ANA JÚLIA MACHADO ESCRITORA POETISA E CRÍTICA LITERÁRIA ANALISA E INTERPRETA A SÁTIRA "MATULA DE LACAIOS#



Nesta sátira o escritor Manoel Ferreira Neto ironiza com aqueles que são lacaios e servos de determinados senhores que se servem de certos eventos a troco das promiscuidades…Mesmo os que se dizem eruditos caem na teia do Demo…ou não…eles mesmo são demónios e servem-se dos cargos para abusar de tudo a seu belo prazer…Tantos escritores que fizeram sátira da vida social…A sátira é um estilo apelante em vários períodos da literatura portuguesa, desde suas primeiras demonstrações medievais até a obra moderna do século XX.

Embora a sátira seja um estilo que remonta à Antiguidade, apoia-se a suposição de que, a partir de Bocage, ela pode ser ligada a algumas características da literatura moderna, entre as quais se distingue o sarcasmo censura e paródica em relação às regras harmoniosas imperantes. Ainda que Bocage e Cesariny pertençam a âmbitos históricos desiguais e contenham estilos literários de características particulares, ambos empregaram enfaticamente a sátira como forma de criticar tanto os hábitos e valores burgueses, quanto as formas literárias e os princípios estéticos enaltecidos no contexto em que habitaram.

A sátira pode ser usada como um potente utensílio para exibição de ideias, sendo usada em jornais, revistas, televisão, redes sociais, cinema etc.;

Nas sátiras igualmente é exequível espreitar um certo estilo de acusação com relação a assuntos que, supostamente, deveriam ser regrados de forma séria.

Onde revejo todos estes aspectos no texto apresentado pelo escritor Manoel Ferreira Neto…trata de assuntos sérios satirizando…como o caso dos ditos “senhores” e o diabo como ser da tentação…que serve de uma boa desculpa para quem não quer assumir suas cretinices.

As sátiras possuem um forte estilo maldizente, elas nem sempre são utilizadas de forma destrutiva, diria que com certeza nenhuma será de crítica aniquiladora…serve para colocar alguns seres distraídos a pensar…

É muitíssimo usual que as sátiras abranjam conversas com mistura de estilos literários. A título de exemplo temos; a sátira de Eça de Queirós em "Os Maias"
Modelo crítico da sociedade portuguesa da época, "Os Maias" é uma das obras mais tratadas nas escolas. Eça de Queirós exibe-nos um mundo repleto de peculiaridades e conduta que, em parte, ainda autenticamos nos dias de hoje.

Num ancoradouro, dois barqueiros, um Anjo e um Diabo, esperam viajantes que peregrinam para o outro mundo. Este é o pano de fundo para o quadro que Gil Vicente, dramaturgo da corte portuguesa no século XVI, vai desenhar da sociedade de então.

Interpretado pela primeira vez em 1517, O “Auto da Barca do Inferno”, tem como actuação o julgamento num embarcadouro, onde os juízes, um Anjo e um Diabo, dissertam quem ingressará na barca de cada um, sentenciando os seus passageiros à viagem para o Paraíso ou para o Érebo.

"Auto da Barca do Inferno", de Gil Vicente…uma sátira perfeita…

Por lá passa a representação de toda a sociedade portuguesa da época; desde o Fidalgo ao Parvo, figura apelante da obra de Gil Vicente e, no final, o Diabo é quem leva mais viajantes na barca.

Que estavas tu a dizer à criada? Quando chegaste do mercado? Porque estavas a olhar para Fulana? Esta caricatura tem o seu fundo de verdade. Mas que é melhor abrigar um dragão, em casa, do que certas mulheres, parece-nos um pouco forte. Contudo, a sátira, o humor satírico visa, pois, para a subtileza, ironia e uso do resultado burlesco do deadpan (estoicismo do satírico, como se não compreendesse o caricato das situações que expõe).

Nas sociedades descrentes , crê-se que uma sátira constituída por um bardo tinha resultados físicos, idênticos a uma praga.
Hoje ainda podemos falar de sátiras e paródias audiovisuais, que nada mais é do que as proliferações da sátira ou da paródia como as reconhecemos através de meios audiovisuais, como a televisão, o cinema e mais recentemente a internet. A sátira e a paródia aqui adquirem componentes novos, pois passa-se a trabalhar com o entretenimento de imagens e sonâncias, sendo esses dois os principais elementos com que se irá criar o resultado cômico ou o efeito crítica-ironia, e não mais através meramente do texto e de sua interpretação. O leitor da sátira e da paródia passa ao assistente desses géneros que em última análise podem se exteriorizar em qualquer linguagem.

Uma das características da sátira antiga é a adequação paródica dos mais distintos estilos literários da Antiguidade, envolvendo uma diversidade estilística em que prosa e verso achavam-se misturados no mesmo texto. Mas outra origem, ligada à língua grega, alia a sátira à forma lendária do sátiro, recordando uma de suas características mais relevantes, já descoberta na comédia antiga e difundida ao romance: a dessacralização. O que qualifica a sem-cerimónia satírica é o seu caráter acusador e moralista. De facto, o propósito da sátira é opugnar os erros da sociedade, o que facultou proveniência à locução latina: "castigat ridendo moris", que se pode traduzir espontaneamente como "punir os hábitos pelo júbilo". Por seu caráter delator, a sátira é particularmente paródica, pois edifica-se através da achincalhação de individualidades (autênticas ou simuladas), preceitos e assuntos que, segundo as convenções tradicionais, deveriam ser regrados em estilo distinto. Ou seja: a sátira graceja de conteúdos e criaturas "austeras", para acusar o que há de putrefacto por trás do semblante aristocrata pespegado à sociedade. Logo o regozijo satírico é absolutamente antagónico à imaginação sublime.

Sendo o regozijo satírico em geral grandemente irónico, o excêntrico é um dos comportamentos queridos do satirista, que costuma exibir a deformidade caricata do corpo da pessoa satirizada como uma fábula dos seus vícios éticos.

Revejo neste texto de Manoel Ferreira Neto, tudo que explano para explicar o porquê de ele satirizar…e não é qualquer escritor que tem o dom de usar tal instrumento, para exibir os males do ser humano e da sociedade.

Ana Júlia Machado

De excelência, Aninha Júlia, a sua interpretação e análise, elucida com primor o que é "sátira" e a sátira na História através de inúmeros escritores que a exploraram. A primeira sátira que eu li na vida foi O ASNO DE OURO, de Apuleio. Seguiu-se O AUTO DA BARCA DO INFERNO, de Gil Vicente, através da disciplina Literatura Portuguesa II, no Curso de Letras. Fizera eu um trabalho a respeito, MUITÍSSIMO ELOGIADO, TIREI 10. Lembra-me o professor Onofre de Freitas dizendo: "Manoel, creio eu que um dia você irá escrever sátira, mas lembre-se sempre disso: a sátira requer erudição, requer muitos conhecimentos da Literatura e da Filosofia, sobretudo sensibilidade." A partir dessa fala do excelentíssimo professor, iniciei a minha caminhada da Sátira, Erasmo de Rotterdã, Voltaire, Gregório de Matos, Dostoiévski e muitos outros. A fala do professor estava certíssima: é preciso muito conhecimento, erudição e sensibilidade para escrever sátira, não é gênero para qualquer um - aliás, em nossa contemporaneidade, ela está esquecida, nossa contemporaneidade carece sobremodo de erudição, não possui qualquer. Digo a plenos pulmões: AMO A SÁTIRA DE PAIXÃO. Sendo o mais frio possível, digo que os escritores de hoje são servis, servem com primor e categoria ao ridículo da Literatura, conseguindo ser ainda mais ridículos, neste terreno íngreme é que criei e fundamentei esta sátira.

Beijos nossos, querida, a você e à nossa netinha Aninha Ricardo.

Manoel Ferreira Neto

MATULA DE LACAIOS
GRAÇA FONTIS: PINTURA
Manoel Ferreira Neto: PROSA


Temo os longos silêncios que deixam a vida em branco, as pequenas frases que parecem nada conter e, no entanto, selam pactos e rupturas, lacram as correspondências do destino, uma palavra supérflua, mão que escorrega.


Se vos digo que necessito investigar, dando-vos a resposta após, não sou capaz de não confirmar o que me fora apresentado, para não admitir com candura e delicadeza um caráter há muito massageado pelo véu que o encobre, mas vos digo, o que tiver de ouvir, fá-lo-ei com êxtase e júbilo, e não penseis que por orgulho próprio é que ajo neste sentido e estilo.


Mas se vos digo, de antemão, que não tenho dúvidas de não haver agido da forma a mim apresentada, revolvo o inferno, e se precisar vendo a alma ao Demônio, pedindo perdão a Deus por ato tão espúrio, com certeza assim é o estilo e minhas palavras.


Sinto sim algo bem sublime por esta matula de lacaios, se necessário apresentar-lhe-ia uma correspondência com todas as veemências de linguagem e estilo, reverências, pedindo-lhes, rogando-lhes, implorando-lhes a minha inscrição para sentar-me à cabeceira da mesa com todas as honrarias, não só contemplar os seios soltos no vestido de seda transparente, os pelos da púbis, com os lábios molhados de tesão e voluptuosidade, a mulher das noites de domingo.


Refestelam-se confortável e singularmente o dia inteiro no proscênio e mal se dão ao trabalho de cumprimentar com um aceno de cabeça, mesmo que de modo a estar replicando a todas as atitudes e ações por toda vida e existência, se há algum modo de unir, como a luz e o amor estão unidos.


Ostento uma corrente de ouro no relógio, mando fazer botas de cinqüenta reais. Serei eu, porventura, e não me respondam de imediato, permito-vos investigar um pouco mais para vos certificarem de meus pontos de vista e de cegueira, da estirpe porqueira, algum filho de alfaiate ou de taberneiro? Até não me causaria nenhum estranhamento precisar de um serviço deles, estariam morando na mesma rua, no máximo, na esquina da rua de baixo. Ainda que em minha época seja nobre e sublime entrar em serviço aos quarenta, terminando as contas do rosário, tomando uma boa dose de underberg.
Bem que eu poderia ter direito, parece-me, a um pouco de destino – por mais que o queira, evita-me, a luz que chegou a me ofuscar, acaba por se apagar ao lado. Os cães são uma raça inteligente e sensível, conhecem todas as relações humanas e políticas, por mais nobres ou interesseiras, e, assim, sem dúvida tudo estará aqui dentro, o retrato de todos os venenos do homem. Não fora por menos que o Senhor de todas as luzes e trevas não legou a duas cobras os mesmos dons e engenhos. Por mais que revolva essa noite, escrutando a longa vida branca que nunca foi pródiga, por mais que o faça, por mais que o deseje, sou eu quem vê emergindo de um fundo de luz lisa, sem conseguir furar a sombra, a pequenos prismas e perspectivas, o véu noturno que recobre o contrário humano.


Parece-me que participar e partilhar com outrem os prazeres e deleites, sentimentos e impressões, é uma das felicidades do mundo. Se tivesse um rabinho por mínimo que fosse, penso no de um leitãozinho que o gira sentido anti-horário com a presença de seu criador, estaria com ele agora todo serelepe. Hum! Este pensamento é tirado de uma obra traduzida do russo. Do título é que não me lembro.


Imaginai que um destes lacaios, com sua bengala de ornamento de prata, lembrou-se ou ousou, não consigo pensar uma diferença entre estes dois termos, oferecer-me rapé sem se levantar. De qualquer modo, isto sem deixar de lado os três tapinhas no ombro, principiava de um modo razoável no métier destes ignaros senhores e acabava suinamente, retirei do pescoço uma fita azul de um ombro ao outro, sentando-me e colocando a bengala de lado, encostada à pilastra.

A mim só me interessava estar ali trocando um dedo de prosa, discursando sobre as mazelas e imbecilidades humanas como se não houvesse assunto mais edificante e maravilhoso de se falar numa mesa ao centro, e, ao lado, os comparsas mais distintos e dignos. A mim só me interessava os ossos da costelinha de porco com bastante cebola. Também aprecio molhos misturados, contanto que não haja alcaparra nem legumes.

Caminho para a mesa, onde escrevo, e abro uma gaveta; tiro de dentro um pequeno cofre, em verdade, um artesanato, com umas rosas pintadas na tampa, coloco-o diante de meus olhos. Dentro havia um envelope com letra cursiva, muito legível, havia sido muito bem cuidada, com um laço verde feito de uma fita; abro-o e existe uma cartinha. Enquanto me provocava com a beleza daquelas letras, tornei-me velho, convertera-me num ancião de milênios, com os cabelos brancos como a neve, e o rosto enrugado de ancião sorria sereno e tranquilo, um riso que me comovia as entranhas com a enigmática palavra dos velhos. Acontece que palavra é palavra; já me comprometi com outras mais, inúmeras, tenho de ir.

As portas fechadas. Ergo diante de mim melancolicamente, às vezes espiritualista, por vezes louco, nunca perdendo o domínio sobre as impossíveis grandezas, sempre sonhando altos projetos, e sempre acordando para fins imbecis e hipócritas. Na verdade, só o vazio pode acolher o múltiplo. Sei bem que não serei alguém – devo-me tudo, a começar pelo vazio que cavara em mim e ao redor, como o jogador desafortunado que espalha as cartas sobre a mesa, com as costas da mão, - em nível do mar, em clima equatorial, os dedos se emburguesam e o espírito se achincalha. Minha alma, que havia adormecido na calçada, no frio, e quase se enregela, respira de novo e volta a agitar sonolenta as asas, buscando alçar o vôo...


Ouço sons cheios de alegrias e, no entanto, como aturdido, como meio displicente... Não posso absolutamente entender e compreender o que significa essa estranha cerimônia, os lacaios todos presentes, a estupidez dos magistrados que não aboliram sequer de seus dedos as palavras todas que possam suportar as torturas que se infligem a si mesmos, que a cabeça arda, mas todos sabemos que os homens de conhecimento pensam e sentem as bobagens, afirmando que agem desta ou daquela forma.


Ainda agora o demônio me fez sinal com o dedo indicador, talvez queira colocar alguma discussão séria sobre a mesa. Por mim, cruzo os braços.


#RIODEJANEIRO#, 22 DE MAIO DE 2019#


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