DE OUTRORA, INDULGÊNCIA CANHESTRA GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA




Afianço - se se quiser posso inclusive personalizar, colocando apenas o hífen e o pronome, dizendo “afianço-vos”, mas neste momento não estou com desejos de isto personalizar, colocando o pronome “vos”, dirigir-me a todos os homens, à humanidade inteira, confessando-me, revelando-me - que por instante, mesmo que efêmero, dá-me a vontade de ser um poucochinho canhestro, fazer tudo às avessas, sem estar o mínimo interesse de entendimento do que enfim esteja eu a dizer, a confessar, a revelar. Pode ser que isto me agradasse vez por todas, reiniciar outros caminhos, inspirado em ser canhestro com as atitudes, ações, comportamentos, mas, no leito de morte, desculpem-me se começo de refletir muito a este respeito, embora o que sinta não é medo de morrer, o que iria temer após à morte.


Recordar-me-ia de cada minuto em que agi em estilo canhestro, sabendo-o canhestro, onde estaria a minha verdade, a minha alma, em nada, respondendo-o eu, e de repente a culpa insofismável de em algum dia já perdido na memória, agora somente uma imaginação, uma imagem que a posso criar de acordo com o sabor e gosto que preferir eu, sem mais um segundo para poder vislumbrar a verdade, estarei morto com a vida canhestra que poderia haver sido acanhada, desajeitada, desengonçada, mas escolhi o caminho que não era o meu, as coisas feitas às avessas.


É justamente esta mistura abominável, entre o sim e o não, exigindo muita destreza para descobrir o que é realmente sim, pois que nele pode estar um não como uma sua dimensão, e tudo começa a girar outra vez; esta mistura intragável e fria, quem sabe até saudosista, não o sendo, mas algo como uma falta que se sente desde sempre, mas se é possível vislumbrá-la, e tudo na vida são buscas desta falta, desta ausência; esta mistura de medo e de fé, de covardia e de amor: é exatamente este sepultamento involuntário, ensaiado até como se deve ler com a intuição, e esta existência de construída grade, um rostinho lindo e chorando entre os seus ferros, este vazio e esta ausência, esta dor e este martírio, nítidos e limpidamente contemplados, mas sempre misteriosos e enigmáticos, duvidosos, de toda resolução e solução, é essa síntese de desejos insatisfeitos, vontades encafurnadas, de decisões compulsivas e irresponsáveis, tomadas para a imortalidade, para a eternidade, de imediato seguidos de culpas e remorsos, não do quer fiz e do que deixei de fazer, mas do que não tive coragem de assumir; é isto precisamente o que segrega esta volúpia estranha de que o título e função cabíveis e justos serão o de chamar-me “Preguiçoso”.


Por momentos, enquanto criava e elaborava o parágrafo de cima, pensei comigo que esta escritura estaria sendo criada como uma imagem de meu epitáfio inscrito na lápide de minha sepultura. Se investigasse mais profundamente, estaria pensando comigo próprio que confessava as atitudes e as mesmas de não, de modo que recebesse a minha indulgência não por haver escrito as mazelas e achaques, não por as ter confessado, mas simplesmente porque não estava tratando de uma confissão, e sim uma investigação sobremodo profunda acerca da vida canhestra, uma contemplação maior que rima os apelos de sussurros, murmúrios, oscilando entre a natureza e o espírito, em tardes serenas de janeiro, os silêncios e mudez de pensamentos ao longo de invernos.


Através da vida canhestra posso eu modificar os sonhos que não passam de ilusões [antes, e de maneira mais pura do que o poderia eu fazer, delineio esboços, o sentido e a imagem de um olhar], entregar-me de corpo e alma aos desejos iluminados em seus valores eternos como imagem e como visão fugaz da própria divindade.


Quem sou, que me esqueceu o amor que anda por um campo que desconheço, por uma grama verde, mas desconheço se as folhas estão verdes, estão secas, como estão elas, enfim?! Quem sou, que me esquece a alegria que anda silenciosa, caminhos em passos lentos na areia fria, de por baixo dos pés, numa praia qualquer, aliás não posso imaginar como seja, sei apenas ser areia, vislumbro o mar, perdido, distante? Quem sou, que me lembra de enfiar as mãos em bolsos de calças, buscando o conforto e o aconchego de uma intimidade, não por estarem vazias, mas, às avessas, por estarem cheias de algo para doar, encontro neles o nada que me espreita canhestramente.


Quem estivesse lendo, ou mesmo ouvindo, se houvesse quem ouvisse, não estaria sendo escrito, diria com toda a convicção de sua alma e espírito que sei com engenhosidade e arte, isto para não dizer com genialidade, pois que seria muita pretensão minha pensar que sou um gênio, que sei trabalhar com as palavras, com os seus sentidos, intenções, desejos, e nada está sendo em verdade escrito com espírito de um indivíduo canhestro. Com esta observação tão percuciente, diria então que não é mesmo a intenção de escrever algo que exploda a bomba do tempo, aeiou, aeiou, feto, féretro, preciso afeto, desejo sim revelar algo que me perpassa o espírito e que muitas vezes não consigo contemplar e vislumbrar, algo efêmero, passageiro, tive tempo apenas de olhar de soslaio, pois que não se apresentou diretamente.


Minha alma, sem dúvida, continua a viver, porém inconsciente. Nada mais sinto. Sei que um cacto no deserto é uma verdade natural, sem discussão. E que o meu trabalho de colocar as palavras nos seus devidos lugares, a montanha e as águas, saindo das entranhas, perpassando as reentrâncias do coração, é uma verdade como a primeira, sem discussão. Do alto de minha lucidez, estou só.


Pergunto-me, às vezes, o porquê de não emborcar a taça, bebendo a água desde o seu fim para o início, a ponto de mostrar como seria ela forçada a voltar-se para o espírito. Difícil o gole que passe despercebido ao paladar, mesmo que não tenha gosto, o prazer renasce na idéia de um sonho a realizar, de um desejo a ampliar o universo.


#riodejaneiro#, 27 de maio de 2019#

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