MATULA DE LACAIOS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA




Temo os longos silêncios que deixam a vida em branco, as pequenas frases que parecem nada conter e, no entanto, selam pactos e rupturas, lacram as correspondências do destino, uma palavra supérflua, mão que escorrega.


Se vos digo que necessito investigar, dando-vos a resposta após, não sou capaz de não confirmar o que me fora apresentado, para não admitir com candura e delicadeza um caráter há muito massageado pelo véu que o encobre, mas vos digo, o que tiver de ouvir, fá-lo-ei com êxtase e júbilo, e não penseis que por orgulho próprio é que ajo neste sentido e estilo.


Mas se vos digo, de antemão, que não tenho dúvidas de não haver agido da forma a mim apresentada, revolvo o inferno, e se precisar vendo a alma ao Demônio, pedindo perdão a Deus por ato tão espúrio, com certeza assim é o estilo e minhas palavras.


Sinto sim algo bem sublime por esta matula de lacaios, se necessário apresentar-lhe-ia uma correspondência com todas as veemências de linguagem e estilo, reverências, pedindo-lhes, rogando-lhes, implorando-lhes a minha inscrição para sentar-me à cabeceira da mesa com todas as honrarias, não só contemplar os seios soltos no vestido de seda transparente, os pelos da púbis, com os lábios molhados de tesão e voluptuosidade, a mulher das noites de domingo.


Refestelam-se confortável e singularmente o dia inteiro no proscênio e mal se dão ao trabalho de cumprimentar com um aceno de cabeça, mesmo que de modo a estar replicando a todas as atitudes e ações por toda vida e existência, se há algum modo de unir, como a luz e o amor estão unidos.


Ostento uma corrente de ouro no relógio, mando fazer botas de cinqüenta reais. Serei eu, porventura, e não me respondam de imediato, permito-vos investigar um pouco mais para vos certificarem de meus pontos de vista e de cegueira, da estirpe porqueira, algum filho de alfaiate ou de taberneiro? Até não me causaria nenhum estranhamento precisar de um serviço deles, estariam morando na mesma rua, no máximo, na esquina da rua de baixo. Ainda que em minha época seja nobre e sublime entrar em serviço aos quarenta, terminando as contas do rosário, tomando uma boa dose de underberg.
Bem que eu poderia ter direito, parece-me, a um pouco de destino – por mais que o queira, evita-me, a luz que chegou a me ofuscar, acaba por se apagar ao lado. Os cães são uma raça inteligente e sensível, conhecem todas as relações humanas e políticas, por mais nobres ou interesseiras, e, assim, sem dúvida tudo estará aqui dentro, o retrato de todos os venenos do homem. Não fora por menos que o Senhor de todas as luzes e trevas não legou a duas cobras os mesmos dons e engenhos. Por mais que revolva essa noite, escrutando a longa vida branca que nunca foi pródiga, por mais que o faça, por mais que o deseje, sou eu quem vê emergindo de um fundo de luz lisa, sem conseguir furar a sombra, a pequenos prismas e perspectivas, o véu noturno que recobre o contrário humano.


Parece-me que participar e partilhar com outrem os prazeres e deleites, sentimentos e impressões, é uma das felicidades do mundo. Se tivesse um rabinho por mínimo que fosse, penso no de um leitãozinho que o gira sentido anti-horário com a presença de seu criador, estaria com ele agora todo serelepe. Hum! Este pensamento é tirado de uma obra traduzida do russo. Do título é que não me lembro.


Imaginai que um destes lacaios, com sua bengala de ornamento de prata, lembrou-se ou ousou, não consigo pensar uma diferença entre estes dois termos, oferecer-me rapé sem se levantar. De qualquer modo, isto sem deixar de lado os três tapinhas no ombro, principiava de um modo razoável no métier destes ignaros senhores e acabava suinamente, retirei do pescoço uma fita azul de um ombro ao outro, sentando-me e colocando a bengala de lado, encostada à pilastra.
A mim só me interessava estar ali trocando um dedo de prosa, discursando sobre as mazelas e imbecilidades humanas como se não houvesse assunto mais edificante e maravilhoso de se falar numa mesa ao centro, e, ao lado, os comparsas mais distintos e dignos. A mim só me interessava os ossos da costelinha de porco com bastante cebola. Também aprecio molhos misturados, contanto que não haja alcaparra nem legumes.
Caminho para a mesa, onde escrevo, e abro uma gaveta; tiro de dentro um pequeno cofre, em verdade, um artesanato, com umas rosas pintadas na tampa, coloco-o diante de meus olhos. Dentro havia um envelope com letra cursiva, muito legível, havia sido muito bem cuidada, com um laço verde feito de uma fita; abro-o e existe uma cartinha. Enquanto me provocava com a beleza daquelas letras, tornei-me velho, convertera-me num ancião de milênios, com os cabelos brancos como a neve, e o rosto enrugado de ancião sorria sereno e tranquilo, um riso que me comovia as entranhas com a enigmática palavra dos velhos. Acontece que palavra é palavra; já me comprometi com outras mais, inúmeras, tenho de ir.
As portas fechadas. Ergo diante de mim melancolicamente, às vezes espiritualista, por vezes louco, nunca perdendo o domínio sobre as impossíveis grandezas, sempre sonhando altos projetos, e sempre acordando para fins imbecis e hipócritas. Na verdade, só o vazio pode acolher o múltiplo. Sei bem que não serei alguém – devo-me tudo, a começar pelo vazio que cavara em mim e ao redor, como o jogador desafortunado que espalha as cartas sobre a mesa, com as costas da mão, - em nível do mar, em clima equatorial, os dedos se emburguesam e o espírito se achincalha. Minha alma, que havia adormecido na calçada, no frio, e quase se enregela, respira de novo e volta a agitar sonolenta as asas, buscando alçar o vôo...


Ouço sons cheios de alegrias e, no entanto, como aturdido, como meio displicente... Não posso absolutamente entender e compreender o que significa essa estranha cerimônia, os lacaios todos presentes, a estupidez dos magistrados que não aboliram sequer de seus dedos as palavras todas que possam suportar as torturas que se infligem a si mesmos, que a cabeça arda, mas todos sabemos que os homens de conhecimento pensam e sentem as bobagens, afirmando que agem desta ou daquela forma.


Ainda agora o demônio me fez sinal com o dedo indicador, talvez queira colocar alguma discussão séria sobre a mesa. Por mim, cruzo os braços.


#RIODEJANEIRO#, 22 DE MAIO DE 2019#

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