#RITMO DE ÁRIAS PRETÉRITAS# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA




Sou feliz por me esquecer as horas todas...
Afigura-se-me ser a sensibilidade, subjetividade humana, instante-limite da revelação em que não posso, nem consigo, a bem da verdade, deixar de presenciar, desejando ou não, bem não o sei dizer, mas me sinto disponível, com todas as contradições, dialéticas, medos, fantasias, quimeras; é o instante em que necessito, antes de nada, acima de mais, da expressão destas dimensões que se me revelam simples e em absoluto – por que a necessidade de advérbio de modo? Empobreceria a linguagem.


Às vezes, faz-se mister ensinar aos de inteligência curta como proceder diante do estilo e linguagem; um editor dissera-me ser a engenhosidade de união da inteligência e estilo -, apesar da distância de significado e sentido existentes nestas palavras. Todos os caminhos, agrestes, íngremes, serenos e extasiantes, mas verdadeiros, levam-me a esta subjetividade, o desejo de estabelecê-la em mim, mostrando como, em primeira instância, se revela.


... Busco o ritmo de árias pretéritas. Gesto em ser gesto real se meça, não está em mim realizá-lo, patenteá-lo, fazê-lo - acaso estivesse, seria que me dispusesse para esta árdua tarefa? -, mas na vida, o nada sagra quando extingue, quando finda porque o que é só é o não ainda. Só me recorda o modo demasiado imperfeito, o estilo desplausível de composição. Entre um começo e outro nada há senão o nada da vida vivida. A fim de me não entristecer, interrompo-me. Olhares de viés a todas as coisas visíveis e invisíveis, instante de devaneios. Corrosão do que novamente em velho se mudou antes de o ser.


Infelizmente, houve outras revelações, enquanto estive a escrever, revelações íntimas; perdi-as, tendo de recomeçar, e todo o esforço será de me aproximar destas emoções e sentimentos antes sentidos e que havia de algum modo estado feliz, realizado, sentia que falava de outro mim próprio, de tudo isto o que se me revela ao espírito; de algum modo, penso que desta vez será mais profundo ainda, posso ir além das “movediças fronteiras da lembrança e do esquecimento”, o que me não era possível outrora, como o dizem uns amigos de minhas relações íntimas e afetivas, de amizade e reconhecimento, e ainda estão a tagarelar pelas esquinas e calçadas, restaurantes e calçadões, não aceitam o que fizera da existência, o que pensara ela fosse, simplesmente deixei os passos seguirem a si mesmos, mas o que importa é que nestas trilhas re-versadas, in-versadas pude re-colhê-las, a-colhê-las, senti-las, sê-las. Confesso que, com eles, aprendo o essencial, conhecem as nuanças do tempo e das situações; quem mais teria este poder e autoridade sobre mim, somente alguém a quem irei referir-me mais tarde.


Delicadeza de coisa vivida, depois revivida, e não um certo arrojo irreverente, insolente, inconsequente de quem qualquer noção possui do que seja isto reviver coisa vivida. Do ritmo das árias pretéritas, o lembrar a mim, em sigilo e silêncio, aquele clima de confissão mui íntima, como uma ponte, mata-burro que seja, onde de noite ninguém não já passasse, viesse notícia das mais alvissareiras de outro horizonte em que o meu grito preso na garganta, nó górdio, dissesse à minha voz que não ouviu e veio, quanto vansaço inverossímil.


Não posso me lembrar do que havia apresentado antes; aqui, mesmo que esteja distante daquelas palavras, e mesmo dos sentimentos, da intuição, por que não?, represento esta busca. Cabem-me só a perspicácia da linguagem e estilo, a argúcia das ideias e pensamentos, cabem-me elas, apesar do cacófato, para representar a busca. Quero orações, sejam apenas frases, tecidas com fios de verbos frasais. Os verbos frasais são a tensão mágica do silêncio.


Quem sabe assim poderia chegar ao momento em que escrevesse algo de mui singular, afetivo, terno, carinhoso, e tudo o mais atrás se tornasse uma lenda, um mito, e até vivendo esta lenda, toda a vida fosse a procura de resgatar, de recuperar um instante do espírito, isto porque escrevo em um computador, fosse manualmente nada disso teria acontecido. Não me esqueceu asseverar que nada escrevo, se não ouço músicas, contribui para a melodia e harmonia da alma e espírito. Tornei-me sobremodo preguiçoso em se tratando de escrever manualmente, manuscrever. Tenho preguiça de assinar o nome, garatujo algumas letras escrachadas e confusas. Recente, aconselhável asseverar, a preguiça escafedeu-se, retornando aos manuscritos, na praia, tomando uma cervejinha, comendo um delicioso peixe comigo a companheira da vida e das artes, pena e lápis deslizando nas linhas de cadernos, agendas, o mar aberto para a imensidão do azul.


A fim de que não me entristeça, interrompo-me. Ouço um pouco da música que toca livremente no arquivo de músicas. Antes, dizia que, às vezes, é-se pensado que ouvimos uma nota, ritmo, harmonia; em verdade, ouvimos outros adiante, e esta distância é a mesma de estarmos ouvindo as notas, ritmos, harmonia, um instante a ser outro adiante, e assim é que nutro e alimento a vida, embora alguns possam não contemplar esta realidade, não a sentir; é uma verdade unicamente minha.


Intenciono ser, isentar-me, ausentar-me de mim, ir ficar no interior, ser ele, entregando-me inteiro? Creio que, antes, teria apenas dito “isentar-me de mim”, esquecendo-me de ser um pouco mais sincero, dizendo também que intenciono ausentar-me, recuperar-me, resgatar-me nos caminhos do rio sem margens, sem pressa, ser-me inteiro, embora as contradições, paradoxos, dialéticas, erros e enganos, faltas e carências, enveredar-me por aqueles segredos mais secretos da memória, recordação, lembrança, acalentar e ninar outros desejos e utopias.


Aliás, se presto a atenção devida, não estava afirmando, e sim questionando desde o instante em que existe um ponto de interrogação no término da ideia e da frase, não há em mim a separação da ideia e do registro em palavras, como a pensei, intui, e isto desperta inúmeros questionamentos, deixando um homem indeciso se assim o registra, se assim não está servindo a uma fantasia, aquando os caminhos são de busca da seriedade e dignidade além das “movediças fronteiras da lembrança e do esquecimento”.


Questionamentos àquele quem necessita replicar-me, mostrar o lugar merecido, e não recebeu o dom gratuito de um estilo pobremente similar; é preciso ser inteligente, e perspicaz, se for possível.


Tudo se torna uma utopia. E quem pode acreditar nisto de utopia? Desde o início, significa haver toda uma dificuldade de realização dela, mas é com a sua consciência que a torno possível de realização, depende de mim, depende do desejo de a realizar.


Nenhuma satisfação parece-me pertencer? Sendo o único a gozá-la, faço-o tão somente por orgulho e picardia.


... O desejo de amor, além de somente viver de entrega, interpenetra a lembrança do labirinto cujo estranho e patético rumor chega através do êxtase, ao esquecimento do abismo cujas estranhas vozes e sussurros chegam-me aos ouvidos a partir da sublimidade.


Devo confessar que me sinto realmente livre, aquando me ponho a escrever de acordo com o que a consciência vai ditando, de acordo com as vozes que me sussurram aos ouvidos, ouço-as, busco transmiti-las em palavras, às vezes desejando-lhes amenizar a dor contundente, suficiente despertar-me no aconchego e seio de sonhos de outrem, sem nenhuma preocupação com um sentido antes, mesmo que inconsciente, determinado. Porque a banalidade que medeia breve idéia, como à pedra vulgar por entre a areia, esquece o que em tomá-la a rareia. O prazer de deixar os dedos irem digitando nas teclas o que o coração, a mente, o espírito, a alma, o corpo mostram-me através de suas luzes incandescentes, às vezes acompanhadas de algumas sombras.


Escrever o espírito que fere tremulamente as cordas de um instrumento, as cordas de sonhos do verbo amar, as cordas de emoções simples e humildes, de sentimentos sarcásticos, pernósticos, pornaicos... Por que não o faria? Toda a vida, no sentido de mergulhar na vocação de felicidade e prazer, entrego-me em mãos.


As palavras, os modos, as atitudes, a voz dócil e meiga, o corpo são uma saudade plena e absoluta da vertigem do despertar. Dou corda ao relógio do tempo, como os ouvidos dão passagem aos ritmos e notas presentes que são outros, um sonho dentro de um sonho, dentro de outro sonho, dentro de outro sonho. Deixar-me “livre e espontâneo”, embora esta expressão esteja démodé, e quem a usa não tem conhecimento da estética da língua, de sua beleza, não sabe usar os seus recursos. Quem pode dizer que esteja dando importância a isto? Não estou. Recebi gratuitamente das mãos de Deus o dom do sonho estético da beleza, deixando-me ouvir-me ser música. Dou corda aos sentimentos e emoções desta felicidade de me esquecer das horas TODAS, tenho todo o tempo do mundo.


Compreendo agora o que está sendo de mim, porque rios estou a navegar. Correspondência anterior e interior: lembranças e recordações de acontecimentos. Aprecio mais os tesouros dos campos. Venero mais os caminhos de luz nas trevas. Espero que ninguém tenha a ousadia de “espiar Pitibiriba” de soslaio.


Não levo em mira recompensa alguma, cedo-me às carnes do ócio. Sou feliz por me esquecer das horas TODAS. Busco o ritmo de árias antigas. Só me recorda o seu modo demasiado imperfeito. Deus. Interior. Amor. Misericórdia. Anunciação. Nous. Ternura. Inner. Núpcias. Afeição.


A fim de me não entristecer, interrompo-me. O desejo de amor, além de somente viver de entrega, interpenetra a lembrança do labirinto cujo estranho e patético rumor chega através do êxtase.


Levando-me à solidão, onde de algum modo falarei ao coração; e ela, a solidão, responderá aos compromissos, como nos dias da maturidade, sem a preocupação de tecer desculpas, aquando as palavras revelam ódios, raivas, a qualquer momento podem enfartar-se, e daí para frente serão palavras mortas, e quem as escreve nem sabe de sanções da justiça, bom senso, e práticas da misericórdia.


Compreendo ou me persuado - o que importa esta diferença?; creio que nenhuma; e, caso interesse, é que ”compreendo” se refere à contemplação do interior, enquanto me “persuado” é algo vindo inerente ao desejo - de que maduro estou, enfim, para uma forma, estilo, linguagem novos. Para além de simples vontade estou.


... As palavras, penduradas no tempo, vão desfiando novelos de linha, tecendo letras de compreensão e entendimento.
Cada instante é essencialmente insubstituível; faz-se mister concentrar-me unicamente. Quisera-me mais difuso. O amor espera-me a cada instante. Conheço-o sempre e jamais o reconheço inteiro.


... As letras, suspensas no tempo, vão imprimindo no espaço imaginário do papel a lingüística do instante. Há certa intensidade de clímax que o homem mal pode ultrapassar, e não sem umedecer os olhos. A dor que sinto
no outro obscuro de mim nunca fala a minha voz, mas de quem de mim ausente, mais só do que ao estar só.


A circunstância de estar aqui sentado à cadeira de poltrona, não mais adiante nem mais atrás dos pensamentos, conciliados com as emoções, sentimentos, idéias que me perpassam o íntimo, e por isto desejo crer, com empáfia e embófia as mais presentes e fortes possíveis, esteja no lugar da esperança, o que é positivamente um mérito, ainda que acredite estar um pouco desconsolado com a reflexão, por estar no início. Há ainda muitas nesgas de nuvens, de terras e poeiras a trilhar, constitui simples instrumento da Providência – se coloco o termo em maiúscula, afasto-me daquela preocupação de me referir à Divina, e não a qualquer outra que a imaginação fértil possa criar e recriar.


Até as palavras de ódio e raiva, a justificativa de uma desculpa desmedida, necessitam da Providência, pois, caso contrário, corre-se o perigo de estrebucharem nas linhas, mostrando todos os achaques e pitis. Imagino pitis de palavras no papel. Quem suportaria tanta mediocridade?! Creio que ninguém iria usá-las outras vezes. Foi aprendido que a companhia delas é prejudicial à sanidade mental, as caraças nada mais justificam.


... A palavra vaga sobre onda, que, de hesitada e tumultuada, fica indecisa.


Os sentidos dissipam-se, perdendo o ânimo, que, de volátil e inflamável, desmaiam, manifestando por processo exterior a descrição minuciosa e fiel de uma extravagância. Penso dolorosamente poderia estar alhures. Por vezes, não sinto limites no corpo. Ponho ao nível de sensações as extremidades algo longínquas das mais nobres emoções.


O porto, onde minha alma, enfim, repousa, contempla o mar. Por isto é que admiro sinceramente o instante em que posso deixar os dedos tocarem as teclas, seguindo uma inspiração anterior, conhecendo e contemplando o que houvera perdido, novas sensações, intuições, inspirações, e este fora com a palavra “enfim”, colocando-a entre vírgulas, a fim de dizer que chegou o instante de contemplar o mar, de sentir que o porto, onde minha alma repousa, contempla o mar – de novo é necessário sublinhar como se processa com a linguagem e estilo, a alguns, os outros são gênios de entendimento e compreensão. Sim... Quisera eu seguir viagem, sendo as asas, a águia mesma, encontrando-me vez por todas, tudo um sonho dentro de outro sonho!...


Toda forma não assume senão por ínfimos momentos o mesmo ser. A lucidez das imagens traz-me este silêncio cheio de palavras. Este silêncio não se afigura, em hipótese alguma, a um diálogo ou monólogo. É um silêncio ausente de silêncio. É uma ausência de silêncio, faltando e falhando no enigma do escuro, no segredo da claridade.


O que fazer? Sou homem quem se sente expulso do silêncio e raízes. A missão é dizer as palavras claras e nítidas, ao nível de entendimento de quem quer que seja, mesmo que inconsciente, não tendo noção do que está lendo? A beleza e a poesia, acompanhadas de ritmo, melodia, arranjo, são responsáveis pela leitura. Encantam.


Procuro, por vezes, no passado, uma série de recordações, a fim de, com elas, criar-me, estabelecer uma história, mas me encontro longínquo e minha existência insufla-se de memórias. Nas mínimas circunstâncias, quem ama lembra-se de seu amor, o significado e sentido, retém, entrega-se de corpo e alma, doa-se na sua realização.


Surge-me que só vivo em um átimo de instante sempre inusitado. Emoções e sentimentos são outros.


... Como se sente no mundo, a autenticidade é a solidão.
É o ser quem vai sentir e emocionar-se, vibrar-se até. Terá penetrado por completo em seu íntimo, inteirado dele, sentido. Isso a que denominam “repousar-se” é-me um impossível envergonhamento, um limitado constrangimento.
Não tenho qualquer necessidade de imprimir palavras em tábuas de carne; se acaso se manifestam, ouso com humildade deixar o pássaro cantar noutra freguesia, seguindo as linhas com enorme calma, tranqüilidade. Acaso, adiantam as palavras nervosas, raivosas? Escrever em tábuas de pedra. Não flor, nem fera. Tem-se de respeitá-las, cuidá-las com esmero e apreço, e não condená-las a qualquer momento enfartarem-se, não podendo mais desfrutar de seus louvores e glórias. Com humildade, sem necessidade de pedidos de desculpas e perdões, pode-se com elas alcançar o silêncio que tece as mais lindas orações de júbilo e alegria. Seria mais fácil!...


Seria muita arrogância, petulância, mas não tenho nenhum pejo de reclamar de Deus o por quê de Ele não haver dado este mesmo dom a alguns. Por que fora eu o Seu escolhido? Talvez, quem sabe, não teria sido melhor dividir com outro alguém quem merecesse a Seus olhos.


... Alcançar o silêncio que tece as mais lindas orações de júbilo e alegria. Seria mais fácil!... As palavras, penduradas no tempo, vão desfiando novelos de linha, tecendo letras de compreensão e entendimento. A palavra vaga sobre onda, que, de hesitada e tumultuada, fica indecisa. Como se sente no mundo, a autenticidade é a solidão.


À conta de algumas dissipações antigas, e que ora se tornam presentes, e só ao longo do que for registrando é que posso senti-las presentes em mim, agora são apenas as promessas, anunciações, não esteja esperando haja a revelação. Mesmo sem qualquer ideia, sou imbuído da engenhosidade e perspicácia para criar algo, às vezes até mais profundo do que se possa em princípio imaginar. Intuo, sem dúvidas, um olhar de soslaio e cinismo, digo-o com a pena da galhofa, e sei, contudo, que, se estiverem sendo dirigidas a alguém, ele não terá condições de as entender, pois que não é a caneta que as escreve, mas o ódio embutido, a raiva interiorizada. Peninha!...


Digno de reconhecimento!... Difícil isto de registrar a raiva, o ódio, à parte das palavras. Não seriam necessárias. Caberia apenas retirar de dentro a raiva e o ódio, colocando-os no papel. Mais fácil! Não se gastaria tanta massa cefálica, não sobrecarregaria tanto a inteligência curta.


Não consigo mais entender a palavra solidão.


Alcanço-lhe a profundidade, aprofundando mais e mais no que está surgindo em mim. A presença efemeriza-se no tempo. Procuro a originalidade no âmago e essência. Impedem-me de encontrar a despedida autêntica, original, a tristeza e o desconsolo de tão incomensuráveis são.


O itinerário propício para encontrar a alma é afastá-la o mais possível de mim, não deixando a razão interferir. Ser inteiro em mim é não ser a mim. Existir só em mim é não ser mais alguém. Viajar unicamente em mim é afastar-me de mim. Representar-me em toda a essência e vitalidade... Sinto um frio intenso no olhar.


Não é só de desfrutar a presença o desejo de mim. Não é só de degustar as palavras a vontade minha. Não é só um anseio a sensibilidade pura. Habito-me e sou habitado. O desejo de mim daí me expulsa. Sou levado às antípodas do infinito, onde só a subjetividade é capaz de perceber-me.


Trago-me ao mais longínquo aquém de mim, onde só a intuição é capaz de revelar-me. A mais linda recordação só se me revela como escombro da paz. A mais bela lembrança só se me manifesta como vestígio da felicidade. Os olhos brilham intensamente. Vivem um amor, sentindo a sua presença. A mais exótica e estética lembrança só se me apresenta como resquício da calma. ... O mais inusitado e ético esquecimento só se me apresenta como um anátema do silêncio e raízes.


Crio a mim para envelar a ausência. Semelhanças há, mas elas se referem à superfície. Sorrio-me profundamente, sorrio na profundidade – um perfeito sorriso infantil: só me resta manter uma relação de realidade e subjetividade comigo. O menor pingo de orvalho da noite, lágrima que seja, em me umedecendo a fisionomia, já se me torna amável realidade. A mais estilística memória só se me aflora como real abstrato. A respeito de minh´alma, fico apenas como interrogação. Não me importa, sendo uma correspondência íntima. Nos sentidos e significados, de minh´alma, a presença não sinto. Por estar envolvido, por não aceitar, o que está sendo revelado, despercebido passa.


Por que não haver estas dissipações? Há quando os desejos se afloram todos, pujantes, contundentes, o êxtase pleno e divino. Por que me não lhes entregar? Por uma questão de pundonor? Palavra horrível esta, contudo deixo-a impressa como atitude de rejeição ao som da pronúncia. Eu que sempre admirei a pronúncia horrível das palavras complexas e difíceis, rindo até perder o fôlego, descobrindo então que me poderia dirigir a alguém com todas as críticas possíveis, sem que ela entendesse uma só palavra, havendo até quem pensasse estar sendo encomiado a todo vapor, os inteligentes a saberem que estão sendo criticados, mas não podendo saber o nível das críticas. Seria preciso chegar a casa, tomar em mãos um dicionário, mas as palavras, o sentido que elas têm no contexto só se houvesse gravado tudo interiormente, após um longo ensaio de memorização. Pudesse virar a folha ao avesso, a compreensão viria, com efeito, viva e latente!...


Mas como fazer isto?!... (Não me afastando, não me envolvendo, conservando uma distância, estou esclarecendo a alma, o mais profundo, o que sinto, o que penso. Em me pensando, não me é possível sentir: não sinto quem sou. Em me sentindo, afloro-me: sou quem sou no que não sou e sou. Afloro este ser e ele se aflora por inteiro).


... Torno-me uma linguagem aberta em que se me pode ler o âmago.


Por que estou a intuir, imaginar, pensar que só um músico-amigo seria capaz de entender que estas letras não são apenas letras e suas mensagens, mas a verdade mesma de mim, e por toda a vida fora difícil assumir isto no íntimo? Não o sei. Quem sabe por ele ser o único quem recebeu das mãos de Deus gratuito o dom de ouvir o Som das Luzes!... Mas é verdade que só este músico-amigo seria capaz de traduzir este sonho que me perpassa a alma e o íntimo. Senti profundo, experimentei o sabor, degustei-o com sabedoria e percuciência, a vida com uma artista-plástica significa um sonho patenteado, mas a companheira da vida era o que desejava com contundência. Traços e cores. Palavras e imagens. Sentimentos e entregas. Emoções e mãos entrelaçadas.


O mais recôndito de mim enche-se enfim de paz, que a solidão exaspera e que o tempo afadiga. Tudo isto sinto absurdamente. É querer ser o mais autêntico, atingir um incomensurável nível de originalidade e singularidade. Sirvo-me da espera do belo futuro, e o caminho que a este conduz jamais se me afigura interminável, e por ele me desloco a palavras largas e distantes.
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Afigura-se-me, então, sentir menos estranhamente o chão de terra e que ele me adentra melhor. É um afluxo de fora. Sou o profundo em minha autenticidade. Estou a distanciar-me do que é supérfluo e superficial. Encontrei o amor verdadeiro da vida, não apenas de sonhos de eternidade, mas também de contingência, a mulher a quem doei e entreguei verdadeiramente o amor que reside e habita o ser. É conservar os íntimos, não é apenas ela, mas os amigos íntimos, mais que íntimos, assim o sinto, como deles me lembro com carinho, afeição, ternura, gentileza, compaixão, solidariedade, entrega. É conservar os que me são queridos. Todos os sentidos abertos acolhem a presença. Tudo em mim a isto convida.


Jamais alcançável haverá um abismo sem a presença dos sentidos abertos. A estes sentimentos as palavras não se prestam. Ou melhor: a estes sentimentos não se prestam as palavras. Aspiro a tudo com delícia. Procuro cansar os desejos em vão. São nobres os sentimentos, as emoções, a alma, modificando um pouco os caminhos do homem, e estas modificações tornar-se-ão metamorfoses. Cada um dos pensamentos é um fervor.


O íntimo entreabre-se um instante num aconchego de luz. É a nobreza do desejo intenso alcance o que o testemunho do mundo reflete em sua plenitude. Imaginar as lágrimas, a comoção, a alegria, e, no fundo, a conquista do espaço no interior.


Não seria menos fastidioso se somente usasse palavras do conhecimento de todos, com clareza e nitidez, daria o recado com mais dignidade? Não seria menos fastidioso, se apenas criticasse livre e simplesmente, não me enfastiaria com tanto louvor nas costas? Por que tenho estes péssimos hábitos de críticas enveladas? Por que cansar a cabeça do criticado? Se o tamanho de sua inteligência é muito pouco, de curta inteligência é, por que se põe a lamentar de suas palavras, a ponto de se desculpar e justificar perante elas, a falar fácil... Não entendo bulhufas do que está escrito.


Ah, enfastio-me com a facilidade. Há-de se considerar que a curta inteligência fora capaz de chegar apenas às desculpas e justificativas, às etiquetas e diplomacias.


O mundo é assaz vasto, e tenho meios de viver onde quer que haja ar puro e muitas serras. Era de se esperar que no lugar das serras fosse preferir muito sol... Não há mais a ser dito sobre o lugar de ar puro e muitas serras, mas de antigas dissipações, que dentro em mim trago, às vezes nelas mergulhando com sentimentos afáveis e ternos, sem qualquer vergonha de as não haver superado, o que pode significar, sem dúvida, que as “pedras duras”... como a elas se refere o músico-amigo a quem me referira antes...


As “pedras duras” se encontram à porta do prostíbulo onde um casal de libertinos se abraça e faz juras de amor, espiando a lua e as estrelas solitárias no céu, noutras noites são as palavras que espiam a lembrança e a recordação. Amor passageiro, quem sabe a prostituta não viva mais amor tão contundente, e o amante desça as escadas acompanhado de amigos que dali o foram retirar, as palavras não merecem tanto sacrifício, não podem ser crucificadas por um amor libertino.


Se eu soubesse o significado e sentido do amor...


Nem seriam somente lembranças e recordações, instantes felizes e alegres, momentos de inteira realização. Tudo é silencioso. Há volúpia no silêncio. Afigura-se-me há gosto suave no silêncio. Encho a boca de um gosto de mel e de deliciosa amargura. No âmago de mim, enorme feliz sinto por estar sendo profundamente original. Irei sentir a ausência de um abraço de despedida.


Percorro os cômodos sem reabrir as janelas fechadas há muitos anos, nem ergo as cortinas. Perambulo pelos labirintos abrindo as frestas, escancarando as portas. Um homem deve mesmo interessar-se por conhecer a vacilação da planície, inteirar-se dos séculos, lutas por se realizar e assistir aos homens realizarem-se. Não reivindico passe a assumir os valores e princípios a História constituiu.


A busca de uma moral não me parece muito hábil, nem mesmo provável, enquanto não souber plenamente quem sou. Como homem no mundo, por se realizar, será o significado e sentido, será o presente. O sentimento de uma plenitude de vida, provável, mas ainda não atingido, deixa-se, por vezes, entrever, lega-me o ensejo de vislumbrar, e torna a voltar, em meio a essas eternas represálias. Poder sentir-me seguro, usufruir-me, realizar-me, como um ser novo, encontro-me aqui na superfície, nas linhas, sob um céu novo e no meio de coisas completamente renovadas.


Não é que reclame do outro a sua inteira disposição para mim. Não é que reivindique de mim a plena espontaneidade do outro. Ou melhor: não é que reivindique de mim o pleno outro espontâneo. Nem mesmo não é que reivindique a plenitude espontânea do outro de mim. O instante é de uma solenidade demasiado ardente.


O mistério da vida recomeça a rumorejar em cada entalhe das emoções. No nível da relação com o mundo, é realizar o desejo de assistir à intimidade desvencilhar-se de si mesma. Recomeça a ruminar, em cada entalhe da percepção, o enigma da viagem. É conceber o homem em sua mais autêntica inteireza. Afigura-se-me a inteireza ser aflorar o não-ser sendo, revelar o sendo-ser, manifestar a evasão da alma na invasão do espírito.


#riodejaneiro#, 25 DE MAIO DE 2019#

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