NA BOCA, ROLAM PEDRAS SURDAS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA




A face das rosas, lírios, samambaias, árvores, próximas do olhar, ao longe, através das grimpas - pequenos espaços entre as folhas e galhos...


Vejo os campos, montanhas, à distância, percebendo as nuvens carregadas, voltadas para mim. Iluminam-se. Cinza claro, não demonstrando bem que irá chover por dias.
Não é preciso dizer não estar aludindo a qualquer ordem ou comando externos, pois não os admitiria. Sou hoje mais individualista. Egocêntrico jamais fui. Não sinto vergonha. Ao contrário, orgulho-me. Meu temperamento era sinônimo de extremismo, paradoxo.


Enchia a vida de êxtases até a borda, como quem enche o copo de vinho. Agora, encaro a vida sob ponto de vista novo. Por vezes, torna-se complicado imaginar a felicidade efêmera e passageira. Vejo novos progressos, na vida e arte, constituindo-se cada um nova forma de perfeição, encontro. Desejo viver pouco mais para poder explorar o que é nada menos do que novo horizonte, montanha que terei prazer em escalar.


Aos olhos, nada parece ter valor, ínfimo sentido, exceto o que consigo obter com esforço, sem rogar e implorar a ninguém que me abra caminhos, escancare janelas. Minha índole procura nova forma de realização particular. A única preocupação.


A primeira coisa que terei de fazer será libertar-me de qualquer jugo ou opinião alheia, sentimento de culpa por dizer o que penso. Aprendi que o dito continua sendo o dito; se houver intenção de aplauso ou elogio de quem quer que seja será inautenticidade chorar mágoas que não são minhas. Não chegarei a afirmar que exílio e indiferença são as melhores coisas que poderiam ter acontecido - tais palavras teriam sabor de excessiva mágoa contra mim, mundo e pessoas.


Nesta imóvel radiação do silêncio, a esperança de paz re-nasça irmanada à de compaixão, dissolvendo-se em imenso apaziguamento. Com olhar gravado de mistérios, nuvens velam ossuários da terra, profunda surdez que me submerge, deserto que me suspende – imagens alteram-se, o contínuo das águas gira depressa. Desde que haja amor no coração, não me importo de dormir sobre a relva fresca no verão e, quando o inverno chegar, procurarei refúgio junto aos montes de feno ou sob o alpendre de grande celeiro. Coisas externas não têm valor – aprendi a conviver com o silêncio do mundo.


Referindo-me ao que aprendi, não distante de angústias, fracassos, lamentar experiências vividas é modo de impedir o amadurecimento. Negá-las, colocar mentira deslavada nos lábios da vida, obrigando-a a tornar-se verdade. Nem mais nem menos que negação da alma.


No deserto viveram os verdadeiros. O espírito é a vida que purifica a vida; a água, moléculas que iluminam; os espíritos livres, senhores onipresentes e oniscientes do deserto. A corrente de todo conhecimento profundo é fria. São geladas as fontes do espírito. Porém, nas cidades vivem os vis servidores e seres subjugados, embora usem arreios dourados.


Se as coisas fossem diferentes! Não me restasse amigo no mundo, casa alguma me abrisse as portas! Visse-me forçado a vestir os andrajos de mendigo! Enquanto estiver livre de todo remorso que ocasionou tais infortúnios, poderei enfrentar a vida com calma. Se o corpo vivesse coberto por fino linho ou seda e a alma que ele abriga doente de angústia e tristeza!


É noite... Fonte, o desejo de fulgor. Eleva-se forte a voz das serras.


O silêncio na boca dos indivíduos faz rolar pedras surdas, depois muda súbito. Sorrio para me desculpar. Os lábios descobrem o esqueleto. Dentes sem origens e raças...


Conhecemos as influências em que o osso substitui o batom. Nós outros temos aversão pelas nuvens baixas, seres de meias-palavras e recitações, seres mistos que não sabem nem compreender fios de ouro nos corações.


Se a vida é problema, não deixo de ser problema para ela. As pessoas são forçadas a adotar atitude qualquer a meu respeito e, ao fazê-lo, estão julgando não a mim, mas a si. Inútil dizer não me refiro a qualquer pessoa. As únicas com as quais gostaria de conviver seriam os simples e com os que já sofreram, conhecem a beleza e dores. Acredito que não sentir culpa ou vergonha de viver é meta a atingir, em benefício de amadurecimento, por ser imperfeito.
Concentro a atenção enquanto escrevo e fumo cigarro de palha, para que a frescura da alegria me trespasse. Há a intensidade essencial do horizonte nulo. É o que me fascina, essa verdade original das coisas, através da luz laminada nas águas. A vida está aí, na linha inexistente da separação que une. Projeto de vida isola-se-me nítido na memória, por isso desencadeei combate destemido à dureza solar da verdade.


Recupero a felicidade simples, fria de estar. Agora que me sei desde distância infinita, reconheço-me não limitado, mas presente, como se fosse o mundo que sou eu.


Agora nada entendo de meus acontecimentos.


#RIODEJANEIRO#, 18 DE MAIO DE 2019#

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