NADA VAZIO: ONDE TEM RAÍZES? GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA




A minha vida é eterna porque é só a presença dela a si própria, é a sua evidente necessidade, é ser eu, Eu, esta brutal iluminação de mim e do mundo, puro ato de me ver em mim, este Ser que irradia desde o seu mais longínquo jato de aparição...


Se não existe nenhuma experiência da vida capaz de modificar a alma, o espírito, então não existe, no mundo, experiência alguma.


A essência das pedras preciosas, opalas, diamantes, se mistura com a essência dos indivíduos, dos homens, e então um curioso resto branco se precipita. Todos os homens ficam de repente relacionados com as pedras preciosas e estas pedras preciosas passam a fazer parte dos sonhos, das especulações, das tramas, dos desejos, das necessidades, das cobiças, invejas, das fomes de todos.


Os sonhos, especulações, tramas, desejos, a lua, o silêncio, a sagração, o momento da aparição e, finalmente, a redenção. Tudo o que aconteceu antes se esgotou, para chegar à totalização de mim a mim próprio, tenho de esgotar todas as experiências. E se não existe experiência no mundo, pelo menos a que seja capaz de mudar a condição humana no mundo, como vou esgotá-las a todas?


Não sinto mais fome agora. Estava faminto, devo dizer, há algum tempo, mas comi todas as palavras que surgiram na mente, comi-as sentindo no paladar o gosto suave e terno, disse a mim tudo o que desejava dizer a outros, mas, não havendo outros, senão na imaginação, disse a mim próprio, saciei vez por todas a fome que me habitava.


Nada há a ser dito. O que diria, sem considerar importância, nonsense? Sem juízo de valor, sem conceder valor ao juízo. Nada a ser dito. Assim inicia-se a verborréia.


Sim. Perfeitamente inteligível, merecedora de aplauso e reverência esta consideração de emitir a voz, falar, concatenando a língua e suas picuinhas da erudição e as dimensões sensíveis é de importância sim, mas pensar é dizer, diz-se a si o que diria ao outro. Neste mérito da questão, não tenho quaisquer méritos para acrescentar alguma coisa. Declaro e confesso sem visão profunda, mesmo superficial, a respeito das coisas do mundo e as falácias dos homens. Alfim, pensar é dialogar consigo mesmo, conversar, trocar dedos de prosa, fala-se sozinho em silêncio.


Então, desde que pensei nada a ser dito, disse muitas cositas. Disse nada a ser dito para não ficar a esmo no meu silêncio, cabeça vazia é tenda das metafísicas do inferno, é choupana das parafernálias da inconsciência e intelecto, templo das coisas escalafobéticas da razão e das coisas do coração.
A coisa é esta mesma: Nada a ser dito.
Aprendi a viver no silêncio. Aprenderei outra linguagem? Não há palavras ainda para inventar o mundo novo, a realidade nova. Respiro devagar. Como se me balanceasse o corpo ao ritmo lento do universo. Noite ofegante, olho-a. Pela janela, ao alto, sobre o negrume dos pinheiros – aliás, é do lado de Pinheiros que a chuva nos chega às vezes mansa, às vezes forte, silencioso céu.
A beleza das pedras preciosas, que faíscam e luzem à claridade de pequena vela, me seduz a cabeça com o brilho delas. Tão belas são e tão suaves com uma música própria – a música de promessa e prazer, garantia do futuro, de conforto e segurança. Vejo a pequena imagem da vela refletida na lisa superfície do diamante e de novo me soa aos ouvidos uma linda música, quem sabe vinda à soleira do sibilo de ventos entre serra, o tom da difusa luz abaixo da superfície.


Cinza de fumos obtusos, despertando sentimentos condoídos, pretérito dos ressentimentos se mostrando lívido e frio. Fumaça de cigarro esvaecendo-se no ar de frias emoções em cujos interstícios residem desolações... até mesmo tergiversar o olhar, dirigir-lhe a algum sítio é algo indecente, emoção alguma há e não se anuncia qualquer. Fogos fátuos acendem vestígios de alegrias breves. Medíocres infernos de idéias e pensamentos salpicam de enternecimentos as vertigens vazias, e nada se manifesta no mundo. Folhas secas na terra fria reverberando as quimeras deixadas à beça dos ventos esquecidos.
O céu está limpo graças ao vento e as estrelas brilhando muito frias no céu escuro. Caminho cuidadosamente, braços cruzados às costas, cabeça baixa, e evito o centro da cidade onde alguém poderia ver-me passar, os vaidosos e pernósticos vendo-me pensar. Não ando de cabeça baixa por me preocupar com as pedras, as ruas são calçadas de pedras, nem o faço por estar procurando soluções, ver-me projetado nalgum futuro por mais distante seja, mas unicamente por me haver acostumado a andar de cabeça baixa, os pensamentos distantes, distante de mim, do mundo, dos homens. Caminho só. Quem gosta de caminhar só? Ninguém.


Sigo o meu caminho pela orla da cidade e tomo o rumo das montanhas, guiando-me pelas estrelas. Por mim ninguém passa e não vejo ninguém. Afinal, à direita, a lua crescente nasceu e nesse momento o vento cai e a terra fica calma.


Céleres fagulhas introspectivando forclusions, horizontes submersos, sombras interdictadas na incidência da luz.


Um indício fala no limiar das origens. Quando tudo houver regressado ao princípio de tudo, no cenário branco inicial da pureza, quem sabe reconstruirei o mundo. Reconstruirei o mundo, eu! Cântico dos anjos da anunciação, dos anjos das trevas e da tragédia, os sinos silenciosos, só bradam pela manhã para o vazio do mundo, a solidão só emite seu canto de cem em cem anos. Os deuses nascem sobre o sepulcro dos deuses.


A minha vida é só uma, não tem princípio nem fim, sou eu modelado a tudo o que fui ou serei. À minha vida entendo-a na iluminação em que me sinto, me estou vivendo, me sou. Mas a iluminação de dentro, a pura presença de mim próprio é o meu ser. O vazio – silencioso. O nada – a esmo pelas pradarias solitárias, leve e solto pelos chapadões, vales. Instante-limite. Nada a ser dito. A mente isolada no seu regaço.
Mui quotidianamente acontece de não saber de mim, este entendimento, queira ou não, é sobremaneira pouco, e alguém íntimo pode intuir e perceber, e, em dizendo, esclarece, passo a passo, alguns mistérios, enigmas; contudo, é ainda o tempo que vai tornando nítidas as dimensões de mim. Mas, às vezes, só eu mesmo posso dizer algo. Acredito, sim, em algo dito: “Ninguém melhor que eu para dizer de mim mesmo”, mas não absolutamente. Às vezes, alguém conhece meus sentimentos por ele, necessitando ouvir dizer para se assegurar de que não está enganado, o que pensava ser sentido por ele é verdadeiro – por exemplo, um amigo íntimo.


O desejo de amor só vive de entrega, onde têm raízes a iluminação e consagração...


Como entender que esta iluminação que sou eu, esta evidência que é a minha presença a mim próprio, esta fulguração sem princípio que é eu estar sendo, estar no mundo, no meio dos homens, das coisas, dos objetos, como entender que pudesse não existir?


Como pensar que é nada?


#riodejaneiro#, 01 de junho de 2019#

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