do ceticismo a amplidão do deserto adusta e vasta. Que inquietação profunda, que desejo de outras realidades, outros sonhos dentro de outros sonhos, de outros versos e uni-versos, de outras coisas, de outros modos de estados de alma, de outros estilos e sensibilidade!
Não é ser pessimista, não é ser folha seca, nem sequer ser guardião de sementes da vida; não sou dono da morte! O vento jamais irá se deslocar em sentido oposto aos assobios, nem cortará caminho não passando por entre as montanhas, e a luz não se desmanchará de prazeres ao ser tocada pelas mãos do sol. Ela será sempre a eterna musa de nossos dias e nunca sairá das mentes apaixonadas dos artífices dos versos e estrofes.
Quantas vezes, o vazio noturno, chovendo ou não, revelou-se em mim como uma cortina, que, discretamente, se abria sobre uma luminosa infância, outro palco e outra cena onde brilhava o azul da manhã, onde a tarde se res-plandecia no crepúsculo, onde as estrelas e a lua iluminavam a noite, onde eu era feliz e ninguém era triste ou desolado? Morria a tarde; o sol desaparecia, mas o calor vibrava ainda no ar, banhando numa calma infinita as montanhas, a água, o bosque. Quantas vezes, no ápice gelado de uma elucubração absolutamente cética, o pensamento se corporificou como nó górdio na garganta e transbordou, liquefeito em lágrimas? Saboreando o prazer de ser frágil, entrevia em mim, entre as ilusões de meu espírito, em estado de pureza, à flor da terra, confundindo-me com o céu, onde esperava ir ter. Era para avivar a fé, fazer vir a crença. Mas deleite algum descia do céu, e eu me erguia, os membros fatigados, com o sentimento vago de um imenso logro. O perfume do campo e dos bosques envolvia-me, impregnando meu hálito e meu coração... Sentava-me, estendia-me quase no chão, com as mãos cruzadas atrás da nuca, ouvindo um momento os sons aflautados do cuco. Em torno de mim, o ar vibrava com o canto dos pássaros. Vivera aquele momento!
Essas buscas, pensava eu, eram apenas um mérito a mais; e, no orgulho de minha devoção, comparava-me aos grandes homens de antanho, com cuja glória sonhara.
Nenhuma felicidade ou infelicidade tem sido tão forte que tenham trans-formado, trans-mudado os elementos de minha matéria, dando-lhe caminho único, como deve ser o verdadeiro caminho, como deve ser a eterna jornada. Continuando sempre me in-augurando, abrindo e fechando círculos de vida, jogando-os de lado, murchos, cheios de passado, cheios de esperanças velhas, cheios de utopias antigas, cheios de nadas e nonadas seculares. Por que tão independentes, por que tão livres, por que não se fundem num só bloco, servindo-me de lastro? É que são demasiado integrais. Momentos tão intensos, instantes tão fortes, vermelhos, condensados neles mesmos que não precisam de passado nem de futuro para existir, não precisam do presente para ser isto ou aquilo. Trazem um conhecimento que não serve como experiência, trazem uma sabedoria que não serve como vivência – um conhecimento direto, mais como sensação do que percepção, uma sabedoria certa, mais como imaginação do que intuição. A verdade então des-coberta é tão verdade que não pode subsistir senão no seu recipiente, no próprio fato que a provoca, que a cria, que a re-cria, que a faz re-nascer e res-plandecer. Tão verdadeira, tão fatal, que apenas em função de sua matriz... Uma vez terminado o momento de vida, a verdade correspondente também se esgota. Não posso moldá-la, fazê-la inspirar outros instantes iguais. Nada, pois, me compromete.
Contudo, mas e porém a justificação de sua curta glória, como qualquer outra glória que se possa conceber e criar, talvez não tivesse outro valor senão o de certo prazer de raciocínio, assim como: se uma folha cai, essa folha existe, essa folha caiu de uma galha, essa folha...
Abro os olhos, à espreita de mim. Sei que desse pensamento podem vir conseqüências as mais di-versas. Pelo menos antigamente, quando minhas resoluções não careciam de grandes fatos, minhas decisões não precisavam de grandes raciocínios, só de uma pequena idéia, mofando disso, do tamanho de uma pulga, de uma visão insignificante, para nascerem.
Há neblina lá fora, além da janela, da janela aberta, o grande símbolo. Sinto-me tão dentro do mundo que me parece não estar pensando, mas usando de nova modalidade de respirar. Isso é o mundo, eu sou eu, quem ou o que seria por mim, está chovendo no mundo, é mentira.



Manoel Ferreira Neto
(**Rio de Janeiro, 13 de outubro de 2016)


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