NOS ANÚNCIOS DO VESTÍGIO GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA




O que faço e fizer do tempo que me resta definirá minha existência.


A estes segundos, por vezes, breves, muitos outros, longos e dilacerantes, que seguram os olhos às palavras, chamo-los de encontro que é uma das expressões do que há a se anunciar, das verdadeiras ações, possibilidades.


Vejo a vida como o tempo e o lugar do encontro, do colóquio. Vejo o homem como um sinal, sem sentido. “Homem de hoje que já dura há muito, que ainda durará muito, numa duração e numa demora para a qual nenhuma contagem da ciência histórica jamais implantará uma medida”. Útil ou inútil, aos olhos dos indivíduos, efêmera ou não, será o resultado do que houver anunciado ou que houver silenciado - na des-ocultação da anunciação, no des-velamento do silêncio, o quê?


Segue-se a carruagem ao longo dos séculos sem freio ou lugar de parar. Se colocasse vírgula após séculos, enfatizaria a idéia de desinteresse do encontro, do colóquio, a passagem dos séculos já não deixa suas experiências, a carruagem, vestígios das patas dos animais e rodas, ambos não despertam mínima vontade de in-vestigação, mudança? Não a colocando, encontro-me indeciso: “O que não tem freios ou lugar de parar, a carruagem ou os séculos”? A carruagem não é o sinal dos séculos, milênios? Os séculos não são o sem-sentido? Quem sabe o que há a dizer, anunciar, seja sem vírgulas? A pré-ocupação delas existe só em mim?


Os passageiros, resignados à correria, olham o campo, florestas, vales que passam rápidos, distanciando-se. O olhar encontra, muitas vezes, nos anúncios do vestígio, no ser da vida coisas ainda mais esplendorosas e belas para nomear do que os cactos e flores.


Não sabem se se justificam, dizendo que resta a próxima paisagem, cenário. Não há estações rodoviárias, de trem, pousadas. Houvesse um cocheiro! Há passageiros, animais desenfreados a puxarem a carruagem. Se houvesse espécie de cercado, ostentando um molho de capim, distante o suficiente para suscitar o desejo dos animais, justificaria o próprio desenfreamento deles. Desejavam comê-lo.


Diante da poeira dos ossos, impossível alguém saber se fui homem ou cavalo, isto se lhe convier investigar, nos anúncios do vestígio, as pegadas deixadas na estrada. Estranha a metáfora; contudo, em se tratando de segurar os olhos às palavras, pouco importa se vazia ou profunda. Pouco importa até se metáfora ou figura de estilo ou construção outras.
Após o que fizer do tempo que me resta, creio ser-me de direito o último pedido, as últimas palavras sobre o que fazer do corpo, enfim nele vivi por quase cinco décadas, estúpidas e/ou esplendorosas, sofridas ou prazerosas. Sepultem-me no infinito do deserto. Se houver quem se interesse em encontrar os restos mortais, a carruagem, tendo cocheiro, poderá ser meio de locomoção. Não saberia responder se camelo puxa carruagem. Isto não saberia. Tudo é possível, se não há cocheiro.


O deserto é um tempo de passagem, travessia. O deserto não tem lugar ou tempo; tem feição. A miragem é se a carruagem pode cumprir o percurso, os passageiros não se resignem a elas. A liberdade, sentido continuam à frente, ávidos de encontro e exultação. O sentido, intuição a ser acolhida no recolhimento do tempo.


Não saberia dizer se o mesmo número de anos, cinco, para um corpo tornar-se ossos, na sepultura de cemitérios, acontece no deserto. Penso haver qualquer diferença. Terra é terra. Areia, areia. Contudo, a tempo tentar encontrar; caso contrário, tornado cinzas, o vento levará embora e não mais devolverá.


Se me inspirasse noutras imagens, se recorresse a outros símbolos, indagaria, com prepotência e arrogância, se o silêncio não é um deserto no deserto, sem ameaça de regresso. Tanto mais simples as imagens, mais divinas e gloriosas, a ponto de muitas vezes realmente se temer descrevê-las.


A carruagem desenfreada não regressa, segue destino, os passageiros tentam se salvar abraçados às orações, ditas no silêncio.


No deserto da história, não são camelos a puxar a carruagem, e sim cavalos. No deserto e solidão dos homens, há o que puxar o desejo de sentido e significado.
Sempre houve carruagem de sonhos, provisões de palavras, que, deixados para trás, e nas sendas perdidas tentados resgatar, para fazer a ligação do que se faz e o que se fará, aliás, isto é o que definirá a existência, dito logo no intróito sendo a bússola de orientação do camelo que fui, no deserto, ou do cavalo que continuo sendo, no silêncio, que é o deserto do deserto.


O que resta? Resta esperar; enfim a carruagem continua sendo puxada pelos cavalos, as imagens dos rios e águas em movimento a se anunciarem na passagem, na travessia. Esperar até que o “a-se-viver” se anuncia. Não se é referido ao adiamento da vida. Quer dizer manter-me alerta e, em verdade, no interior do já vivido, experienciado, em direção ao não-vivido, não-experienciado, que ainda se guarda e se encobre no já vivido.


Desejo que todos vêem a carruagem desenfreada, as pessoas olhando a paisagem, cenário, passando rápidos, segurando às palavras de salvação. Sirvo-me delas. Há quem possa entendê-las, a que vieram, o objetivo a que se propõem? Serem inteligíveis à luz da linguagem e estilo, fácil, mas acolhidas, isto a quem interessa, ou que utilidade possam ter?


A carruagem desenfreada segue destino, tudo mais é imagem efêmera. Passarem carruagem e imagem de olhos em olhos deixam apenas vagas sensações de vida.


#RIODEJANEIRO#, 21 DE MAIO DE 2019#

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