*ZERO DE ÂNGULO OBTUSO* GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA




Só sei de mim, só sei de mim, só de mim...


Sou um objeto perdido. Sou um objeto sem destino. Sou um objeto nas mãos de quem? Não me refiro à inspiração que é graça especial inúmeras vezes acontece aos que lidam com arte. As coisas mais sublimes de tudo o que é reconhecido bom, quer seja obra, ação, ser humano ou natureza tenham sido até este momento, para a maioria e mesmo para os melhores, algo oculto e encoberto, secreto e envelado, o que se encobre para mim, encobre-se a mim, alfim! Terei de viver mais uma vez, inúmeras vezes mais, esta mesma vida, como a que vivo agora e vivi, nada haverá de novo nela. Minha sina mais secreta sarapalhou-se no bosque de uma ilha onde teço a liberdade, o amor. O que me vem ao pensamento, o que preenche o vazio atrás dele, e no coração me dói: carvalhos tem que desabar, enquanto o junco se abaixando espera passar o vento forte da intempérie.


Sou zero de ângulo obtuso.


Julguem tais palavras simplesmente "dramalhão", desejo de chamar atenção, ser digno de pena, dó, comiseração, sensibilize os corações piedosos, humanos. Haja até quem, inspirado em mim, de imediato, jogue todos no meu saco de batatas, dizendo que somos todos "zero de ângulo obtuso", o que vou discordar plenamente, pois a consciência do zero é minha, o ângulo obtuso é também meu, conforme a perspectiva com que analisei, conforme as verdades da vida vividas e analisadas que fui acumulando, os juízos que me habitam.


Sou o único "zero de ângulo obtuso". Não o digo para defender a minha diferença entre todos os homens, afirmando assim a minha personalidade, caráter, a minha identidade. Digo-o apenas para ser sincero e verdadeiro comigo mesmo. Posso não haver sido homem digno, honesto comigo no concernente a ter dado rumos virtuosos à vida, destino pelo menos plausível, mas aprendi no de-curso e per-curso a ser verdadeiro comigo próprio. Não importa o que fiz de mim, importa o que faço agora de mim. Tomei a decisão peremptória e radical de tomar outras trilhas, mudar de estradas, à busca de minha dignidade, fazer jus às palavras de alguém querido e amigo "A vida tem muitas coisas lindas e maravilhosas para ser vivida". Vou rasgar os zeros na jornada, instituir outros ângulos de posturas e condutas.


Se a preocupação não estivesse com tanta preguiça à semelhança de um ébrio, guinando à esquerda e à direita, andando e parando, resmungando palavras pelas metades, ameaçando o céu com os olhos mortos e brilhosos, dar-me-ia uma lágrima para escorrê-la pela face, todo entregue à nobre e áspera função de descrevê-la neste momento.


A ética nasce da síntese do instante da totalidade e a linguagem do efêmero. O menor instante da vida é mais longo do que a morte, e a recusa. A morte não é senão o acordo mútuo de outras vidas para que tudo sem cessar se re-assuma. A palavra retine na felicidade do instante.


Proporciona colocar o eterno no efêmero. Adentra na sensualidade, a fim de ir ao mais profundo, conciliando-se ao que de mais terno há. O seu espaço em meu interior. Embora afastado, realiza minutos de inteira corporeidade.


Ó imagem em que meu desejo se abismou!...


Minha intimidade, desde que se fixe, não mais vive.
São significados omissos na fisionomia, nos olhos, nos esgares faciais, motivos e razões escondidos no inconsciente. Estou atrás do ser. Transpareço em nível das palavras.


Descubro-me por inteiro. Respondo a coisas nem mesmo havia o mínimo conhecimento delas. Esclareço coisas estavam com o sentido e significado perdidos. Conservo o hábito de uma ampla esperança a que se chamaria fé caso fosse ajuramentada.


Perfeito êxtase na fisionomia. Dispersão completa sinto. De mim, rumo à transcendência, uma evasão absoluta. A estrada em que me encontro é a minha, sigo-a como cumpre fazê-lo.


O sol deita-se e as nuvens azuis colorem os terraços brancos. Afigura-se-me haver distendido uma mola no interior. Parece-me, em princípio, haver sentido uma eclosão, por haver dito com o mais profundo, manifestado-me bem para além do inteligível, das “movediças fronteiras da lembrança e do esquecimento”. Ouço à superfície das águas a eclosão dos sons, os sons do silêncio, das luzes.


O mundo vil e vulgar termina à porta – daqui para dentro é o infinito, um mundo eterno, superior, esplendoroso, nosso, da preocupação e de mim, sem regras, sem cardápios, sem figurinos, sem leis – um só mundo, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição – a unidade sensível de todos os desejos e vontades pela exclusão das que me são adversas e controversas. Sentir um estímulo forte de querer ou não querer é assunto do intelecto interpretativo, que naturalmente trabalha em mim de forma inconsciente.


Deixo-me ser algo sem nome, uma sensibilidade no âmago. Comigo mesmo, penso ter sido a despedida mais original a que jamais me outorguei. Coloco em palavras os sentimentos, a intimidade do ato, da atitude, da ação, do sonho, da utopia. Deixo-as irem consigo mesmas em toda a viagem. Fecho-me sobre águas calmas. Por onde passei, a minha busca, as ondas voluteiam imensas e suaves. Procuro um original no âmago e essência.


Irá haver um abismo entre a subjetividade e as palavras. O rosto fica na sombra sob o ouro do diadema brilhante.


A distância vai-se efemerizando lentamente. Aos saltos, realizo-me. O declive do vale favorece as enormes passadas. As enormes passadas são favorecidas pelo declive do prado.
Alcanço a água do rio sem margens, sem pressa, resfolegando. Teço um longo discurso, mas não há palavras. Mergulho com grandes gargalhadas.


Há, como nas obras célebres, o passo da simulação e da reconciliação. Só ao longo da grande planície é-se possível um encontro com a essência.


Bem, deixe-me estar sobremaneira livre e descontraído, deixo as letras sublimes deslizarem nas pontas dos dedos, nestes dedos que trocam palavras, às vezes amenas, às vezes duras, em tons simples, por vezes agressivos, esquecendo-me destas antigas dissipações, dissipações responsáveis por, num estilo coevo e póstero, estes sentimentos e emoções que sinto, perpassando o íntimo do espírito e alma, serem capazes de exercer o ministério de nova aliança de responsabilidade e apreço. Felizmente, as mãos são destras em tecer linhas; são responsáveis por me haverem feito amadurecer, crescer, sabendo de antemão e revezes que a consolidação do “verbo amar” ainda se encontra muito distante.


Enfim, era de intenção dizer coisa sem coisa, a preocupação de um sentido, de uma imagem, deixei-a descansar-se por momentos na outra cadeira de poltrona, confortável, tranquila, na inerência de templos e origens, olho-a e comovo-me. Reclina-se, então, na cadeira, desembainha um olhar afiado e controverso, e deixa-se estar. Ao tempo em que olhava só, ora fixa, ora móbil, levando a astúcia a ponto de olhar às vezes para dentro de si, o meu olhar continuava o seu ofício de tentar entendê-la e compreendê-la, remexendo de dentro a alma e a vida.


Interessantíssimo o olhar da preocupação em articular, delinear as idéias, não deixando nesgas inúteis em seus lábios. Acredito até haver uma compaixão um pouco disfarçada: deseja amparar-me, não me identificar, posto à parte dos acontecimentos e situações, por não saber por que caminhos trilho; muita generosidade, não esperava tanta; pode, sim, contribuir na construção das imagens, intensificá-las, aumentá-las, sem limites e fronteiras, identificar-me os vestígios da beleza, visto ser ela o de que mais careço.


Acrescendo que, talvez, haja nela muita dissimulação, e que o melhor modo e estilo de fechar as pestanas aos sustos e às dissensões é aceitar a ideia concebida antes de iniciar, dizer coisa sem coisa, entregar-me ao absoluto nada, embora nesta ideia que já vai longa não haja a mínima crença de que esteja dizendo coisa sem coisa, há muitas dimensões desconhecidas no interior de cada palavra, de cada pensamento.


Parece-me a vida indistinta quer atardar-se no sono autêntico, intenciona adiar-se no adormecimento autêntico. De não permito palavras lançadas. Dizer o que sinto, nem mesmo a terra, os restos mortais, irá separar: a individualidade está consumada. Rumo ao mundo, à humanidade, uma felicidade incomensurável, a estética imenso feliz por haver abraçado a plenitude.


Há uma certa sensualidade num amplexo estético. Os olhos sentem os instantes de tristeza: servem-lhe profundamente na atitude de vislumbramento e entrevisão. A sensualidade greta-se com o suave como para dar mais bem acolhida à nobreza de sentimentos. Encontro o sentido do amor e da amizade. Nenhuma forma de vida detém a totalidade mais tempo do que lhe é necessário para se dizer.


Digo isto com o tom inocente, ingênuo e, por que não, sobremodo preguiçoso de quem não cuida em mal, e o sorriso que me derreia os cantos da boca traz aquela expressão de candidez da juventude, não de toda ela, manifestou-se tão poucas vezes que necessito espremer os miolos para uma imagem simples destas manifestações havidas outrora.


E, palavra!... A letra dá vida, o espírito é que é objeto de ambigüidades e controversas, de interpretação, de pedidos de desculpas e, conseguintemente, de amor e esperança. Há-de se pensar que muitas são as vezes em que a interrogação de que amor é este, de que esperança é esta se manifestem contundentes, podem ser tantas as respostas que o universo inteiro se sinta completo e pleno, não havendo única nesga de vazio, de abismo nele.


Excito-me. Perdoe-me também, o que continuo a rogar, para mim isto é uma situação nova de nossas relações íntimas, alguma coisa que me faz adormecer a consciência, não me esquecendo, contudo, de resguardar o pundonor. Eu mesmo, até então, tinha-a em má conta, zangava-me quando me fatigava, quando não podia ir além de certo ponto, e me deixava com o desejo a avoaçar as nesgas das colinas, à semelhança da criança encolhida para dormir – daí é que me sobrevinha a sensação, quem sabe até um sentimento presente e real, de que o tamanho de minha inteligência não conseguia senão palavras de raiva, de ódio, e para não as assumir era mesmo conveniente pedir-me desculpas por ato tão vil e ignorante. Agora, não a tenho em boa ou má conta, não me importa de estar descansando na poltrona, não me fatigo, posso ir muito além das “fronteiras da lembrança e do esquecimento”.


Prometi-me que teria engenhosidade e perspicácia para descrever a preocupação fora de mim, no sentido de degustar um deleite, descobrindo a sublimidade, se a houver de por baixo destas palavras obscuras. Se o fiz, o mínimo que posso cumprir é conseguir chegar ao momento em que me disser que estará terminada esta longa viagem através de sensações, intuições, percepções, que, em mim, trago adentro, sem a preocupação.


Tão cheia de si!,,, Descobrindo entre as minhas sobrancelhas, a ruga interrogativa e ameaçadora, não tenho nenhum sobressalto de quem esteve apenas a sonhar de olhos abertos, o sonho de inerência de templos e origens, nem fico assustado como alguém que descobre ter estado mais do que enganado, fora um imbecil a todos os ventos e sibilos deles de entre as serras e montanhas. E, palavra!, em nenhuma ocasião a acho bela, talvez porque nunca me senti tão orgulhoso e lisonjeado de deixar a preocupação com o sentido das coisas refestelar-se após tão longos anos de luta e desejos os mais esquisitos e estranhos a perpassarem-me o íntimo, orgulhoso e lisonjeado de ser capaz de pedir desculpas não apenas às palavras, mas ao sentido que possam expressar e, sem dúvida, não conheço, o tamanho da inteligência é pouco, talvez apenas uns dez centímetros de comprimento, não fazendo cócegas nas orelhas que são disputadas, no inverno, pelos russos, a saber de quem são, de quem delas é a propriedade.


Não me aproximo. Recordo-me em se me apresentando assim. Aparecimento da planície no vão do âmago de mim, o mais recôndito sítio da ilimitada promessa. Revelação de andanças. Consigo superar a dedicação de minha amizade, meu ser na intimidade do interior. O desejo incomensurável de sua realização: no fundo quer ser o único, as suas atenções voltam somente para o alimento do amor. Teme não conseguir conquistar-se, sentir-se sempre contente e em paz.


Numa quase perpétua estupefação apaixonada, conquisto a relação quotidiana e contínua com a impossibilidade possível. Encontro-me com a oportunidade de uma sede a me esperar, uma sede particular diante de cada fonte. Almejo outras palavras para imprimir e marcar outros desejos latentes e manifestos em mim.


Poder fundamentar os sentimentos, não cair nas teias da imaginação, a distorção, a distância de quem está refletindo, meditando, reunindo todas as recordações e lembranças.


Com a intenção exclusiva de harmonia, de equilíbrio, a ausência de quem está procurando sentir o mais abismático. Minha intimidade alentece, assim como o processo do sol menos vertical se faz mais lerdo, mais passivo. A perplexidade de quem descobre ter sentido algo, e esta descoberta faz-lhe um susto, um bem incomensurável, mas que não pode responder por toda a veracidade.


A boca semi-aberta, as sobrancelhas arqueadas, uma estupefação visível, tangível, que me não posso negar.


Abandono a cabeça com um sorriso de piedade e ternura, que inteiramente me confunde. Engraçado é que neste segundo efêmero e fugaz perpassa-me o íntimo que estou a dizer sobre a velhice, tentando a todo custo encarná-la vez por todas, torná-la um verbo, livrá-la de não ser um estado de espírito, o que me confortaria sobremaneira e sobremodo - com as devidas escusas de uma repetição de sentido e significado sem qualquer necessidade -, mas única intenção de ir preenchendo os espaços vazios até quando me disser próprio que é hora de a preocupação voltar a mim, preciso sobreviver a este dia inteiro.


Verdade, sim... Antes de iniciar, pensei comigo que quem escapa a uma preocupação ama a vida com outra intensidade. Mas não tinha qualquer intenção de a tirar de dentro, deixá-la descansar. Entro a amar as palavras que a descrevem, assim o creio, com ardor, depois que estou a pique de a perder, não tendo cumprido a promessa a mim feita, nada mais que uma idéia fracassada, se é que haja alguma que, desde a eternidade, seja de glória... sou eu quem decide de seu fracasso ou de sua glória.


Lembrou-me que desviei o rosto da preocupação e baixei os olhos ao chão. Recomendo este gesto às pessoas que não tiverem palavra pronta para escrever, registrando apenas a raiva, o ódio, esperando a Providência de se revelarem ao espírito, ficando longo tempo tenso – quem sabe até não conseguindo.


Antes de iniciar, pensei comigo que é inteligível sim os tablóides só publicarem artigos pequenos. Quem iria, em um tablóide, imprimir um deste tamanho? Quem teria paciência de ficar com um tablóide longo tempo lendo? Ninguém, desde que o autor não tivesse a perspicácia de encantar com a sua linguagem, tornando o mais longo de todos o menor havido.


Em tais casos, prefiro recostar-me a poltrona, deixando a música invadir-me por inteiro. Que imaginação fértil em tornar as horas mais aprazíveis e breves, após não ter palavra pronta para escrever, chegando a atribuir-me uma emoção, sentimento, paixão nova. Atenho-me ao gesto indicado. É mais simples, exibe menos esforço, e menos dores contundentes. Não ter palavra pronta para escrever é uma angústia que ultrapassa e muito a “movediça fronteira da lembrança e do esquecimento”.


Enfim, tenho uma idéia salvadora; salvadora, pois não sei nem ao menos como dizer que está terminada a promessa de algo escrever, deixando a preocupação refestelar-se na cadeira de poltrona...


Surpreendo a sombra e o silêncio sob a ambigüidade.


Apresenta-se-me a olhos nus. Como a sensibilidade vai ao encontro da intimidade do outro, como a intuição exterioriza-se no outro, como a emotividade penetra no outro. Tenho a sensação, muitas vezes, de estar a nadar, a tal ponto o ar luminoso e quente me cobre e lentamente me ergue. Mostrar-me a todos, inteirar-lhes de minha individualidade, manifestar-me inteiro, reconhecer as virtudes e valores. Perco-me numa desorganizada perseguição a coisas fugidias. Estivesse numa situação em que me dissesse, na superficialidade, entender-me-iam, compreender-me-iam, justificar-me-iam, mas, na profundidade, no âmago, tudo é tão ineficaz e inessencial


Dizem somos os homens párias de nós mesmos. Quem o diz deve ter mergulhado bem profundo em sua alma, in-vestigado suas atitudes e ações, assumindo-se assim, é pária de si próprio. Quê bela consciência! Teve a cor-agem de se re-velar, confessar-se, o que é digno de louvores. Mas entre o louvor que está merecendo e a glória que está esperando receber, a grande medalha, há uma diferença enorme. Assuma-se pária, confesse-se como tal, mas jogar todos os homens dentro de seu saco de farinha, isto é inconcebível, em alguns homens há o "nós" deles mesmos, não precisam de ser jogados em sacos de farinha, assumem-se a si mesmos, vivem de quem são. Tudo bem - continuem a jornada deles, jogando todos não apenas nos sacos de farinha, nas sarjetas, nos "bayou", onde pensarem ser mais conveniente, onde lhes aprouver.


Não digo a ninguém, digo-o a mim próprio, investiguei com todos os métodos de que disponho, com a verdade que me habita, e não me deixa justificar ou explicar o que está mais do que lúcido e nítido, com todos juízos, todas as forças presentes no meu superego. Não posso deixar de estar deprimido, a alma encontrar-se agitada, pois condições tive-as às pencas para ter dado outros rumos à existência, tê-la construído de outros modos, estilos, tê-la realizado noutras dimensões da realidade, mas preferi investir nas coisas fúteis, medíocres, imbecis, ser nada, viver o nada, por sentimentos de revolta, ressentimento, mágoa, raiva... Era bem fácil. Não pensei no futuro, no que haveria de vir, dia haveria que todas as realidades vividas e vivenciadas estariam à minha frente, a vida me mostraria as verdades, e nada poderia dizer em minha defesa.


Sozinho no mundo, diante de minha vida... Não jogo os homens no meu saco de batatas, cada um sabe de si próprio, investigue-se, assuma-se, isso é com qualquer um.


#riodejaneiro#, 26 de maio de 2019#

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