CONÚBIO BÍBLICO DA ESTÉTICA VERBAL GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA




Não sei se teria coragem suficiente para dedicar como saudosa lembrança, pedindo a um amigo ou ente familiar que inscrevesse na laje tumular, seguindo a forma de um livro, como em algumas a forma de uma Bíblia, ao verme que primeiro roesse as frias carnes do meu cadáver. Após o primeiro verme ter roído as frias carnes do cadáver, a inscrição tumular, se se quiser o epitáfio, não teria mais qualquer sentido ou valor, permanecendo inscrito ao sabor da chuva e do sol, do inverno e do calor, por todo o sempre.


Quem, visitando o túmulo de um amigo ou entes familiares, levando algum bouquet de rosas, uma vela, nalgum dia qualquer ou em Dia de Finados, resolvesse passear pela “cidade dos pés juntos”, fosse estar no meu túmulo, lendo a inscrição tumular, pensaria consigo mesmo como fui capaz de algo neste nível, algo sobremodo deprimente, e, sem dúvida, uma falta de consideração enorme com o meu resto mortal. Não faria isto nunca. Deus o livre disto! Só de pensar que ali é o seu repouso final, a sua última residência, como tive eu certa vez a oportunidade de estar descendo a rua do Rio Grande, quando passava um enterro, e um rapaz se dirigiu a mim, dizendo que levava a sua querida mãezinha para a sua última residência, sente um nó górdio apertar-lhe na garganta. Imaginar o seu corpo se decompondo, os vermes ali atracados, algo assim de uma péssima imaginação, um gosto malíssimo. Ele que tinha o hábito e o costume de usar sabonetes de ótima qualidade, cheirosos, após o banho usar perfumes importantes e importados, deixar o seu elogio tumular logo para o verme que primeiro roesse sua carne fria, é sim ininteligível.


Olhando até de soslaio para a inscrição, com certeza pensaria que não fui homem que apreciou a vida, que teve alegrias e satisfações, realizou os sonhos e desejos mais íntimos e profundos. Era eu um homem em absoluto pessimista. Para mim, a vida não teve qualquer valor e sentido. Não teria tido alguém a quem amasse de verdade? Muitas vezes, aliás, sempre, o amor ajuda sobremodo a vencer as dores e desilusões, os fracassos e decepções que são da própria condição humana. Talvez tivesse sido eu um homem quem teve amigos sinceros e verdadeiros, amigos que conviveram comigo por longos anos, suportando os achaques e pitis, ajudando-me a superar os problemas e conflitos, não precisando de outros, se os houve serviram apenas de acréscimo, aumentou o número deles, mas, em verdade, não acreditava eu no amor, na amizade sincera, na possibilidade de encontro com a felicidade e a paz. Fora eu de um sectarismo onipresente e onisciente.


Em verdade, o visitante não estaria de todo errado. Tive sim amigos que se tornaram eternos, amava-os de verdade e calorosamente. A partir do conhecimento e das relações com estes amigos, não tive mais necessidade de outros. Claro, outros surgiram, conviveram comigo pelo resto da vida, mas, se não tivessem surgido, aparecido, digo de antemão que não fariam qualquer falta, não me sentiria sozinho e desolado com a ausência deles.


Como é que alguém tem a coragem de deixar um epitáfio deste? Pode até ser que esteja de todo errado, mas lhe vem à mente de imediato que, com esta inscrição tumular, tenha tido eu a intenção e o desejo de chamar a atenção das pessoas. Com ela, encontrei um modo de não ser esquecido por quem quer que seja, de a minha sepultura ser abandonada no cemitério, não havendo ninguém que a visitasse. Esquecido e abandonado em vida, não teria outro modo de ser lembrado por alguém senão deixando uma inscrição tumular neste nível.


Aliás, crê o visitante que não haja quem não interrompa a sua caminhada, a sua visitação, deixando-se estar presente ao túmulo, olhando a inscrição. Sem dúvida, chama a atenção. Em verdade, fui esquecido, restou apenas o epitáfio.
Também não saberia informar se o primeiro verme que roeu as frias carnes do meu cadáver se sentira recompensado e reconhecido por lhe haver eu feito tal dedicatória. A sua alegria e satisfação não se fundamentavam na inscrição tumular e sim na fria carne que roesse. Importava-lhe tão unicamente a carne fria. Até poderia ser que, em princípio, se sentisse reconhecido, enfim me lembrou ele, deixando-lhe um epitáfio. Contudo, após a sua primeira roída, o elogio fúnebre perderia o valor, aliás, o verme se esqueceria de tudo, empaturrou-se por inteiro; precisou até de dar um tempo, ao contrário, teria um mal estar estomacal, podendo até resultar em vômitos. Não desejou que isto acontecesse; a carne estava tão deliciosa, um desperdício. Aliás, tantos outros vermes desejam uma carne apetitosa e não têm a oportunidade de a saborear, tendo de se limitarem a que lhes está ao alcance.
Aqui no mundo dos vivos, não há quem não fique alegre e feliz com uma homenagem, uma dedicatória, nalgum livro, nalgum palanque, nalguma emissora de rádio ou televisão. Não há ninguém que não se sinta amado e querido. Então, em se tratando de livro, a homenagem ou dedicatória permanecerá por toda a eternidade, fora também eternizado junto com o autor.


Uma belíssima manifestação de amor e carinho, de amizade e consideração. O mesmo não aconteceria num palanque, numa emissora de rádio ou televisão, pois as palavras, embora calorosas e sensíveis, não foram inscritas, não foram registradas, e assim foram esquecidas, a memória da maioria das pessoas é muito frágil para armazenar tantas coisas da vida; não teria sentido gastar um pouco dela com homenagens no ar.


Talvez até sinta, com o passar do tempo, a saudosa lembrança de estar roendo a carne, carne, aliás, deliciosa e apetitosa, paladar que não mais teve oportunidade de sentir. Antigamente existiam apetitosas carnes frias, mas infelizmente no mundo em que vivemos e morremos hoje não existem mais estas apetitosas carnes frias. Graças a Deus, ele, o verme, teve a oportunidade de ser o último a saborear carne saborosa, saborosíssima.


No mínimo, teria eu de lhe perguntar se gostara da dedicatória, se degustara a carne. Não sou capaz de imaginar ou intuir um questionamento neste nível, impossível de todo a um morto fazer qualquer espécie de questionamento sobre o mundo dos vivos, sobre o mundo dos mortos, em especial se o verme que primeiro roeu as carnes teve prazeres alimentícios.


#riodejaneiro#, 26 de maio de 2019#

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