PEQUENOS TRAÇOS DE LUZ GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA




Creio não dever apresentar, identificar, desde o intróito, os pequenos traços de luz que se refletem na parede, tendo a idéia de assim intitular. Não se trata de procedimento novo, fi-lo inúmeras vezes, adquirindo resultados que me satisfizeram, senti-me bem. Alguém me dera de presente um livro de sua autoria e como dedicatória, escrevendo: “Não tenho um novo caminho. O novo que tenho é um jeito de caminhar”.


Desde o princípio do ano, chove constante. Felizmente, não temos problemas de alagamento, pois a água que cai desce as ruas, dirigindo-se ao Rio Grande, embora lá haja riscos de casas serem alagadas por haverem sido construídas à beira.


Procurei informar-me se não houvera enchente no passado. Não houvera. Apesar de que no passado as famílias miseráveis não tinham construído seus lares à beira.


Saí logo pela manhã, se não me engano aos quinze para sete, após o café, para comprar cigarros. A caminho do bar onde tenho costume de ir, pensava sobre as palavras. Difícil entendê-las, sabê-las por analisar e interpretar através de preconceitos, projetos os mais diversos. Se as deixasse dizer livremente, mostrarem-se nítidas!... Difícil.


A preocupação era não passar à porta do cemitério. Anteontem, fi-lo, o dia fora difícil, muitos problemas e dificuldades. Inteligente é quem não passa à porta de cemitérios. Há as almas sofredoras que lá habitam. Acompanham os transeuntes vivos, causando-lhes mal, dificuldades. Sendo eu sensível, se o fizer, posso ter a certeza de que algo irá suceder.


Isto não só quando as leio. Escrevendo, há interferências da razão, do intelecto, personalidade, caráter... Pudesse algo escrever em que as palavras dizem sozinhas!... Não seria necessário interpretar, analisar. O sentido apresentar-se-ia nas linhas mesmas, sem isto de estar nas entrelinhas. Difícil, impossível.


Perguntei-me se alguém escrevera algo que ninguém necessitou interpretar. Não encontrei respostas. Até a Bíblia necessita ser interpretada, analisada, havendo disciplinas de curso superior para o seu entendimento. Tive dúvidas. É preciso investigar isto. Pode ser que tenha algum escrito não necessite de interpretação.


Chegando ao bar onde tenho costume de comprar cigarros pela manhã, estava fechado. Não sabia de outro existente. Teria de andar muito até chegar ao centro. Teria sido melhor se tivesse ido à padaria, o que é comum. Aliás, faz dois anos e meio que compro cigarros lá. Muito recente é que me dirijo a este bar na Consolação. Isto pela manhã.


Perguntei a um jovem se não existia outro bar ou padaria nas imediações onde pudesse comprar cigarros. Mandou-me virar a esquina, descer uns cinqüenta metros. Encontraria um. Passara por lá, estava aberto. Ótimo. Não iria andar tanto.


Descendo a rua, indicada pelo jovem de bicicleta, continuei a pensar sobre as palavras. Desejava algo escrever não necessitasse de interpretação, as idéias, mensagens, pensamentos, tudo estaria em nível das palavras, das linhas.
Há quando, movido pelo tédio, insatisfação com os mesmos caminhos trilhados, nada mais dizendo, o eco de velhas palavras ressoando constante nos ouvidos, surge uma fantasia, quimera. São elas agora o desejo de as palavras dizerem sozinhas o para quê estão registradas. Reconheço a impossibilidade desta empresa. Contudo, não “entrego as pontas”, luto.


Entrei no restaurante. Pedi o maço de cigarros. O Presidente estava dando uma entrevista pela televisão. Ouvi as suas palavras. Analisei-as de acordo com a conjuntura política, social, econômica que a nossa Nação está vivendo, dificuldades atrás de dificuldades, violência generalizada, interesses e ideologias vários circulando por todos os lados.
Não havia condições de não haver análise, interpretação, as palavras só teriam sentido se eu lhes conferisse.


Saindo do restaurante, subindo a rua, lembrava-me do que havia lido sobre a ninfa Eco. Não havia ninfa mais encantadora e mais alegre do que essa cujo nome era Eco. Diana alegrava-se com a rapidez de seus pés na caça, e aqueles que ela encontrava pelos caminhos seguiam adiante risonhos com a lembrança de seu palavreado festivo e seu humor matreiro.


Fora um mau dia para Eco, quando ela cruzou o caminho de Hera, a rainha dos deuses. A ciumenta deusa... Seu lascivo marido estava se divertindo com uma das ninfas. Eco, cheia de alegria travessa, deteve a deusa com sua conversa, até que a ninfa fugisse para um refúgio salvador. Hera ficou furiosa quando descobriu que essa ninfa travessa tinha ousado enganá-la com semelhante trapaça, e ali dispôs impiedosamente uma sentença a Eco. “De hoje em diante”, disse Hera, “a língua com que tu me iludiste ficará atada a de outros. Tua fala será escrava da de outros, e desde este dia até que o tempo tiver cessado falarás somente para repetir a última palavra que teus ouvidos escutaram”.


Segui o caminho de volta a casa, envolvido de angústia, palavras velhas, já sem qualquer sentido ecoando nos ouvidos. Desejando palavras novas, cheias de vida, de esplendor. A dedicatória do amigo Delém, ex-locutor de rádio, aposentado, no livro a mim presenteado, surgiu-me à mente.
Impossível as palavras dizerem sozinhas, inerente à subjetividade, intuição, inspiração. Contudo, poderia encontrar um jeito novo de me relacionar com elas, imprimindo-lhes significados e sentidos outros que não os comuns e normais. Quem sabe no futuro não iria ouvir-lhes o eco ressoando no ouvido de modo assíduo, o que irrita, entristece.


Chegando a casa, entrando no escritório, sentando-me à cadeira de balanço, pensei em escrever algo sem pensar em nada. Creio não haver concretizado a idéia. Contudo, algo diferente surgiu. Decidi utilizar-me do mito da Eco. Jamais o fiz. Esta é a diferença existente em tudo o que já escrevi até hoje.


As letras são magias sem precedentes. As palavras não dizem sozinhas, quando as pronuncio, leio, escrevo, mas se as registro na folha branca de papel o que era fantasia torna-se realidade. A fantasia de dizerem por si sós, sem a minha interferência, é impossível. Registrei essa impossibilidade, inclusive, só agora o vejo, o mito da ninfa Eco mostra nítido a necessidade de interpretação, análise, saber o que nas entrelinhas estou desejando dizer.


#RIODEJANEIRO#, 18 DE MAIO DE 2019#

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