POST-SCRIPTUM:

Após o lançamento da dissertação em Sartre, Alteridade do Outro em Sartre, decidira escrever outra dissertação sobre La Mezza Notte. Esbocei e deixei para noutra ocasião retornar e revisitá-la, revisá-la. Não cheguei a comentar sobre com ninguém, Toninho Fernandes, Wander Conceição, Ivo Pereira. Tiro-a do Arquivo hoje. Confesso que com um vazio no peito: Toninho Fernandes não está presente para conhecer o que escrevera naqueles tempos áureos de nossa caminhada juntos.

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A #intenção fundamental# da obra fora a interpretação do engajamento à luz de Sartre, posto para os autores faz-se história com dignidade, honra, faz-se história com a consciência-ética, esta postura, conduta nada mais são que a responsabilidade com as contingências históricas, isto era engajar-se, inspirada no Discurso de Lançamento da Obra, Caminhos de Luz nas Trevas. Após dezessete anos de concepção, não há modo de resgatar as idéias artificiadas, as estruturas linguísticas, metafísicas, históricas e filosóficas. A obra fica por inacabada. Publicá-la-ei sem revisões senão as gramaticais da Lingua, erros ortográficos de digitação.

Manoel Ferreira Neto

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Engajado, para Sartre, significa ser consciente do poder da palavra. Uma obra engajada é, em Que é a Literatura?, uma que soube avaliar essa evidência bem conhecida, não somente pelos escritores, mas observadores do coração humano: as palavras têm um poder, são lâminas afiadas, a mão hábil tira o osso da carne de qualquer pescoço.

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Desde o início, a obra de Sartre caracterizou-se por esforço consciente para combinar filosofia e literatura a fim de intensificar os poderes de persuasão, de demonstração.



“Hoje em dia, penso que a filosofia é dramática pela própria natureza. Foi-se a época de contemplação da imobilidade das substâncias que são o que são, ou da revelação das leis subjacentes a uma sucessão de fenômenos. A filosofia preocupa-se com o homem – que é ao mesmo tempo um agente e um ator, que cria e representa seu drama enquanto vive as contradições de sua situação, até que se fragmente sua individualidade, ou seus conflitos se resolvam. Uma peça de teatro (seja ela épica, como as de Brecht, ou dramática) é, atualmente, o veículo mais apropriado para mostrar o homem em ação – isto é, o homem ponto final (negrito de Sartre). É com esse homem que a filosofia deve, de sua perspectiva própria, preocupar-se. Eis por que o teatro é filosófico e a filosofia, dramática”2.

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Poder-se-ia aqui indicar Lesky, em sua tentativa de encontrar um estatuto para o trágico, uma interpretação percuciente de “o trágico, tanto na obra de arte quanto na vida, suscita identificações, por isso nos interessa, afeta e incube”. A filosofia, de acordo com a idéia de Sartre, suscita responsabilidade, engajamento, busca de fundamento, revelando-a, desmistificando-a, seguindo o seu encalço nas relações do indivíduo, processo histórico, a personalização.

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O propósito que se encontra por trás desse método resulta da convicção do autor de que, contra o poder dos mitos predominantes e dos interesses estabelecidos, a força da razão analítica é impotente: não se substitui uma realidade existente, firmemente enraizada, “positiva” (no sentido hegeliano) pela mera negatividade de dissecção conceptual.

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Para que a arma da crítica possa ter êxito, precisa estar à altura do poder evocativo dos objetos a que se opõe. Eis porque “o verdadeiro trabalho do escritor engajado é (...) revelar, desmistificar, e dissolver mitos e fetiches num banho ácido crítico (negrito nosso)”3 Essa imagem demonstra o “eidos” do empreendimento.

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Com a imagem da “faca”, podemos, com engenhosidade e arte, compreender o que é isto, a responsabilidade do historiador. Súbito, sente-se viva e forte a sensação de se estar nas trevas, aquela necessidade de detalhes e pormenores, às vezes perdidos, tornando inda mais necessário investigar, buscar a luz nas trevas, os contornos e estratégias, as perspicácias de intuição e observação, as destrezas de compreensão e entendimento4.

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É para evitar a opção pela “fria isenção”. O que está em jogo é a ofensiva geral contra as posições bem fundadas do bem-estar confortável, quer se apresentem como a “cumplicidade do silêncio”, ou sob qualquer outra forma5.

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Sartre deseja sacudir-nos, e encontra modos de atingir a meta, ainda que, no fim, seja condenado como alguém sempre à busca de escândalos.

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O outro ponto, a preocupação com a totalidade é igualmente importante. Sartre insiste em que



“a beleza da literatura está em seu desejo de ser tudo – e não numa busca estéril da beleza. Apenas um todo pode ser belo: os que não conseguem compreender isso – o que quer que tenham dito – não me atacaram em nome da arte, mas em nome de seu compromisso particular”6.

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O modo por que Sartre se torna filósofo moral “malgré lui” fundamenta-se na caracterização do presente como totalidade inerte: um mundo morrendo de velhice, uma época de “revoluções impossíveis”, disseminando e intensificando o sentido de paralisia até mesmo pela consciência de “cataclisma” como única forma viável de mudança.

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Como pode a proposição abstrata “um futuro bloqueado continua sendo um futuro” negar efetivamente tal tipo de depressão e de destruição? Apenas se dele se fizer um absoluto categórico que necessariamente transcenda toda temporalidade dada, por mais sufocantemente real que seja. Quem é o sujeito desse “futuro bloqueado”?

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Se é o indivíduo, a proposição é óbvio falsa: o futuro bloqueado para o indivíduo está inexoravelmente bloqueado. Por outro lado, se o sujeito é a humanidade, a proposição é absurda: a humanidade não pode ter um “futuro bloqueado”, a não ser bloqueando-o para si sob a forma de suicídio coletivo, caso em que não há futuro, bloqueado ou não – e, neste caso, de fato, nem a humanidade.

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Paradoxalmente, o significado existencial (não-tautológico) da proposição produz-se pela fusão do indivíduo com o sujeito coletivo. Seu significado não é, assim, o que literalmente sugere (uma tautologia ou, quando muito, uma banalidade, idiotice), mas o significado funcional de uma negação radical que não pode apontar para forças históricas palpáveis como portadoras de sua verdade e, por isso, deve assumir a forma de imperativo categórico: o dever moral.

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Interessante observar é que a tradição histórica da moral é constituída ao longo do processo histórico da humanidade. A partir da pedra basilar do existencialismo, “a existência precede a essência”, o pro-jeto projeta o futuro, a moral.

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A filosofia moral está implícita em todos os seus estudos, como ponto de vista positivo do futuro, que assume a forma de negação radical, embora incapaz de identificar-se com um sujeito histórico. Este conceito leva-nos de imediato à pedra angular da filosofia sartreana: a existência preceder a essência, fundamentando-a.

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No sentido de expressar sua filosofia moral latente de forma plenamente desenvolvida, coisa que procura fazer seguidas vezes, teria de modificar substancialmente a estrutura de sua filosofia como um todo, inclusive a função, dentro dela, do dever moral categórico. Essa modificação, porém, deslocaria exatamente o dever moral na estrutura de seu pensamento.

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Desse modo, ele só pôde produzir sua Morale deixando de ser filósofo moral. Curioso!... isso explica porque seus esforços conscientes, visando a transcender posições anteriores, resultam na reafirmação mais enérgica possível daquelas como a pré-condição necessária do “impossível empreendimento” em que está envolvido: a dedução de uma filosofia moral socialmente orientada a partir da estrutura ontológica da práxis individual.

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Em se tratando do desenvolvimento de um escritor, o fator essencial é a maneira como reage aos conflitos e mudanças do mundo social em que está situado. Ensinar ao leitor não haver esperança de sobrevivência humana, se ele, o escritor, não estiver disposto a dizer o que acontece, a engajar-se.

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Isso pode ser discriminado em dois elementos básicos: sua própria constituição (estrutura de pensamento, caráter, gostos, personalidade) e o grau relativo de dinamismo com que as forças sociais da época se confrontam mutuamente, arrastando-o de modo ou de outro para dentro de seus confrontos.

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Descrever os intercâmbios entre um escritor e sua época em termos de “rupturas” é, na melhor das hipóteses, extremamente ingênuo em ambos os casos, pois nem o desenvolvimento sócio-histórico nem o individual caracterizam-se apenas por “rompimentos”, mas por configuração complexa de mudanças, continuidades. Há sempre mudanças sob a superfície de continuidades, e algumas básicas persistem, por mais radicais que sejam os rompimentos em determinadas regiões.

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Uma sociedade compõe-se de múltiplas camadas de instrumentos e práticas sociais coexistentes, cada qual com ritmo específico próprio de temporalidade: fato que acarreta implicações de longo alcance para o desenvolvimento social como um todo.

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A estrutura de pensamento de um indivíduo forma-se em idade relativamente precoce, e todas as modificações subseqüentes, sejam grandes ou pequenas, só podem ser explicadas como alterações da estrutura original, ainda que a distância transposta seja tão grande quanto a que vai do “leite à pimenta”.



Sartre pode dizer que L´Idiot é um livro, não de homenagem, mas de ódio a Flaubert. Pode dizer que Flaubert é o seu “contrário”, o “exato oposto” de sua “própria” concepção do escritor, encarnação de um “ideal formal” detestável, nos antípodas do que ele é. Pode dizer: é a continuação de As Palavras; um epílogo imenso, mas necessário; Poulou - assim era chamado por seus familiares – ainda a persegui-lo e que é preciso acabar de se curar; a mesma “profunda e muito antiga conta” a acertar, “no interior da literatura”, mas também no interior de “si próprio”, com o objeto ideal literário; a continuação da mesma guerra; desmontar a marionete, quebrar as peças uma a uma, pisoteá-las.

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O fato é que ele o escreve. É um livro magnífico, maravilhoso, em seu aspecto estético, embora não tenha sido preocupação dele; é, inclusive, sob muitos aspectos, a grande obra, a conjunção de talentos e dons, Marx e Freud misturados, Proust reencontrado, sua Moral enfim realizada, sua Política, Arte poética, o mais bem-sucedido de seus romances.

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Haver-se-ia de questionar acerca da interpretação do texto Caminhos de luz nas trevas, construído em linguagem erudita e poética em sua superfície, preocupação séria nossa, mas, nas entrelinhas, estar latente de questões contundentes, impregnado de ácido crítico acerca da preservação de nosso Patrimônio Histórico e Cultural, atacando as facções, interesses e ideologias de alguns, no mesmo estilo: só na superfície o “leite”, nas entrelinhas, o ácido crítico, tendo como suporte a linguagem lírica e a dialética da luz e das trevas, fundamentada na dialética da lembrança e do esquecimento.

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Acreditamos o melhor modo de se relacionar com as facções é partir daquilo em que todas concordam. A idéia-chave é o “engajamento” não apenas de intelectuais, escritores, atores, artistas-plásticos, músicos, personalidades e empresários, mas de toda comunidade. A intenção se justifica a partir do que todos concordam: “somos culpados de nossa história”, assim o diz Adorno.

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A obra global de um intelectual apresenta muitas camadas de transformações estruturais, que só são inteligíveis como preservações substitutivas (ou substituições preservadoras), cada vez mais complexas, da estrutura original.

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Quem diz intelectual diz, em seguida, um céu de valores universais de que ele se faz intermediário, para trazê-los aos homens concretos; ora, essa noção de “Universal”, essa idéia de poder haver um Certo, um Verdadeiro, um Bom, válidos em todos os lugares, em todos os tempos, como essências cristalizadas, independentes da situação, é uma idéia em que Sartre deixou de acreditar desde, pelo menos, Que é a literatura? - e essa figura do intermediário, essa imagem do clerc vindo garantir a junção entre a ordem do profano e a dos princípios, essa idéia de uma mediação entre um céu de valores e uma cidade terrestre é exatamente o que Sartre acaba de tomar como alvo em As Palavras: edificar um povo? iluminá-lo? trazer-lhe o fogo de uma cultura compartilhada?

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Não basta referir-se à dialética da continuidade e da descontinuidade, da lembrança e do esquecimento, da luz e das trevas. Dizer que a história, tanto individual quanto coletiva, manifesta-se por meio da continuidade e mudanças ganharia o status de um truísmo, não fosse o fato de que “interesses ideológicos” determinados fazem disso uma proposição teórica debatida com ardor.

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Há duas teorias sartreanas do “engajamento”. Em primeira instância, a que triunfará nos anos ´50, depois nos ´60, e que, infelizmente, vem ao espírito: companheirismo de estrada com os comunistas; imagens familiares e terríveis de Sartre e Simone de Beauvoir na Rússia ou em Cuba; naufrágio de uma grande filosofia e de uma não menor literatura, que se põem a serviço de uma propaganda e imolam-se no altar dos poderes totalitários; o engajamento compreendido e entendido como enquadramento, mortificação, ódio e aniquilamento da literatura.

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Há uma primeira teoria sartreana do engajamento que não diz respeito a essa caricatura; há um primeiro Sartre, jovem, que, em 1944, ao sair da prova sem precedentes por que a consciência européia acabava de passar, se coloca, no fundo, o mesmo tipo de questões que Blanchot, em Le Dernier homme, ou Bataille, em seus últimos textos.



Que é a Literatura é, dentre todos os textos de Sartre, um dos mais difamados. É, para além do escritor-filósofo, o que terminou por se identificar com a idéia de uma sujeição da literatura e dos valores do espírito.



O que Que é a Literatura? não diz: que a literatura deve engajar-se; que é, para ela, obrigação, traçado de rota, missão. E se não o diz, se não faz o apelo ao engajamento, se não diz aos escritores: “Despertem! Mobilizem-se! Sou eu a polícia das letras e exorto-os a que se engajem!”, é pela simples razão de que, “engajada”, a literatura o é natural e espontaneamente e, por assim dizer, automaticamente – se ele não “prega” o engajamento, se não faz disso, contrariamente ao que se repete, de maneira quase pavloviana, há mais de cinqüenta anos, ardente obrigação, imperativo, linha, se está absolutamente fora de questão o esforço de se engajar, de se obrigar ou de ser obrigado a isso, é porque esse engajamento é a conseqüência do fato de que a literatura se escreve com palavras e de que pôr uma palavra em uma coisa é fazê-la perder sua “inocência”, “alterá-la”, dar-lhe outro tipo de existência”, “dimensão nova”, “transformá-la” e, com isso, “engajá-la”.

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De sorte que a única coisa que o teórico do engajamento pode, a rigor, esperar do prosador, o único pedido que caberia endereçar-lhe seria: ou bem uma fala que esteja, queiramos ou não, “na onda”, ou “por dentro”, ou como dizia Pascal, “embarcada”; ou bem uma literatura que não cesso de repetir, por ser feita com palavras, tem o inevitável poder de agir sobre o mundo e de transformá-lo; eu, teórico, espero do escritor que tome mais consciência desse estado que lhe compete; espero que faça com que o vivido da “espontaneidade imediata” passe para o “refletido”, que “trate de adquirir a mais lúcida consciência” pelo fato de estar “embarcado” e de que palavras são “compromissos”9.

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O verdadeiro caráter de um compromisso particular não pode ser reconhecido se não se puser a nu seus vínculos com uma dada totalidade. O particularismo pode e deve reivindicar o status de universalidade, à falta de um quadro de referência abrangente, uma vez que estar em perspectiva transforma o particularismo em sua própria perspectiva e, desse modo, na medida de tudo mais.

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Sendo assim, qualquer tentativa de revelar as conexões verdadeiras com a totalidade deve chocar-se com os interesses dos particularismos, ideologias, interesses predominantes. Ao mesmo tempo, o desvelamento dos particularismos não desnuda apenas seus paladinos, mas expõe também, de súbito, a vulnerabilidade de todos aqueles que, anteriormente, tinham condições de encontrar autoconfiança e conforto (ainda que ilusório) nos recantos protegidos dos diversos particularismos.

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Outro modo não há. O “espelho crítico” não pode preencher suas funções se se fragmentar em milhares de pedaços. Um espelho quebrado só consegue reproduzir detalhes distorcidos, ainda que pareçam ser fiéis em sua imediatez: distorcidos, porque separados do todo que, apenas ele, lhes pode conferir plena (isto é, verdadeira) significação.

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A escolha é inevitável. Ou abandonar a meta de dar testemunho da época em que vive, e deixar de ser um espelho crítico; ou apropriar-se da época do único modo pelo qual se pode fazê-lo escrevendo – mediante a desconfortável e fria limpidez de uma obra que “revele, mostre, demonstre” as conexões da parte com o todo, desmistificando e dissolvendo os fetiches da imediatez aparentemente muito sólida e bem alicerçada na estrutura dinâmica da totalidade sempre em mudança.

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O conceito de engajamento não é político que insiste nos deveres sociais do escritor; é filosófico, designa os poderes metafísicos da linguagem.

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Sartre, em Jean-Paul Sartre responde, questionado se rejeita o estruturalismo, responde: “A linguagem é um elemento do “prático-inerte”, uma matéria sonora ainda por um conjunto de práticas”. O lingüista toma em mãos como objeto de estudo a totalidade das relações. Fá-lo por estar constituída. “(...) É o momento da estrutura em que a totalidade aparece como a coisa sem o homem, uma rede de oposições em que cada elemento se define por um outro, onde não há termo, mas somente relações, diferenças”

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Todos, Sartre em primeira instância, sempre fizeram como se a grande questão da vida, aquela que não teriam deixado de colocar em suas biografias de Baudelaire, Mallarmé, Genet, Flaubert, aquela que colocaria em As Palavras e já, antes de As Palavras, em todas as tentativas oblíquas de autobiografia, fosse: que é um escritor? quais são as verdadeiras “razões de escrever”, ao invés de se tornar “campeão de boxe, almirante ou astronauta”?

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Deve-se convir que a questão, a partir de As Palavras, inverte-se – ou, mais exatamente, que o autor de As Palavras reata o fio de outra questão, inversa, havendo aflorado em Caminhos da Liberdade, através do personagem Mathieu, o escritor que não escrevia ou, em L´Enfance d´un Chef, a propósito do escritor fracassado Lucien Fleurier: que é um não-escritor? quais são as razões de não se escrever? o que é um escritor que descobre que a literatura, como a moral em Os cães de guarda, é nada – e como fazer, então, para mortificar em si o nervo, a fibra, a mola literárias?

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Podemos dizer que a crise da metafísica, dentro da qual estamos desde Hegel, traz consigo a reivindicação do “físico” – precisamente a reivindicação que faz com que a transcendência deixe de ser fundamento: apropria-se assim o pensamento da densidade ontológica do finito considerado em sua própria finitude. Em certo sentido, explica-se que em Sartre o plano da transcendência onto-teo-lógica seja abandonado e que o fundado se torne físico. A metafísica da linguagem é abandonada, tornando-a ação.

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Neste sentido, faz-se mister esclarecer que toda e qualquer linguagem só se torna revolucionária – caráter de busca de transformação, mudança, - revolvendo a radicalidade da linguagem em todos os níveis e modos do relacionamento entre o ser e sua realidade, o ente em sua realização e a verdade em seu advento histórico.

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Quando, pois, se nega a verdade da arte ou se põe em causa tal verdade mediante um confronto da “realidade” com a “ficção” estética, ignoram-se as raízes profundas do problema, essas em que se evidencia já a tonalidade afetiva da própria percepção como até, em referência à própria problemática de uma obra de arte, o que há de contraditório no recusar tal obra em nome de tal problemática e no aceitá-la em sua atualidade estética.

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Para Heidegger, a verdade é a abertura do Ser, a sua revelação. Mas tal revelação não é completa, implica uma “reserva”. A essência da verdade é a não-verdade, ou seja, que a verdade implica, com a desocultação, uma ocultação.

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Falar de engajamento não é “requisitar” os homens de letras; antes, é lembrar-lhes do que cada um sabe, conhece, contempla, ou deveria fazê-lo: que cada ato de nomeação “integra-se no espírito objetivo”; que, com isso, ele dá à palavra ou à coisa uma “dimensão nova”; que cada palavra pronunciada contribui para “desvelar” o mundo e que o desvendar será sempre, e desde já, “mudá-lo”.

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Espírito Objetivo, expressão esta utilizada por Sartre sem nenhum laivo pejorativo. Porque o Espírito Objetivo define-se como “a cultura como prático-inerte”; na origem da cultura encontramos



“o trabalho vivido, atual na medida em que, por definição, ele ultrapassa e retém em si a natureza. (...).Assim o trabalho é por si mesmo a anti-physis, isto é, a sua definição está em ser natureza antinatureza, e isso é precisamente a essência de todo fenômeno cultural”.

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A partir dessa base, o Espírito Objetivo chega a desenvolver-se com o requinte que se sabe, mas ele é sempre “a própria cultura na estrita medida em que ela se faz prático-inerte”, em que ela estabelece “passividades irredutíveis”, justamente passividades que, por serem condicionantes, ocasionam o processo de interiorização e exteriorização.

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Em Sartre, o tema da irredutibilidade aparece, por um lado, estabelecendo-se um comércio pluridirecional entre as camadas da realidade; poder-se-ia dizer que tudo está em tudo, e que a dialeticidade do real põe à mostra sua inquietação e a diversidade interminável de suas configurações. Por outro lado, esse jogo a um tempo movediço e estruturado da dialeticidade concentra-se em torno de um eixo central, espécie de pólo de irradiação: a dicotomia sujeito-objeto.

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O sujeito apresenta a complexidade, e o objeto distende-se até assumir as proporções da História e da Cidade. O nome próprio e primeiro da dicotomia é agora o singular-universal. Aliás, em nosso texto Caminhos de Luz nas Trevas, referimo-nos a estas proporções.



“A imagem, que escolhemos como tema e temática, é mui interessante, pois que revela estarmos na fronteira da lembrança e do esquecimento, de imediato surge a idéia da Dialética da “lembrança e do esquecimento”, sendo a imagem da História, o que suscita na leitura de investigação, de busca da verdade, só se revelando na tensão de ambos, nas estratégias de consciência e inconsciência coletiva, individual, universal, nos espirais em que cada espira identifica outro caminho a ser seguido, no caminhar pensativo do lugar que se vai ocupar. Ah!... Esta fronteira da lembrança e do esquecimento, este sonho de rompimento, entrar em sintonia e harmonia com a construção, com a identidade histórica!...

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O nome próprio e primeiro da dicotomia é agora o singular-universal, e o universal deve ser entendido primeiramente como “histórico-mundial”.

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Há alguma coisa a ser explicada, que está indissoluvelmente ligada à concepção que Sartre tem da história como singular e “não universalizável”; concepção esta que procura demonstrar a “inteligibilidade dialética do singular” e a “inteligibilidade dialética do que não é universalizável”.

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Em primeira instância, Sartre sempre associou a investigação sobre o “projeto fundamental” de escritor à pesquisa, in extenso, sobre os modos concretos como ele consegue extrair necessidade a partir das contingências de sua situação, produzindo assim a validade exemplar de uma obra cujos elementos constitutivos estão, em princípio, ao dispor de cada um e de todos nós.

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Em segunda, transformar em necessidade os pedaços de contingência encontrados nas circunstâncias do dia-a-dia está muito à mostra no próprio desenvolvimento de Sartre. Neste sentido é que emerge a unidade de sua obra, não de algum projeto original mítico, mas sim com base numa determinação totalizadora que visa à integração dos elementos de “facticidade” transformados em um todo coerente.

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Sartre atribui certo privilégio ao momento subjetivo:



“Nossa finalidade, com efeito, consiste primeiramente, não apenas em recensear as condições objetivas e em organizá-las, mas em mostrá-las mantidas e ultrapassadas em direção à objetivação pelo momento subjetivo, esse irredutível”

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Vê-se logo que o privilégio emprestado ao sujeito não poderia preterir nem prejudicar o momento da história, e nisso não há contradição, ou melhor, há o momento dialético da contradição, do processo de exteriorização e interiorização.

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É que, para além de todos os possíveis privilégios, ou da importância que se deve referir a tal momento determinado, o irredutível funciona como se fosse tomado à maneira de uma categoria universal e que levasse a dizer, em seu extremo limite, que nada é redutível a nada.

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Há um gênero que, em França durante a II Guerra Mundial, tinha vocação para tomar partido e defender teses. É o teatro. A arte teatral é que foi, desde Bariona, encenada apenas uma única vez, - por proibição de Sartre - Stalag XII D, onde serviu como meteorologista, uma das grandes paixões sartreanas e que, em Seqüestrados de Altona, por exemplo, permitiu-lhe deslocar, maquiar, universalizar e, finamente, tratar, com temível eficácia, a questão da tortura na Argélia.

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Os Seqüestrados de Altona arremessa-nos, de chofre, para um problema assaz sério e complexo, gravíssimo, qual seja o da relatividade dos nossos juízos sobre a nossa própria época. Sartre “situa” a obra, mas num plano muito menos imediato que qualquer dos seus romances e peças “situadas”. O juízo sobre o nosso tempo é, de algum modo, o alargamento do juízo sobre nós, são os outros que acabam de nos definir para nós próprios.

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A “tese” de Os Seqüestrados de Altona está implícita e explícita no princípio de que sendo o homem pro-jeto, a sua realização está sempre em adiamento, em sursis, sendo que este adiamento, para a significação do que somos, se estende às gerações que sucederem à nossa.

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Eis porque as vitórias semelhantes à morte têm, frente às derrotas, o inconveniente de apodrecerem, vivendo as derrotas, para o futuro, como um problema retomado e renovado. Assim, Sartre, contra toda a verossimilhança, admite explicitamente a hipótese de que “amanhã possivelmente reabilitar-se-á Hitler”. Ao crítico teatral de Os Seqüestrados de Altona disse Sartre:



“Não poderemos nunca prever o que o futuro irá dizer de nós. É possível que a História acabe por considerar Hitler um grande homem – o que aliás me surpreenderia muitíssimo. E há nisto qualquer coisa de terrível”17.

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O teatro, na caracteriologia sartreana dos gêneros, não é bem um gênero literário. Ele é aliado do imaginário. É, inclusive, como lembrado em Saint Genet, um dos lugares por excelência da irrealização do mundo que é própria da literatura. E daí vem - aliás, desde o tempo em que os gregos jogavam pedras em Téspis, desde o tempo, não tão longínquo, em que as igrejas cristãs recusavam a inumação aos atores - a surda desconfiança que inspira às “sociedades de formigas” que “farejam um perigo obscuro” nessas representações cuja palavra final é sempre “isso não existe”.

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O teatro – como Rousseau, outro aficionado, o havia notado e, como Sartre, depois, não cessa de repetir – tem rigorosamente as propriedades inversas: presença física dos espectadores, calor comunicativo dessa presença, reunião dos habituais leitores numa multidão compacta e real, que recebe a mensagem, não só no calor dessa comunhão, mas sem demora; em suma, o duplo imperativo de fraternidade e de eficácia, antes daquele do Belo ou da Verdade.

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Sartre verá nisso uma razão de “degradar” o teatro ou a prova de sua excelência. É que não se trata mais absolutamente de uma arte. Trata-se, mais exatamente, de um gênero fronteiriço entre a literatura e a não-literatura.

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A análise da vida do artista e de seus fantasmas permite o acesso à obra criada? Pode-se explicar a obra pelo artista? Esse questionamento tornou-se em demasia um lugar-comum, isto é, fez-se resposta, e o fascínio ocioso das multidões, mas não só delas, transformou a vida “espetacular” de Van Gogh em sério concorrente para o espetáculo menor e silencioso de suas telas.

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O que pretende Sartre? Que ele busca elucidar também a obra ressai já do inventário das razões enunciadas no prefácio de O Idiota da Família:



“Qual é, pois, a relação do homem com a obra? Ate agora, nunca o disse. Nem ninguém, tanto quanto sei. Veremos que ela é dupla: Madame Bovary é derrota e vitória; o homem que se pinta na derrota não é o mesmo que ela requer em sua vitória; será necessário compreender o que isso significa”18

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Trata-se de alcançar a obra enquanto um em-si, enquanto ela termina ostentando certa autonomia? Sartre, em o Idiota da Família, desenvolve todo um programa psicanalítico: a arte entre Cila e Caribdes, entre a neurose e a perversão. Não destaca ele princípios metodológicos: o método existe implícito, enquanto aplicado, ou ele se constitui através da aplicação como se a lei estivesse inscrita no próprio objeto.

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A arte neurótica se situa historicamente em França em 1850. O âmbito da literatura se apresenta como um conjunto de normas que condicionam a práxis abstrata do escritor.

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O escritor se encontra em uma situação de conflito total: enquanto, por um lado, ingressa na zona da Arte Absoluta, por outro, vive um campo conflitivo (conflito de classe) em sua práxis como escritor.

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A neurose objetiva é a hipótese de um princípio de inteligibilidade que se encontra na base de uma multiplicidade de sintomas. Este princípio remete o querer individual à objetividade do prático-inerte-literário.

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A norma ético-estética do sacrifício do artista à obra nasce da ruptura com o público e da condenação romântica do burguês: é necessário compensar a decepção política – depois de 1848 – pela esclerotização do humano reduzido a um sistema de exterioridade. Com a ajuda de técnicas literárias os escritores pretendem reviver os grandes românticos, mas pressentem, ao mesmo tempo, que estão condenados de antemão, ao fracasso. Este projeto não pode sustentar-se senão através “da consistência da neurose”.

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Sartre trata de tornar prático seu projeto antropológico, totalizar em função de uma obra – Madame Bovary – enquanto universalidade singularizada, a vida de seu autor, as contradições da sociedade burguesa como estrutura sincrônica durante o século XIX. O Idiota da Família constituir-se-á na prova de que esta totalização é possível.

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A primeira dificuldade metodológica se encontra no terceiro tomo da obra quando Sartre elabora o conceito de neurose objetiva. Este conceito está repleto de conseqüências; a análise da neurose de Flaubert não pode cumprir-se precedida da estrutura social (família, classe); por outra parte, a relação obra-público remete ao campo das ciências sociais.

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De acordo com o que conhecemos, Freud não afirma precisamente a psicanálise explicar a arte. A regra freudiana é explicar o processo de criação. Em Gradiva, Freud se propõe, com modéstia, alcançar “uma pequena visão da natureza da produção (Produktion) poética”, e termina o escrito comparando o caminho do poeta com o do médico, mostrando suas diferenças e coincidência.

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Num adendo a esse ensaio, redigido alguns anos mais tarde, Freud propõe como objeto da investigação a origem das “impressões e lembranças utilizadas pelo artista e o modo como ele as transfere para a poesia”. A questão se concentra, portanto, na proto-história subjetiva da arte, e mesmo aqui ele não hesita em reconhecer os limites de seu tipo de pesquisa: referindo-se à patografia, por exemplo, assevera no ensaio sobre Leonardo que ela “sequer se propõe tornar compreensível a produção (Leistung) do grande homem”.

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Freud quer saber de onde essa “personalidade notável”, o poeta, tira a matéria de seu trabalho e, decursivamente, como pode a obra suscitar determinadas emoções no leitor, no espectador; de onde vem o fantasiar, seja o originário, poético, seja o derivado, contemplativo.

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Todo o sentido da Ars Poética concentra-se no palco interior, aquém da obra, na subjetividade do artista e sua “constelação psíquica”, e também na repercussão que uma obra possa desencadear no espectador.

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A investigação freudiana da histeria e do sonho canaliza toda a pesquisa para o inconsciente e para a vida sexual, enquanto Sartre desmantela literalmente a realidade para alargar uma consciência que persegue como único e impiedoso objetivo: a transparência.

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O ideal da transparência acompanha toda a produção de Sartre, desde O Ser e o Nada. Declara:



“Penso que a transparência deva substituir sempre o segredo, e imagino bastante bem o dia em que dois homens não terão mais segredos um para o outro porque eles não terão mais segredos para ninguém, porque a vida subjetiva, assim como a vida objetiva, será totalmente oferta, dada. É impossível admitir que entreguemos nosso corpo como nós o entregamos, e que escondamos nossos pensamentos, dado que, para mim, não há diferença de natureza entre o corpo e a consciência”.

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No seu discurso em Araraquara, diz ele:



“(...) se a Filosofia é prática, se ela representa efetivamente um encaminhamento da ação e do pensamento e uma transformação do homem, ela deve, diz Marx, realizar-se; realizar-se, isto é, tornar-se mundo. O que ela diz tem de se tornar o que é”20

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O que mais interessa a Sartre é o momento da personalização, o homem que constrói a si mesmo, ainda que todo esse construir-se permaneça caudatário das bases assentadas pela constituição.

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O problema da constituição: o que a caracteriza? Quais os seus traços marcantes? Em primeiro lugar: é ela sinônimo de passividade, de inércia? No seu extremo limite inferior, sim – Sartre fala em “passividade constituída”,



“Não basta, pois, ter mostrado a estrutura original desta vida e o tipo particular de sua alienação, nem mesmo de lhe ter restituído o sabor imediato – faz-se necessário, a partir dos dados de que dispomos, determinar o modo como essa vivência se faz viver”.

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O homem é o mundo, e a questão está em fazer o registro de tudo o que integra concretamente, como princípio de constituição, o microcosmo humano em sua particularidade. A constituição consiste num deixar-se viver, espécie de avassalamento involuntário.

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Por que, ou melhor, para quem se escreve? Resposta indubitável: para hoje. Para este nosso tempo, e nenhum outro. Para esta mesma época que ele resolveu tomar como objeto. O escritor engajado é aquele que, com firmeza, resolução, clareza, decide dirigir-se não a uma época futura, longínqua e, então, sonhada, mas a própria época de que é coevo.

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‘Aconteça o que acontecer, temos de articular as preocupações de nossa querida e amada Diamantina como um todo e não nos afastar dela”

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Em Que é a Literatura? e da primeira teoria do engajamento, aquele, dentre todos os modernos, que mais terá feito para mortificar, em si mas também em nós e, em todo caso, em seus contemporâneos a idéia mesma de uma obra que fosse buscar, em recurso, seu veredicto final.

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Faz isso com uma metáfora que vai voltar, em livros e em outros lugares, com extrema insistência: a metáfora das bananas: “Sempre considerei”, diz, “as bananas como frutos mortos, cujo gosto vivo me escapava”. Ou: “para saber o que é – a banana – é preciso comê-la no pé, ou quando acaba de ser colhida”. Ou ainda: “os livros que passam de uma época para outra são frutos mortos. Tiveram, em outro tempo, um outro gosto, forte e vivo. Era preciso ter lido Emílio ou Cartas persas quando colhidos”.

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O que deseja Sartre expressar com a metáfora das bananas? Que a literatura, como as bananas, é perecível. Como as bananas, ela morre se tiver seu consumo adiado. Deseja ele uma literatura do finito, ancorada nessa sua temporalidade, nada esperando de um tempo por vir em que não sobrará, nem dos livros nem das bananas, senão um cheiro triste, um sabor mofado ou azedo.

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A literatura só é escrita aqui, no instante, para o instante, sem possibilidade de evasão para fora do cerco desse instante, e assim, sem recurso, também. A literatura é atividade vital, essencial, ardente – ela não vale nada, não queima nada se não queimar aqui, agora, na “primeira leitura”, que, para ele, é “a que mais conta”.

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Enfim, “engajado”, para um romance, significa: virar as costas às ilusões da intemporalidade. Jogar o jogo do “engajamento” é resistir à tentação de escrever, como Valéry enquanto vivo, “livros póstumos”. Os escritores engajados são quem estão vivos antes de estarem mortos. Defender o engajamento é renunciar às miragens da posteridade, notoriedade, muito embora Sartre por quase toda a vida fora um notório homem.

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Sartre, o anti-Mallarmé que, bem antes de Flaubert, passa alguns anos de sua vida a se medir, se não com Mallarmé propriamente, pelo menos com a religião da obscuridade de que a época lhe credita a paternidade e contra a qual Proust, em artigo memorável, “Contre l´obscurité”, 15 de julho de l896, e quase que nos mesmos termos, instaura um processo: Sartre contra Mallarmé e, provavelmente, também contra Debord, a vontade, o tomar partido de “se preocupar” com o público.

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O século XX, diz Sartre, com Proust, não deve ser o século de Mallarmé! A literatura só tem sentido, e Mallarmé o sabe, se, de direito, pelo menos, for universalmente transmissível! Ou seja, seu ideal é o da reconciliação da dupla figura do aficionado e do conhecedor, do simples leitor e do discípulo, na ordem daquilo que um outro mallarmeniano, Jacques Lacan, chamou o “mátema”.

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A literatura é a ausência. É a separação, radical, do autor e de seus leitores, e dos leitores entre si.

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O Espírito Objetivo funciona à maneira de um imperativo, como o sentido da história dentro da qual o escritor está inserido.

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Que significará uma literatura comprometida, engagée, se o “irreal” que a constitui não permite uma discussão no domínio do imediato: Não é por ser “irreal” a arte que é “estúpido”, até mesmo “imbecil”, julgar a mesma arte em função da moral: é por ser inocente. Se, para Sartre, um sentimento “fingido” é igual (ou quase) a um sentimento “real”, não vemos porque não aproximar a “irrealidade” da arte – que é uma “ficção” do que se sente, como Fernando Pessoa frisou e muita gente com ele, desde, pelo menos Camões – da realidade da vida.

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O que é a Literatura? é um longo ensaio, vário, contraditório, temerário e inteligente. Sartre coloca-se aí fora da sua arte e teoriza sobre ela. Não de um ponto de vista estético, mas social, de um ponto de vista ético, ou melhor.

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O compromisso é necessário para a literatura (não, porém, para a poesia). Os literatos do século XIX violentaram as leis morais, foram um momento “negativo” como para a “festa” o mostra Caillois, ou seja, quando se dissipam os bens e se violam as leis.

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A obra de arte apela para a liberdade do leitor, propõe-se ao espectador “como um imperativo categórico”, mas não atua sobre ele. Em L´Imaginaire não se excetua o “romance” da “irrealidade” que caracteriza a imagem e subseqüentemente a arte; em O Que é a Literatura?, para se proclamar a obrigação do engagement, dá-se à arte em prosa uma posição privilegiada para um confronto com o mundo.

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Sartre parece esquecer que as relações da arte com o mundo e sua ação sobre ele não operam senão extraordinariamente pela parte que a “prosa” excetua para a pôr em contato direto com o mesmo mundo: faz-se precisamente também e mais genericamente pela outra parte, aquela para a qual ele não vê viabilidade de “compromisso”, de engagement. A fração de “prosa” que ele privilegia para esse engagement é a que confina com os meios de ação, que só por acréscimo tem que ver com a arte.

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A arte é a expressão de uma sensibilidade, de uma visão de mundo, e como tal intervém no domínio das relações imediatas. Sartre, para quem a música “escapa inteiramente ao “real” (e daí que lhe não veja grandes possibilidades de compromisso) não lhe reconhece um “análogo” senão na sua execução.

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No Prefácio ao Artista e sua Consciência, de René Leibowitz, concedendo à música um valor de “sentido” e não de “significação” que remete a valores distintos dos próprios elementos que significam – Sartre concebe possível um engagement da música na dimensão do “sentido”. Isto pode-se conferir com clareza e evidência em La Mezza Notte, as origens históricas de uma manifestação musical cultural e histórica. Para Leibowitz, porém, e com razão, o “compromisso” afirma-se precisamente na “invenção técnica e no ato de liberdade que ela encarna” contra a chatice da repetição do já feito e a obediência aos cânones impostos.

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A música é ainda uma expressão da realidade, tem que ver com ela como a pintura (como a corrente abstrata confirma). A pintura abstrata põe a Sartre um problema. Não poderia agregá-la à pintura “figurativa” na questão do “imaginário”. Com inteligência e não convincentemente, a pintura abstrata entra na problemática geral da representação plástica. Nesta pintura, Sartre vê também a presença irrealizada de objetos não existentes em parte alguma, “mas que se manifestam através da tela, que dela se apoderaram por uma espécie de posse”.

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A atitude irrealizante dir-se-ia realizar numa ordem inversa, no sentido de uma regressão, a qual ordem se restabeleceria, na sua marcha progressiva, se porventura nós viéssemos a encontrar na “realidade” os objetos de que nos fala a pintura em questão. Esses objetos reais, de fato não existem; mas, ao vê-los num quadro, não operamos por uma “realização” deles, mas por uma irrealização. A sua representação é de fato um “análogo” de objetos inexistentes, mas que no quadro “irrealizamos” como se de fato existissem.

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O “compromisso” na arte, portanto, e ao contrário do que Sartre nos proclama, deriva muito mais da afirmação da liberdade intrínseca do próprio artista do que de um propósito moral. O “compromisso” ou é forma de estrutura, necessidade, ou obrigação moral. A arte ou é “irreal” “e aí também o romance” e, portanto, é “estúpido” ajuizarmos dela com valores de ordem imediata (como o valor “moral) ou se estrutura em situação e se deve “comprometer”, submetendo-se, pois, a juízos de ordem “moral”.

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Não se deve concluir imbecilmente que estas e outras “contradições” – nascidas às vezes só de uma “evolução” – são o sinal de uma autodestruição da obra sartreana: são o sinal apenas da sua condição, da condição de nós todos... A coerência absoluta é o apelo inexorável de todo o homem que pensa e se, se pensa, é de algum modo a miragem do Em-si iluminado no Para-si, a totalização, o Deus que inventamos no falhado desejo de o inventarmos em nós25.



O máximo de dignidade e de coerência no homem está em sonhar ardentemente essa coerência, esse Absoluto, em sentir-lhe o apelo e esforçar-se por obedecer-lhe, sem nada recusar, porém de quanto porventura o negue – para ser coerente...

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La Mezza Notte encruzilhada entre a "lembrança e o esquecimento", La Mezza Notte entre o prático-inerte que identifica a História Diamantinense, a história parada no tempo, sem rumos, sem destino, e a História engajada no refazer-se de suas estruturas, de seus Caminhos de Luz nas Trevas. La Mezza Notte, travessia da Música à Cultura Histórica. São os objetivos específicos do Engajamento de Antônio Carlos Fernaandes e Wander Conceição.

Manoel Ferreira

22 de outubro/02 de novembro de 2003

 

 


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