#A HISTÓRIA E A MÚSICA - FUNCIONÁRIAS DA HUMANIDADE# Manoel Ferreira Neto: DISSERTAÇÃO EM HISTÓRIA E MÚSICA $$$


 

“QUANDO A INSÔNIA, qual lívido vampiro,

Como o arcanjo da guarda do Sepulcro,

Vela à noite por nós,

E banha-se em suor e travesseiro,

E além geme nas franças do pinheiro

Da brisa a longa voz...

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Quando sangrenta a luz no alampadário

Estala, cresce, expira, após ressurge,

Como uma alma a penar;

E canta aos guizos rubros da loucura

A febre – a meretriz da sepultura –

A rir e a soluçar...

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Quando tudo vacila e se evapora,

Muda e se anima, vive e se transforma,

Cambaleia e se esvai...

E da sala na mágica penumbra

Um mundo em trevas rápido se obumbra...

E outro das trevas sai...”

(Castro Alves. Os Anjos da Meia Noite)

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“La Mezza Notte – O lugar social do músico diamantinense e as origens da Vesperata 1751 – 1895 - 1997”, livro dos historiadores-escritores Antônio Carlos Fernandes e Wander Conceição, Editora Maria Fumaça, 2003, oficialmente lançado em Diamantina, 25 de janeiro de 2003, intenciona esclarecer a verdadeira origem da Vesperata, em Diamantina, elucidar isto de a História não ser, em hipótese alguma, apenas e unicamente uma investigação sobre o passado, um estudo dos movimentos sociais, políticos, econômicos, existenciais, de um povo, como figura nos conteúdos programáticos das Instituições de Ensino, seja de nível Médio, seja de nível Superior, mas a apresentação-representação da Cultura, das Artes, a partir destes movimentos sociais, políticos, econômicos, existenciais ao longo do tempo, das situações, circunstâncias, o presente trazendo na algibeira os outroras do homem, da comunidade, da humanidade, à busca da conciliação da lembrança e esquecimento, abrindo estradas para a identidade humana.

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Tratando desta colocação de “apenas e unicamente uma investigação sobre o passado”, pensamos e fundamentamos a partir da Epígrafe, Capítulo O Maestro Piruruca e o Anjo da Meia-Noite – Origens da Vesperata; Epígrafe de Paul Thompson (A Voz do Passado), quando “... a história oral pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da história”; fundamentamos que a investigação sobre o passado, um estudo dos movimentos sociais, políticos, econômicos, existenciais, não é necessariamente um instrumento de mudança, reclama e exige um meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da história. O conteúdo e finalidade dependem do espírito com que forem utilizados, isto é, “o que acontece” e o enfoque da própria história podem revelar novos campos de investigação.

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Os indivíduos cotidianamente absorvem, sintetizam e reproduzem as categorias sociais na formação de sua individualidade, em sua consciência, em suas escolhas e em sua interatividade, reproduzindo e transformando a si próprios e suas relações e, portanto, a forma de sociabilidade, de acordo com os meios socialmente desenvolvidos.

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De modo que os indivíduos, de acordo com a análise a que nos propomos acerca desta obra estudada, são ativos em sua própria formação e reprodução através da mediação de suas escolhas conscientes, motivo pelo qual podem – potencialmente – transformar conscientemente a si próprios e a sociedade em que vivem.

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A História da Música Diamantinense, vista à luz de “o que acontece”, revela novos campos de investigação da constituição e estabelecimento da Música, de conhecimento dos indivíduos e dos grupos, instituições, que a produziram, à busca de suas verdadeiras origens à margem de uma sociedade burguesa, através de suas ideologias e interesses diversos, a verdade do processo histórico - muito embora há de se considerar que esta sociedade burguesa não conhece a própria História que insistem em constituir, o povo muito menos. Cabe indagar historicamente o fundamento a verdade do processo histórico, por que a reexteriorização é feita a partir de uma alienação. Na produção da História da Música, o lugar social do músico diamantinense – seja através de apresentações, concertos, serenatas, vesperatas – “pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental...”, conforme palavras do mesmo Paul Thompson, na Epígrafe do Capítulo citada acima.

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Marx explica que a força revolucionária do operário nas sociedades burguesas “nasce da contradição entre a sua natureza humana e a sua existência vital, que é a negação manifesta, decisiva e total dessa natureza”.

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Assim, no que concerne à verdade do processo histórico, a recuperação de sua origem, depende da dilucidação do processo formativo da Arte, da Música, sua individualidade, de modo que a história real e ideal ou concreta e reflexiva da formação do humano, da humanização do homem, constitui a base do tracejamento que divisa e projeta o passo para além das fronteiras, das mazelas políticas e ideológicas atuais.

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A individualidade da música diamantinense é o critério por excelência da avaliação qualitativa das formas de sociabilidade, o caráter da individuação por ela engendrada, pelos horizontes que impõem e por toda as possibilidades de construções que dela emana. A própria atividade produtiva como objeto de projeção e reflexão espiritual, consciente, mesmo que esta consciência seja apenas rudimentar.

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Tendo como base as transformações que a Cultura, as Artes, em especial a Música, promovem nas condições originárias de existência, o homem passa a criar suas próprias condições materiais de existência, constituindo por isso, uma nova forma de ser, uma nova gradação ontológica, o ser consciente e ativo, que se liberta dos estreitos limites da reprodução cega das formas biológicas, das correntes-algemas.

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Se não se observa com olhos de lince “de modo que a história real e ideal ou concreta e reflexiva da formação do humano, da humanização do homem...” deixa-se de intuir e perceber que a síntese da formação do humano, da humanização do homem, que os autores têm a intenção de com ela estabelecer o “testemunho histórico” – de um lado o povo que faz a história, de outro, o papel do intelectual de esclarecimento e transparência não só dos acontecimentos que deram origem à história, mas das transformações e mudanças ocorridas no processo e desenvolvimento históricos; o papel do engajamento do intelectual, de responsabilidade e testemunho de seu tempo.

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Cumpre frisar que o caráter ativo dos indivíduos não é incondicionado nem a-histórico, conseqüentemente a possibilidade de transformação consciente das individualidades, de suas inter-relações imediatas e, principalmente, da forma de sociabilidade só pode se tornar real como fruto de um grande desenvolvimento humano-social, isto é, no longo processo de humanização do homem.

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O papel do intelectual na História é o de identificar as contradições e dialéticas, as ideologias e interesses que foram motor de construção da sociedade, de identificar os caminhos de luz e de trevas a serem seguidos, mas consciente deste processo, numa práxis que visa a verdade das relações humanas com as sociais. O testemunho do intelectual é movimento de luta, de engajamento, de busca da consciência histórica.

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O testemunho é fonte “criadora”, que não é o mesmo de “produtora” (produz-se a Arte a partir dos movimentos sociais, existenciais, políticos, econômicos, das contradições e dialéticas geradas por eles; “cria-se” a partir da “fonte criadora” além do fundamento, do valor. Tem o testemunho histórico a responsabilidade de mostrar que, no interior da sociedade de classes, o ser do indivíduo predominantemente determinado por uma teia de relações que se encontra não só para além de sua vontade individual, mas também além da própria atividade conjunta, social, consciente.

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Os indivíduos enquanto membros de uma classe social têm cerceada sua essência ativa na medida em que atuam, por imposição de suas condições de existência, como elementos médios de um conjunto adstringente, ao qual falta a potência característica de uma existência interativa realmente humana.

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Eis porque, para os autores, nestas circunstâncias o papel do intelectual é propriamente humano, visa a humanização do homem. Importa notar que o caráter consciente e ativo dos indivíduos humanos em face da própria existência é um atributo que só se pode formar e efetivar através do desenvolvimento resolutivo das relações sociais, econômicas, existenciais, políticas, ou seja, na comunidade e por meio da comunidade.

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Tomando de empréstimo este conceito de Marx, assumindo que, em verdade, esta contradição e dialética são toda a evolução histórica, o processo do capital e o papel do operário na sociedade burguesa que irão impedir o proletariado de ser um grupo arbitrário de indivíduos, fundamentamos que o valor das Artes e Cultura do homem diamantinense nasce da conciliação da lembrança e do esquecimento, o processo histórico e o papel da música na sociedade que liberta os homens das correntes e algemas dos interesses e ideologias à busca de uma práxis que seja engendrada dialeticamente a partir da consciência de “o que acontece”, da força vital da música na construção das Artes Diamantinenses, e os objetivos a serem alcançados. A produção artística deve ser livre, autêntica e sincera expressão dos conteúdos históricos das relações entre os indivíduos e a sociedade.

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A relação que o indivíduo, os artistas, com as relações sociais, estabelecem consigo mesmos é mediada pelas relações que estabelecem com os outros indivíduos, somente através das quais a subjetividade deles se configura. Estar separado não de uma totalidade abstrata do conhecimento e consciência do processo histórico que gera (gerou) as manifestações artísticas, mas sim do processo de formação e objetivação dele, da teia de relações que determinam as individualidades e através das quais essas se realizam, significa o esquecimento de si próprio.

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Todo processo de alienação, o momento em que a característica de ser uma "coisa" se torna típica da realidade objetiva, é um esquecimento. A arte, em verdade, vem combater a reificação fazendo falar, cantar e talvez dançar a palavra petrificada. O esquecer os sofrimentos, as dores, preconceitos, dominação, as lutas do passado e as alegrias passadas torna mais fácil a vida sob um princípio de realidade repressiva. Pelo contrário, a lembrança estimula o impulso pela conquista do sofrimento e da permanência da alegria. Sente-se na carne a dor das correntes-algemas, e isso significa a liberdade estar próxima. O horizonte da história está aberto. Se a lembrança das coisas passadas se tornasse um motivo poderoso na luta pela mudança do mundo, a luta seria empreendida para uma revolução até aqui suprimida nas revoluções históricas anteriores.

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Nesta imagem escolhida para contemplação da obra, profundeza que exige e reivindica responsabilidade séria e contemplativa dos Caminhos de Luz, a História Diamantinense construída e instituída por seu povo, quem realmente conhece e reconhece as suas lutas e sonhos, questionamos o que é isto, nas palavras de Hannah Arendt, estar disposto “a dizer o que acontece”, sem o que “não há esperança de sobrevivência humana”.

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Dizer “o que acontece” exige liberdade, significando com isto a consciência do desejo da verdade, sabendo de antemão e revezes a necessidade de honestidade, as conseqüências reais desta atitude de jogar as cartas sobre a mesa com precisão e objetivo; exige responsabilidade, significando que o ato e a atitude cujas intenções são a de contribuir para o movimento das relações sociais, políticas, econômicas, existenciais, no sentido de aproximação da identidade humana a partir de suas lutas e sonhos, são dados que movimentam as relações sociais e humanas. Dizer “o que acontece”, em última análise, é compromisso com os homens, com a humanidade, a utopia da Identidade, da personalização.

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Referimo-nos a não haver esperança de sobrevivência humana, e esta esperança da Identidade, entendendo por ela mais que fé, confiança em conseguir o que se deseja, o que indica a singularidade, a individualidade, o contingente-transcendente de indivíduos, inclui os homens todos, a humanidade nesta fé, confiança de realizações, a utopia da sobrevivência, a união da individualidade e das relações sociais, a harmonia e sintonia delas no sentido da identidade com a História.

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Entende-se ser esta a Utopia da humanidade. A esperança exige a consciência da verdade, “dizer o que acontece”, sem o que não é possível a sobrevivência, não é possível a harmonia e sintonia entre as Artes e a História, assimilando a dialética do saber traduzir os sonhos de identidade e o saber empreender estas traduções na História e as contradições de classe e interesse.

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Prometeram os sábios mostrar-nos a unidade de uma classe, a partir das relações sociais, políticas e econômicas, mostraram-nos a identidade das peças de uma coleção de fatos e acontecimentos, realizações e conseqüências. Ora, unidade e identidade são princípios contrários, em que o primeiro ata laços concretos entre as pessoas e o segundo, laços abstratos entre os acontecimentos. Dizer o que acontece é, então, pensar as relações sociais como o movimento destas mesmas relações, unidade e identidade, que impulsiona a busca da Utopia da Identidade Histórica.

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É no desenvolvimento histórico efetivo, partindo das condições naturais originárias, que as necessidades humanas são formadas e transformadas. Também a consciência e a compreensão que o homem tem de si próprio são frutos dessa mesma determinação histórico-social. O homem, por isso, ao refletir sobre si próprio, nunca o faz do lugar ideal de uma consciência e de uma liberdade abstratas e absolutas, mas sim do lugar em que se encontra efetivamente, conforme as necessidades e capacidades que até então foram desenvolvidas e transformadas.

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A compreensão, o conhecimento que o homem diamantinense adquire a partir das Artes, da Música, sendo frutos da determinação histórico social, refletem a busca de liberdade e identidade com um conjunto de necessidades, desejos e atributos humanos. A liberdade deste mesmo homem diamantinense se desenvolve através da dinâmica histórica e socialmente determinada, que se estabelece entre atividade e carecimento nos indivíduos humanos, ou seja, através do desenvolvimento da relação ativa dos indivíduos com suas próprias potencialidades e carências, da aquisição de consciência dos indivíduos sobre si mesmos como seres sociais.

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A simples condição de “o que acontece” transforma a esperança em utopia define o homem concreto, o que rompe o silêncio à busca da voz da verdade, de ouvi-la, saber contemplá-la, torná-la realidade no meio dos homens, das coisas e dos objetos. Define os seus problemas vitais, a orientação do seu pensamento, a natureza das suas relações com o seu semelhante. Não é a condição objetiva que decide sobre a sua dependência de classe. As classes não existem, fazem-se.

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Os outroras da humanidade são a esperança de sobrevivência, alicerçada na continuidade das lutas e sofrimentos dos homens, o sonho de identidade histórica, fundamentando-se na busca de conciliação dos desejos e vocações de felicidade, paz, solidariedade entre os homens, e os acontecimentos quotidianos que vão transformando, delineando as relações humanas com a vida que se transcorre e desenvolve.

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Lembrando-nos de uma conversa com Antônio Carlos Fernandes, dissera-nos ele ser homem bastante tinhoso, ou seja, homem pertinaz, persistente, a esperança de sobrevivência só pode se revelar a partir do instante em que a verdade do processo histórico seja posta sobre a mesa com precisão e finalidades reais. Só assim a utopia é produzida e constituída, estabelecida e concretizada, só a partir da consciência do processo e do encontro com a sua realização. Faz-se mister ser tinhoso para alcançar estes objetivos.

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Aliás, ao longo da leitura, e também convivência com os historiadores, manifestam-se sensações, intuições, percepções de sermos lembranças que se apresentam lívidas e espontâneas tornando-nos quem somos, ao longo das contradições, da dialética, que são raízes da liberdade e escravidão, trazendo-nos os interesses políticos, sociais, existenciais, individuais, os ideais de liberdade, sermos quem decide e instaura a vocação de identidade. Somos, ao longo da obra, partícipes deste sonho de construção da identidade através da vocação, da esperança, da utopia.

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Com a identidade real, a música diamantinense, no que se respeita aos pontos de vista dos historiadores-escritores, apresentados a partir de documentos comprobatórios dos mesmos, mostrando com engenhosidade e arte o conhecimento e destreza de utilização de um método científico, segue a sua inspiração, a de realizar os homens e a humanidade à busca de seus verdadeiros sonhos e utopias, que, aliás, engrandece a toda a humanidade e a todos os diamantinenses que lutam pela preservação de seu Patrimônio com seriedade, responsabilidade, espírito de quem conhece a verdade histórica, de quem contempla as Artes em busca do Sonho do Verbo Amar.

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“A arte não é apenas conhecimento. É conhecimento e utopia. Ela revela e possibilita a criação do real que, de fato, não é, mas se faz. Ela nasce do mais profundo do artista, portanto do indivíduo, do inconsciente do indivíduo, mas o inconsciente não é do indivíduo, é da sociedade”.

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Risível depararmos com a dimensão da utopia nesta obra de Antônio Carlos Fernandes e Wander Conceição, pois que o sentido desta palavra serve a tantos propósitos escusos, desde o seu sentido, “projeto irrealizável, quimera, fantasia”. Para qualquer situação, o termo surge de imediato, seco e jocoso, “Isto é utopia”. Mas, com certeza, os historiadores-escritores apresentam outro sentido bem contra as ideologias, idéias fáceis e sensaboronas.

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“A vida é desejo, vontade e razão. Tudo ao mesmo tempo. Eros, Pathos e Logos em busca de sua realização. E nesse processo ele conhece o mundo com todo o seu ser. Conhecer e ser confundem-se. Conhecer impõe-se como um imperativo de sobrevivência. Mas o conhecimento como totalidade, como unidade, não é suficiente para ajudar na conservação da Vida, na preservação do Patrimônio. Essa totalidade desfaz-se num desenrolar histórico que, de certa maneira, busca reencontrar-se como totalidade, mas então como consciência de si mesma. “Se o Ser se faz continuamente, a continuidade é também o Ser”.

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Retornando ao processo histórico do conhecimento, temos de reconhecer que o lugar da arte é, sem dúvida, muito mais o da imagem do que o do conceito. Na arte, temos uma imagem que não é a imagem primeira; se a imagem é uma representação do real, a imagem artística é uma representação da representação, e a partir dela podemos desenvolver também um novo conceito, pós-conceitual.

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Ao longo desta viagem, a do conhecimento do nascimento e crescimento da música diamantinense, da Vesperata, vem-nos ao espírito, a Imagem de Diamantina, que a identifica com a sua História, Viajante da Ressurreição, vamo-nos deparando com a realidade dos interesses os mais arbitrários e gratuitos, ideologias canhestras, feitas às canhas, às avessas, com objetivos de a afastar de seu caminho de luz, de ressurreição, e com eles a verdade dos acontecimentos sendo desrespeitada, negligenciada, verdade esta que constrói e identifica o povo, seus ideais, seus sonhos de felicidade, prazer. Vamo-nos deparando com os desejos de liberdade de um povo, desejos construídos e traduzidos com sofrimentos, dores, alegrias, angústias. A verdade sendo lembrada.

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“O homem, quer considerado sob o ponto de vista físico, quer sob o aspecto moral ou mental, só se manifesta como colisão do ser e da História, das Artes, da Cultura. O que se cria sempre tem de superar a resistência do já existente, ainda que anteriormente criado, que se quer perpetuar. Cada momento histórico traz em si esta tensão e há sempre o perigo de desequilíbrio, ou seja, de destruição da tensão, o que levaria à fixação em um desses momentos, a sua absolutização e, o que, a princípio, foi eficaz e ajudou a Vida a manter-se, torna-se então um estorvo e mesmo uma ameaça para a própria Vida”.

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A liberdade significa a decisão do homem diamantinense, um ser que dá respostas e que sua liberdade consiste no fato de que deve e pode ser partícipe no interior das possibilidades de preservação de seu patrimônio. Conscientes os homens, envolvidos com lutas, responsáveis pela História, é que os ideais e utopias, sonhos de libertação se tornam possíveis. “Saber é conhecer as necessidades, as sedes que todos sentem de libertação, de crescimento”.

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A música, neste contexto, constitui a humanização do homem, assim podendo compreender e entender a responsabilidade dos autores com esta gênese, origem da Vesperata, ou seja, a totalidade da sociedade, que, em última análise, determina a ação recíproca dos complexos singulares; de outro, o complexo constituído pelo indivíduo humano, que forma a unidade mínima irredutível do processo.

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A arte não é uma forma inferior de saber, está, ao contrário, na esfera central, entre o saber sensível e o saber conceitual, e o novo conceito que daí pode nascer será um passo à frente no processo do conhecimento, do conhecimento histórico.

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Tendo em vista o conhecimento como poder ilimitado de apropriação da natureza, tendo por outra face da mesma moeda o conhecimento humanista como poder de criação do genuinamente humano – o primeiro como base material do segundo e este como seu resultado supremo, ou seja, a autoprodução do homem -, e sendo a produção do conhecimento um empreendimento de caráter supra-individual, depreende-se que mesmo as características ou as categorias próprias do que se costuma reconhecer como sendo a individualidade, a vida privada e interior ou espiritual dos indivíduos, é indissociavelmente única à forma de existência genérica.

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A individualidade humana somente se forma e se efetiva na interatividade com a cultura, com as artes, com a História, isto é, os indivíduos são determinados e se efetivam na comunidade, no e através do médium criado pela interatividade social. Portanto, ao considerar a individualidade humana como origem da individualidade da Música, deve-se ter em conta que, diferentemente dos tratamentos que tomam os indivíduos isolados e a-históricos, a pesquisa apreende a concreticidade dos indivíduos no processo histórico, fruto do evolver autoconstituinte da sociedade.

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A pesquisa do evolver histórico do ser social, pois, que os indivíduos têm sua existência condicionada pelo conjunto da sociedade, isto é, pelas relações diretas ou indiretas que estabelecem com os outros indivíduos. Tais relações, por sua vez são matrizadas pelo estádio de desenvolvimento das forças produtivas da sociedade e pela forma como os indivíduos se encontram organizados na produção material.

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Por isso mesmo, a vida interativa dos indivíduos, sua atividade produtiva, suas Artes e suas culturas, e suas inter-relações em todos os âmbitos, não é “livre”, no sentido de incondicionada, mas sim determinada pelas condições materiais e pela forma concreta da organização social resultante de sua evolução histórica.

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O indivíduo, na intangibilidade de sua personalidade, é que funda a existência, as fronteiras e finalidade da luta, dos sofrimentos, dos sonhos, das utopias, as lembranças e esquecimentos de suas manifestações artísticas, históricas e culturais. A sociedade, o povo são pensados, concebidos, como se conclui, simplesmente como uma população, uma somatória de unidades iguais cujas diferenças são as individuais de capacidade pessoal, e de critério e força éticas e morais.

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A relação que se estabelece neste texto, La Mezza Notte – o lugar social do músico diamantinense e as origens da Vesperata, uma investigação histórica da origem, da gênese, da Música em Diamantina, se constrói no momento da consciência da lembrança e do esquecimento, a dialética, no momento da passagem conturbada do conhecimento científico, ao conhecimento histórico, universal, filosófico, antropológico, buscando justamente a igualdade na adversidade, a harmonia na contradição, a sincronia na separação.

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No conhecimento humanista, o homem é parte do universo e Deus se manifesta nos elementos mundanos experimentados pelo homem; no científico, o homem se torna força independente de um mundo que passa a ser objeto de estudo, de investigação, torna-se alienado num mundo em que as relações sociais, políticas, econômicas, existenciais, individuais, devido às suas ideologias e interesses, desenvolvem-se à margem de suas individualidades e consciência.

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É nessa contradição que se estabelece os objetivos, as necessidades de liberdade, de identidade com a história, e o conhecimento científico-histórico-humanista é aquele que estabelece as possibilidades de empreendimentos no sentido de humanização do homem, fundamentado nas palavras da Apresentação:

“Pretendemos com este estudo colaborar na construção contemporânea da memória da nossa musa inspiradora e “sagrada terra natal”, Diamantina”. É saber a História para empreender a individualidade e a consciência, a Identidade.

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As Artes, em especial a Música, tema da apresentação sobre o lugar social do músico diamantinense e as origens da Vesperata, representam, no sentido do inconsciente, alicerçado nas manifestações da criação, das revelações populares, Arquétipo Histórico, raízes profundas que brotam das profundezas da Dialética da Escravidão e da Liberdade, na movediça fronteira da lembrança e do esquecimento.

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O que se deve sublinhar é o fato de que o método de investigação de “o que acontece” na História da Música Diamantinense, de composição deste método, no que diz respeito à consideração à dialética da Escravidão e da Liberdade, ser a única instância competente quando se trata das artes diamantinenses. Se há quem facilmente identifica nestas palavras uma tautologia, respondemos que se trata de um Método que identifica a História em curso e a Verdade em devir.

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Aliás, nesta questão de um Método que identifica a História em curso e a Verdade em devir, os historiadores-escritores deixam bem nítidas suas palavras acerca desta responsabilidade:

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“Se não a alcançamos (a tentativa de objetivação), comove-nos a satisfação de termos desvelado o passado, aberto, agora, para novas incursões aos nossos coevos e pósteros”.

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O Método de Investigação em que eles se debruçaram visa a abrir possibilidades para um aprofundamento e constituição da verdade do processo histórico não só tendo em vista a Música Diamantinense, mas da História em todos os âmbitos de suas manifestações e lutas.

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Se em determinado momento do processo histórico o princípio de prazer teve de ser negado em nome do princípio de realidade, hoje, sua completa negação, que tenta inclusive sua total transformação através da criação de necessidades artificiais para o homem, conforme as leis de mercado, não se justifica. O que era inconsciente por necessidade real, hoje o é por interesse de uma sociedade conservadora que, querendo perpetuar-se, ameaça extinguir a própria Vida que é processo.

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Desde a partir da primeira leitura, que denominamos de “leitura contemplativa”, o primeiro contacto com a obra, o que se nos revelou de imediato, visto à luz da Música Diamantinense, fora o conceito de “sujeito coletivo”, isto é, a afirmação segundo a qual, na dimensão histórica, nunca serem os indivíduos, mas os grupos sociais que agem e que é somente relativamente a estes que podemos compreender os acontecimentos, os comportamentos, as instituições, as Artes e a Cultura. Perguntamo-nos pelos indivíduos, pelos sujeitos que com seus dons e talentos, suas lutas e sofrimentos, seus sonhos e utopias, contribuem para o estabelecimento das Artes. Perguntamos pela totalização do Saber contemporâneo.

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Por ser recente o lançamento, dez meses, a obra não é conhecida, seja aquém das serras, no abismo, cercado de serras, onde os homens, indivíduos, cidadãos damos prosseguimentos às nossas intenções, seja além daquelas, necessitando, sim, de perspicácia, destreza, engenhosidade e arte de ser contemplada a partir de suas raízes, desejando nela o encontro do abrir da semente, de sua abertura, de seu nascimento, o abrir da terra, o ser que se desenvolve ao longo do tempo, e, no futuro, sim, os frutos; a felicidade, construída a partir da tensão da Escravidão e da Liberdade, não apenas como vocação, mas de vivência e experiência.

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Como a rosa, se lhe contemplarmos a semente, a Música desenvolve-se desde si mesma, o dom humano à busca de sua expressão é, por si só, a inteligibilidade, nele mesmo, gratuidade, e a Música é a expressão da tensão entre a Escravidão e a Liberdade, mas que é o homem que, por todo o seu ser, é a expressão do sonho e utopia da Felicidade gratuita do Ser.

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O que avança o movimento de libertação como estar disposto a “dizer o que acontece”, resultante da transformação da consciência, revelada e construída a partir da Música, é a práxis radical. Sem esta dupla transformação dos sonhos de liberdade e de interesses e representações do esquecimento só pode resultar os homens se tornarem supérfluos, imbecis e idiotas, o nada, enfim; a desmemorialização.

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É-se de admirar a engenhosidade e conhecimento dos historiadores-escritores, no concernente à arte de preservar, com a promessa de felicidade, de identidade histórica, a memória dos objetivos inatingidos. Com esta colocação, conhecemos nitidamente a questão de os autores serem contra todo o fetichismo das forças produtivas, contra a escravização contínua dos indivíduos pelas condições objetivas (que continuam a ser as do domínio, da espoliação, da alienação), a arte, em especial a Música, nos dizeres dos autores, representa o objetivo derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a felicidade do indivíduo, da sociedade.

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Em continuidade a esta busca de apresentação da Obra de Antônio Carlos Fernandes e Wander Conceição, à luz do “engajamento” de Sartre, ressalta-se, de fato, a origem da Vesperata não se fundamenta no ano de 1997, como alguns, insignes representantes do esquecimento, estes quem com seus interesses e ideologias medíocres e mesquinhos tergiversam os acontecimentos em nome de a verdade não ser apresentada, as Artes servirem aos interesses e ideologias de uma minoria; afirmam a plenos pulmões ser esta a sua origem, assim adulterando documentos históricos, oficiais.

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Então, faz-se presente a intenção e desejo dos historiadores-escritores de lançarem este questionamento de que a luz, por ínfima que seja, que está sendo lançada, a busca da gênese, da origem da Vesperata, o lugar social do músico diamantinense, a luz do conhecimento e consciência, tem o valor de um alerta, logrando o mérito de assinalar e endossar a necessidade de maior e mais sério debruçamento nesta movediça fronteira da lembrança e do esquecimento.

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“Esquecimento, presente nas empoeiradas prateleiras das estantes dos arquivos e na substancial capacidade daqueles que, na condição de detentores do poder de perpetuação da história, obstruíram, por vaidades e gostos pessoais, o livre acesso ao passado”; “lembrança, vivificada nas diversas memórias de velhos “Casacas Pardas”, anjos da arte da urbis diamantinense”.

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Intenciona-se determinar a efetiva natureza da música diamantinense, especificá-la na especificidade diamantinense é projeto que se impõe com grande evidência, no imperativo mais vasto, até hoje sofrivelmente atendido, de examinar o conjunto, ou pelo menos os momentos principais, dos eventos musicais em Diamantina.

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Intenção esta que visa especificamente resgatar a verdade da origem da Vesperata em Diamantina, salvaguardando-a dos interesses e ideologias com esta origem de 1997 apresentada desde este ano por Erildo Antônio Nascimento de Jesus.

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Tentar dar realidade efetiva à História da Música Diamantinense é torná-la Patrimônio de todos os homens, da humanidade, de toda a comunidade humana, não privilégio de grupos oficial e aparentemente considerados de “cidadãos”, é procurar manter tudo o que constitui o valor e sentido da História das Artes na compreensão e entendimento do presente, isto de sermos “culpados de nosso passado”, nas palavras de Walter Benjamim, isto de buscarmos a verdadeira identidade com o processo histórico, que, aliás, é motor fundamental na formação e constituição da consciência histórica, formação e instituição da individualidade histórica, personalização e individuação.

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Justamente para revelar o sentido de Diamantina ser Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, para expressar os caminhos de luz ao longo da História, é que historiadores-escritores, como estes, procedem à análise desmascaradora de interesses e ideologias, mostrando que só na movediça fronteira da lembrança e do esquecimento, vista a lembrança à luz dos acontecimentos e realidades do passado, a verdade histórica; o esquecimento visto à luz das ideologias e interesses, é possível instaurar a plenitude da Manifestação Artística e Cultural, isto é, a História de Diamantina.

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Tendo baseadas as palavras dos autores, da obra acima citada:

“A inspiração para o destaque dos solistas nas sacadas foi baseada na melodia da música. Somente foi possível alcançar a compreensão desse quadro, a partir do depoimento do músico Égas Vitor Brígido, único músico vivo remanescente do grupo que constituiu o corpo da Banda do 3º Batalhão, na década de 1930”, buscamos, vez mais, mostrar que adulterações nestes documentos históricos, aliás, objetos de estudo e pesquisa dos historiadores-escritores, não podem, em hipótese alguma, permanecer desconhecidas da humanidade, havendo sido nitidamente a intenção dos autores.

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É claro que nestas palavras, sobretudo o início da colocação, “A inspiração para o destaque dos solistas nas sacadas...”, visa identificar que a objetividade do discurso, da linguagem histórica, não é simplesmente entendida como uma virtualidade das propriedades do discurso, da linguagem, mas o discurso objetivo determinado como o resultado de uma objetividade virtual da pesquisa que transcende o discurso e que é resultado de uma condição de possibilidade histórica e socialmente determinada. Os historiadores-escritores, colocando a questão da Gênese Histórica, da Origem da Vesperata em Diamantina, estão perguntando pela pedra angular de que nasce uma determinada manifestação artística, pois, sem a Gênese Histórica, a Origem, os fundamentos reais da situação histórico-social da Vesperata não há análise científica possível.

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Daí, compreende-se bem nítida a intenção dos historiadores-escritores se responsabilizarem radicalmente, engajarem-se com o não permitir de modo algum que insignes senhores afirmem a plenos pulmões a origem da Vesperata ser de 1997. Tal atitude, desconhecendo o processo histórico de constituição e estabelecimento da Vesperata como uma Manifestação Artística e Cultural Diamantinense, impede o desenvolvimento do processo histórico, a análise científica, tudo sendo permitido.

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Lembramos nesta colocação que os autores deixam nítida ao longo dos acontecimentos referentes à formação e constituição da Música Diamantinense, nisto de os fundamentos reais da situação histórico-social da Vesperata não haver análise científica possível que a razão moderna se define, desde o início, como um conhecimento que procede por hipóteses e deduções e por verificação experimental. Trata-se de uma ciência na qual o conhecimento é exercido metodicamente como uma operação capaz de construir o seu próprio objeto e de instituir assim uma homologia entre o sujeito e o seu mundo de objetos, o sujeito e as suas manifestações artísticas, culturais, esses assumindo a estrutura típica do objeto técnico.

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Tendo em mãos palavras inda dos autores,

“Desde o século XVIII, estendendo-se ao primeiro quartel do século XIX, a maioria das composições tijuquenses vinculava-se à música sacra”, ressaltando, então, que a origem da Vesperata, a sua gênese histórica, artística, cultural, acha-se desde 1751. A inspiração para o destaque nas sacadas foi baseada na melodia da música que data de 1930, conforme os mesmos autores. “A qualidade dessa reprodução artística, verificada nas suas missas cantadas, conforme julgamento do viajante e naturalista francês, Saint-Hilaire, em 1817, em nada era inferior a outras partes da Província. (...) Deve-se ressaltar que, conforme pregação clerical corrente, a música era considerada a mais sublime das artes e a forma mais perfeita de aproximação com Deus”.

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Depreende-se com nitidez que a religião traz em si elementos concernentes à prática dos indivíduos, compondo o quadro normativo da forma social e constituindo um momento central na determinação das subjetividades e da forma de suas inter-relações com o processo histórico. A religião sintetiza e permeia toda uma forma de espiritualidade em face de sua essência própria, ativa.

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A religião não deixará de ser um elemento fundamental na constituição da subjetividade e na consolidação de seus ideais de liberdade, de consciência. Nestas circunstâncias, os homens têm a própria subjetividade determinada por um conjunto de elementos espirituais, artísticos, históricos, sociais que fogem completamente à intervenção ativa, consciente.

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Imbricados nesta procura dos fundamentos genéticos da Vesperata, encontra-se a preocupação em determinar a função, o lugar que na Música Diamantinense desempenha uma determinada ideologia, visto não haverem ideologias “ingênuas e inocentes”, na opção entre o novo e o velho não decidem, em primeira instância, as considerações filosóficas ou mentais, mas a situação do lugar social do músico diamantinense.

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Entendemos, desde acima, aquando nos referimos a “Tentar dar realidade efetiva à História da Música Diamantinense” é torná-la patrimônio de todos os homens, da humanidade, de toda a comunidade humana, enfatizando “realidade efetiva”, que a consciência crente, que é revelada na música sacra, tem, de um lado, sua efetividade no mundo da cultura, das artes, instituições; mas de outro, a ela se opõe, como vaidade que deve suprassumir. À busca da conciliação da lembrança e do esquecimento, a partir da Escravidão e Liberdade, meta sempre buscada, nunca alcançada, a comunidade, sim, atinge esta meta, por ser consciência-de-si universal.

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Sendo a música “considerada a mais sublime das artes e a forma mais perfeita de aproximação com Deus”, a consciência da origem, da gênese da Vesperata, é reflexão sobre o sentido da vida, a Vida, a partir do mundo da cultura, das manifestações históricas e artísticas, como de um mundo carente de essência e em dissolução. E seu espírito é, numa unidade indivisa, tanto o movimento absoluto da negatividade, quanto a essência satisfeita em si, quietude positiva.

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A religião da Arte é própria do mundo ético: nela se expressa um povo livre e consciente-de-si. Difere da Religião da essência luminosa carente de Si, potência dominadora em que os indivíduos se dissolvem, ao invés de se tornarem conscientes de si.

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Revelando os historiadores-escritores, aliás, desde a apresentação da obra, aquando se lê nitidamente que “A publicação do presente texto limita-se na movediça fronteira da lembrança e do esquecimento”, isto é, a Dialética da Lembrança e do Esquecimento, girando em torno do conhecimento da totalidade do processo histórico, uma totalidade em processo, orientada na imensa transformação das determinações sociais, políticas, institucionais e, por isso, das lutas da preservação do patrimônio não ser esta totalidade em processo um fluxo sem direção e sem margens; ao contrário, é um fluxo que, depois de ter produzido certas determinações muito precisas, continua a manter-se no seu leito.

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Torna-se, com toda essa “inter-pret-ação” da leitura que fazemos do engajamento dos historiadores-escritores, serem eles lídimos representantes reais de “funcionários da humanidade”, sendo quem estão dispostos a dizer “o que acontece”, nítida a questão que está em luta, a preservação da verdade histórica em seu processo, muitíssimo séria, porque adulterações significam a dissolução do mundo ético, assim não haver mais um povo livre e consciente-de-si, mas um povo escravo e esquecido-de-si.

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Defendem eles a idéia de uma História totalmente outra, que não esteja condenada a ser exercida nos limites do status quo social e político. A História totalmente outra transcende por sua natureza, os quadros do gênero humano em si. As exigências éticas do indivíduo, enquanto permanecem isoladas na pura interioridade, sem levar em conta a exterioridade social, transformam cada etapa histórica em um simples momento preparatório da etapa seguinte, até o advento do objetivo final, a identidade sujeito-objeto da pedra angular da vida social.

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Intenção respeitável e escolha reconhecida por se fundamentarem os autores no fato indiscutível de sermos Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, e isto de alguns desejarem a adulteração de nossa História não pode ser aceite, pois significa vis-à-vis uma tentativa de esquecimento de nossa verdade histórica, questão que encontra guarida e acolhimento de fatores estranhos e misteriosos à continuidade, à identidade histórica.

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De fato, todo este perscrutar da própria gênese, à busca da identidade histórica, todo este reencontro, de um só golpe, do lugar social do músico diamantinense e as origens da Vesperata, do real externo continuamente em tensão com o real interno marcam o caráter intuicionista das posições de Antônio Carlos Fernandes e Wander Conceição.

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Neste sentido, constatamos com evidência e nitidez que, sem a colaboração íntima do sentimento de engajamento com o Patrimônio Histórico e Cultural, engajamento este que visa identificar a gênese, de a partir dela constituir e instituir a verdade da manifestação artística e cultural, a inteligência, especulativa e criadora, nunca fará obra de arte; e esta questão de adulterar a origem significa negligência à inteligência, negligência que separa, afasta a especulação e a criação, ou seja, o esquecimento da Arte, em especial da Música Diamantinense.

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Interessante observarmos nesta tensão do real externo e o real interno um outro momento desta obra que, sendo fiel aos seus princípios, deixa revelar que, embora o que na arte parece distante da práxis, quem sabe devido mesmo ao choque imediato das ideologias que intencionam o afastamento e separação das origens, deve ser reconhecida como um elemento necessário numa práxis futura de libertação – como a “ciência do belo”, a “ciência da redenção e da realização”, “ciência do encontro e da felicidade”. A discussão dos autores, embora considerem que a arte não pode mudar o mundo, ressalta e sublima originalmente que ela pode contribuir para a mudança da consciência e impulsos dos homens e mulheres, que poderiam mudar o mundo.

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A tese basilar de que a arte deve ser um fator de transformação, de mudança, do mundo pode facilmente tornar-se no contrário, se a tensão entre a arte e a práxis radical, práxis radical esta vista à luz da adulteração da verdade histórica, em seu processo histórico, diminuir de modo a que a arte perca a sua própria dimensão de transformação. Aliás, a intenção explícita desta adulteração é simplesmente fazer perder esta dimensão de transformação.

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Noutras palavras, adulterar a História significa desrespeitar os homens que a construíram com suas lutas, sofrimentos, dores, e a verdade histórica sendo revelada significa que o sonho da identidade histórica está sendo construído e os homens possam atingir suas vocações, serem representantes reais da busca da realidade, da identidade da humanidade.

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A intenção de adulteração dos documentos históricos, nisto de divulgação de a primeira apresentação da Vesperata datar de 1997, torna-se de fato isto de a memória de nossa História estar sendo desrespeitada, e, na algibeira deste desrespeito, aos diamantinenses, insensatez com a humanidade.

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Segundo Hegel, nas palavras de Herbert Marcuse, “a arte reduz a contingência imediata na qual um objeto (ou uma totalidade de objetos) existe, para um estado no qual o objeto assume a forma e a qualidade de liberdade”. Tal transformação é redução porque a situação contingente sofre exigências que são externas e que se interpõem à sua livre realização. Essas exigências constituem um “aparato”, visto como não são meramente naturais, mas, antes, sujeitas a modificação e o desenvolvimento livres e racionais.

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Assim, a transformação artística viola o objeto natural, mas o violado é, ele próprio, opressivo; assim a transformação estética é engajamento, é o artista, o intelectual, o historiador, o músico tornarem-se funcionários da humanidade.

Manoel Ferreira

22 de outubro/02 de novembro de 2003

 

 

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