Manoel Ferreira Neto: PROSA MURMÚRIO DE ÁGUAS VIVAS GRAÇA FONTIS: PINTURA






Os ruídos adquirem uma sonoridade rouquenha, sem eco no ar morto. É como se as trevas estivessem revestidas de uma cor escura ainda desconhecida, tornadas mais espessas pela poeira flutuante do carvão e grávidas de gases que são um castigo para os olhos.


Saio desatinado de casa, o que acontece quando me sinto deprimido, caminhar ajuda-me um pouco a superar o nó górdio no peito. Gastei três e meia mortais horas em vaguear pelos bairros mais excêntricos e desertos, onde fosse difícil dar comigo. Isto às vezes acontece com as pessoas. De acordo com uma circunstância ou outra, especialmente em se tratando de um casamento fracassado, saem da cidade, buscam outra vida. Esquecem-se de que a separação estará presente seja lá onde forem, o passado, incontestavelmente, acompanha o homem, não adianta querer fugir, negligenciar.
Ia mastigando a minha angústia, tristeza, sem mesmo poder saber bem o que estava acontecendo, ser apenas um momento como o diz bem Chico Buarque de Hollanda, “Tem dias que a gente se sente/como quem partiu ou morreu”. A angústia e a tristeza eram frutos desse dia. Mastigava-as com uma espécie de gula mórbida. Precisava encher-me de qualquer coisa, mesmo de nada, como, em verdade, não estando mesmo mastigando algum alimento, só podia engolir o nada. O nada preencheria o vazio de minha alma.
Evocava dias, horas, instantes de delírio, prazer, satisfação, do passado, não importando as épocas, os períodos, pois que não são contínuos os delírios, prazeres, satisfações, acontecem aqui e ali. Desejava persuadir-me, convencer-me, de que eram eternos, as angústias e tristezas eram passageiras, efêmeras. Não passava tudo de momento. Ora, enganando-me a mim mesmo, tentava rejeitar estes instantes de delírio, prazer, satisfação, como um fardo inútil.


Continuo andando por bairros excêntricos, todo entregue à nobre e áspera função de me desvencilhar da angústia, da tristeza, de decifra-las, se possível; sorrio entre dentes, lembrando-me de um princípio universal que diz que as angústias e tristezas são para serem vividas, não decifradas.


Há alguns anos, o número deles não importa, persuadi-me de que a vida é uma ópera, como uma viagem de trem ou de avião. Não fui muito feliz com a comparação, com exceção da ópera, mas quem, angustiado e triste, vai ser feliz com comparações, com quaisquer outras coisas. No interior, lutam pelo conhecimento e consciência do estado de espírito, pensando que o conhecimento vai devolver a alegria, o contentamento, ou a calma e a tranqüilidade.


Após três horas e meia andando sem destino, mastigando a tristeza e a angústia, sem que ao menos pudesse saber o que estava acontecendo, as razões específicas deste estado de espírito, cansado de subir e descer, por nossa cidade assim ser, “sobe-se para descer; desce-se para subir”, retornei à casa. Creio que me sentisse ainda pior, pois a intenção é que a caminhada me devolvesse a tranqüilidade.


Ouvi alguém pronunciar a palavra “ouro”; se não estivesse sendo enganado pelo estado de espírito em que me encontrava, alguém havia achado no quintal de sua casa um baú cheio de ouro, não teria mais dificuldades na vida.


Ouvindo isto, disse em voz alta: “Deus está recebendo as minhas angústias e tristezas em ouro”, referindo à confissão que nas entrelinhas de minhas dores e sofrimentos se encontrava, e, assim, iria ser ouvido por ele, restituir-me-ia um ótimo estado de espírito, estava sendo verdadeiro, sincero. Terminando o instante, surgiu-me, então, uma ironia, que, se entendida por alguns, enfernizaria os seus dias: “Deus está recebendo as minhas angústias e tristezas em ouro. Satanás era recebê-las em papel branco, sem qualquer palavra escrita”.


O que é absurdo. Impossível, não só para Satanás, para os homens mesmos receberem confissão de angústias e tristezas em papel branco, sem uma palavra sequer, uma única letra. Poder-se-ia imaginar que o remetente não estaria em seu perfeito estado de espírito: subscritar o envelope, postar no correio. Na folha de papel não haver qualquer palavra. De acordo com a práxis do correio, é possível enviar correspondência sem subscritar nome e endereço do remetente, barateando o custo.


Chegando a casa, debrucei-me ao corrimão da escada de entrada, olhando as serras ao longe, pensando comigo: “Vendo o meu filho mais velho chupando o leite materno, e toda aquela união da natureza para a nutrição e vida de um ser que não fora nada, ficava olhando disperso e distante”. Disperso e distante foram termos que encontrei no momento. Em verdade, não saberia dizer como dizer o que sentia. Era-me impossível dizer qualquer coisa naquele instante em que chegava a casa, após andar três horas e meia, procurando desvencilhar-me da angústia e tristeza que se apoderaram de mim.


Quem sabe noutra ocasião pudesse definir o que sentia, vendo o meu filho mais velho chupando o leite materno? Talvez não me lembrasse mais disso. Fora um achado para um instante esquisito, estranho.


#RIODEJANEIRO#, 18 DE MAIO DE 2019#

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