#ORATÓRIO QUE VIBRA A FIBRA ADORMECIDA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA




Ah, senhores, pudesse eu agora fechar os olhos com bastante força, como se tivesse saudades daquele sonho de estar andando num campo de grama muitíssimo verde, flores por toda a sua extensão, de cabeça baixa, mãos cruzadas nas costas, quando ouvi uma voz que, em princípio, pensei ser-me bem familiar, mas quando virei, já estando a pessoa perante mim, descobri não tê-la visto antes, e talvez que jamais a tenha querido ver e nem tampouco passar por ela, e ela perguntou a mim se estava a caminho das sendas perdidas, respondendo-lhe eu que não, que estava apenas procurando espairecer um pouco as idéias por me encontrar cansado, desejando mesmo prolongar este sonho um pouco mais; isto, inclusive, iria de algum modo poder persuadir que seguia a alameda que me conduzia a uma verdade de mim, quando a pessoa disse era necessário ir-se embora, mas que eu continuasse lutando, não desistisse por um segundo sequer, e isto me conscientizou dos valores que assumo no mundo, a luta seria a minha salvação.


Porém, minutos depois, acordo e salto da cama, lembrando-me de que não coloquei água benta no copo de leite, tomando, antes de deitar para dormir, e que o faria naquele exato momento. Tomar a água benta havia feito uma insofismável revolução em minha vida. Tenho sem dúvida buscado apanhar o fio que me liga a todos os sonhos incoerentes e contraditórios que tive ao longo dos tempos.


Enquanto, olhando-me ao espelho, percebendo a necessidade de pentear a barba, porque o hábito de cofiá-la com constância a deixou eriçada de todo, consciente de que tenho de vestir-me, procurar uma roupa que me caiba bem, combiná-la, ou seja, produzir-me com esmero, calçar um sapato muito bem engraxado, erguendo ora um pé, ora outro, admirado com o êxtase e euforia, sussurrando algumas palavras entre os lábios, palavras inteligíveis e portadoras de sentido, ao mesmo tempo em que o rosto vai subscrevendo os pensamentos e idéias, os desejos e vontades, os sonhos e ideais, com metáforas adequadas, com símbolos precisos, com signos exatos.


Arauto do invisível avulta pela permanência o oratório que vibra a fibra adormecida, o meu temperamento romântico, e por que não dizer a impulsividade de acreditar que revelo o espírito, quando deveria dizer que manifesto a alma, repleta de circunstâncias e situações? Acabo de retirar do fogo a mísera e formosa heroína de amores desgraçados.


Naufrago uma vez com o homem negligente, empenhado na sorte dramática dos pés feridos em panos velhos de linho, com a respiração alterada, e desde então é substituído pela imagem de angústia...
Não assisto ainda à aparição de mim a mim próprio. Nunca penso a sós comigo, no silêncio? Estou vivo, sei-o e muito bem, eu, este vernáculo de sonhos que sinto presente, vernáculo que não se pensa, não se toca, é estranho e arrepia de alegria e me põe os olhos na eternidade.


Como se uma árvore me acompanhasse, dialogasse comigo – árvore de grande copa, de desejo definido, curvada como para me saldar, parabenizar-me, com o seu amparo, o viajante da ressurreição.


Como se mãos possíveis me estendessem um tesouro, qual não seja o tesouro de olhos verdes, tesouro aberto para o prazer da alma e realização do espírito. Enigma suficiente para aproximar o amor; resultado capaz de fazer acordar a humanidade dos homens.


É leve, ágil, inquieta – com um pouco de ingenuidade; às vezes agressiva, mas dotada de espírito perspicaz, sinuoso, capacidade de reflexão e perquirições. Nisto posso entrever o retrato de mulher, se não convém falar também dos olhos, a imagem do tesouro, que, se são nítidos como os de Eva, após o pecado, se é que houve mesmo o antes dele, consigo pensar nestes olhos distantes. Olhando de certo modo, os risos ameaçam ou penetram os interstícios da consciência alheia. Estas ocasiões que são raras, mas não são duvidosas. A expressão é outra, meiga ou ingênua, e mais de juventude que de adulta, mais de mãe.


#RIODEJANEIRO#, 20 DE MAIO DE 2019#

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