MÚSICA E HISTÓRIA À BUSCA DA TOTALIDADE Manoel Ferreira Neto: DISSERTAÇÃO EM HISTÓRIA E MÚSICA $$$

 


Consideramos ser Sartre quem levou a crítica à totalidade às conseqüências extremas, através da clara distinção entre totalidade e totalização.

***

O terreno em que se verifica a aventura humana é o da totalização. O ponto de partida para entendê-la está na necessidade, na qual se vê a “primeira relação totalizante”, e no trabalho: “O trabalho só pode existir, qualquer que seja ele, como totalização e contradição ultrapassada”.

***

O ponto de partida está, portanto, como em Marx, na satisfação das necessidades pelo trabalho, e o fundamento desse processo, como em Marx, encontra-se, por um lado, na exterioridade, ou seja, na natureza, que “é ao mesmo tempo, o meio permanente e a ocasião profunda da totalização”

***

A essência do indivíduo humano é o conjunto de suas relações sociais, ou seja, forma-se pela relação com os outros, razão pela qual o processo de humanização do homem e a formação da individualidade humana consistem no processo de humanização de suas relações.

***

A argumentação de Marx é que, ao manifestar sua natureza, os homens criam, produzem a comunidade humana, a entidade social, que não é um poder universal abstrato oposto aos indivíduos singulares, mas a natureza essencial de cada indivíduo, sua própria atividade, vida, espírito, riqueza.

***

A totalidade social, em suas determinações ontológicas, não se desdobra num para-além das existências individuais, consistindo antes da forma em que se efetiva a interatividade dos indivíduos e que a cada momento histórico resulta da evolução prévia dessa mesma atividade.

***

Partindo do pressuposto de que a atividade produtiva interfere na consciência humana, ou seja, quando o homem produz, está ele também produzindo sua consciência. E, na atividade produtiva dos homens, Marx vê estes não como uma natureza humana em todo tempo e lugar. O trabalho humano, por outro lado, depende da consciência que antecipa a ação pelo pensamento, estabelecendo a dialética homem-natureza e pensar-agir. E esta atividade humana de transformar a realidade é uma união dialética da teoria e prática, responsabilidade e liberdade, visto ser esta ação o leitmotiv do projeto.

***

Dois são os argumentos de Sartre contra a dialética da natureza. O primeiro assevera que

“(...) existem seres estruturados na natureza, mas nós os apreendemos como exterioridades, seja porque conservam um estatuto de exterioridade em relação a si mesmos, seja porque nós sempre somos exteriores a eles quando os conhecemos”

***

O segundo argumento consiste em negar que a natureza seja uma totalidade; na melhor das hipóteses, poder-se-ia pretender que há dialéticas na natureza e ignoramos se há uma dialética: a totalidade é patrimônio do para-si .

***

Afirmar que a natureza desconhece a dialética porque ela nos permanece, por princípio, exterior, resulta no mesmo que restringir a dialética ao campo da consciência. Todavia, não se percebe porque se deva negar a dialeticidade da natureza pelo fato de ela nos ser exterior; em verdade, o argumento é “exterior” e tem uma alçada puramente negativa: seu pressuposto implica dependência recíproca entre dialética e consciência.

***

Realmente Sartre bloqueia excessivamente o acesso do homem à natureza: a filosofia da natureza e a filosofia da ciência são capítulos praticamente inexistentes em sua obra, e tudo indica que a lacuna se deva a uma impossibilidade. Tudo indica!... Em verdade, entre a tragédia e a filosofia há uma conexão, e entre a filosofia e a literatura há outra conexão... Estabelecendo esta distinção, é-se possível compreender o por quê desse bloqueio. Para Sartre, fundamenta-se ele na interioridade e exterioridade.

***

Sartre tem razão quando pretende que a tese da dialética da natureza parte de um a priori que não encontra justificava; não há, de fato, embasamento sólido para afirmar a dialética como a lei da natureza.

***

Torna-se impossível entender filosoficamente a Crítica da Razão Dialética sem o conhecimento prévio de O Ser e o Nada – e não se trata tão-somente de respeitar a progressão, digamos, exterior da filosofia de Sartre; ambas as obras são atravessadas por um mesmo e profundo dualismo, não obstante se situarem em planos diversos.

***

O conceito fundamental e onipresente em O Ser e o Nada é o de nadificação; o para-si manifesta-se como poder nadificador, pois que o nada habita sua própria raiz. Na Crítica, o conceito basilar é o de totalização, que, ao menos aparentemente, se apresenta como o oposto do processo nadificador; por totalização se entende o processo que arranca da práxis humana e do inerte até alcançar a integração plena da História – processo este que dá corpo à dialética.

***

Sartre levanta a hipótese de se considerarmos que somos uma compreensão do outro em história, isto é, do ato do outro, da práxis e que somos nós mesmos práxis e se compreendermos que ambas as práxis estão necessariamente situadas. Chegamos, assim ao fundamento não somente da antropologia em geral, mas da antropologia marxista. Não devemos nos esquecer que toda a filosofia sartreana é uma busca pelo fundamento.

***

Se consideramos o mundo sob a forma da compreensão, há objetividade total, somos todos perfeitamente objetivos. Objetividade que se revela na responsabilidade com a História, significando com isso a interferência no destino histórico da humanidade.

***

Nadificação e totalização só são inteligíveis a partir da ambigüidade de seu relacionamento com o ser; de um lado, o ser e seu fundamento e, de outro, eles se constituem pela negação do ser que os torna possíveis. Erram, por isso, os autores que pretendem encontrar uma oposição radical entre esses dois conceitos e ver no processo de totalização o naufrágio da realidade humana. A sua realização se faz através deste processo. Numa imagem muito querida a Sartre, quem se engaja inevitavelmente tem de sujar as mãos de merda, mas é assim que se vê as que estão limpas.

***

O conceito medular da Crítica é a práxis. Ela se realiza à medida que se concretiza o ideal de totalização ao qual tende: a práxis se dialetiza para totalizar-se. Considerado positivamente, o processo de totalização motiva a dialética da práxis.

***

Entretanto, de um modo análogo ao que acontece na dialética platônica, todo o processo conhece também uma motivação negativa; de certo modo, o momento negativo ou antidialético propulsiona todo o processo, ou melhor, o elemento antidialético deve ser vencido para que se desencadeie a dimensão propriamente humana da práxis.

***

Há um domínio em que Sartre diz a lei da subjetividade dever primar e que a primeira, a última palavra deviam caber ao homem só. Isto no que concerne ao primeiro Sartre. O segundo muda de opinião. Denuncia, também aí, os perigos da subjetividade desenfreada.

***

Sartre, como se sabe, não debate nem responde, ele quem disse ser agradável falar de pequenas coisas com uma mulher bonita a discutir filosofia com Raymond Aron; ele que, em 1975, dizia a Contat ter, na juventude, “discutido muito com Aron ou Politzer”, mas que “isso não servia para nada” e que, de qualquer maneira, sempre “detestou” as “discussões de idéias entre intelectuais, porque ficamos “sempre abaixo do que podemos” e “dizemos muita besteira”.

***

Esse homem tem a petulância de dizer, apoiando-se no precedente das “seções” de 1793, que “o verdadeiro pensamento é um pensamento de pessoas que deixaram a série para serem grupos”. Como se precisasse!... Dizer ainda que o indivíduo só é, ainda e sempre, um “idiota”. Não pudesse perder uma oportunidade de lembrar que o indivíduo separado é o parti pris da série e, portanto, do não-pensamento. Também nesse campo, na ordem do pensamento tanto quanto na da revolução ou do motim, conviesse sair da falsa multidão, do falso grupo, da falsa intriga.

***

Paulo contra João... A religião de Paulo, que Fichte dizia ser uma religião do “debate”, uma doutrina da “razão raciocinadora” – enquanto o solipsismo de João anuncia um Deus de pura graça “no qual estamos todos, no qual todos vivemos e podemos ser bem-aventurados”.

***

O núcleo central designado por Fichte pela palavra “eu” não deve ser confundido com a consciência individual do próprio Fichte ou de qualquer pessoa e nem mesmo com um simples “sujeito abstrato”. O filósofo não construiu um sistema de idealismo subjetivo e afirmou claramente: “O eu não deve ser considerado como mero sujeito, como foi considerado até agora, quase sem exceção, mas como sujeito-objeto”.

***

A palavra eu (ou, mais exatamente, eu puro ou egoidade) designa uma consciência transcendental, isto é, uma estrutura universal, independente das consciências individuais e tomada como pura atividade; encerra em si a estrutura de todo e qualquer conhecimento teórico, ao mesmo tempo que o fundamento de toda e qualquer ação prática do homem.

***

Em outros termos, o eu fichtiano constitui uma unidade daquilo que Kant separou como duas razões, a pura e a prática. Toda a obra puramente filosófica de Fichte procura demonstrar essa unidade radical. Tal tarefa foi considerada por ele como a forma através de que se poderia elevar a filosofia à condição de ciência evidente, saber do saber, conhecimento da razão pela razão.

***

A questão da natureza. O primeiro Sartre não era o exemplo de um antinaturalismo conseqüente? Não fazia o possível – sabia ser este o preço da liberdade dos homens – para desnaturar o sujeito? Em A Crítica da Razão Dialética, escreve:

“(...) a história do homem é uma aventura da natureza”, e isso, não só porque “o homem é um organismo material, com necessidades materiais”, mas porque “a matéria lavrada, como exteriorização da interioridade, produz o homem, que a produz ou a utiliza, por ser constrangido, no movimento totalizante da multiplicidade que ele totaliza, a reinteriorizar a exterioridade de seu produto”7

***

A história não é simplesmente inalterável, mas inesgotável. Isso é o que dá sentido a estar-se preocupado com o passado e determina a necessidade de constantes reinterpretações. Nada mais absurdo do que a idéia de “história definitiva”, de “tratamento definitivo” – até de amor-definitivo: o homem é um pro-jeto desenfreado, sem limites, no sentido de sua personalização - deste ou daquele período, ou de uma “biografia definitiva” etc., a qual teria como corolário a antecipação de um estágio em que, dada a acumulação abundante de grande quantidade de coisas definitivas, não haverá mais necessidade de reexame constante da história.

***

Em sua obra mestra, Sartre acena de passagem ao problema da história: “A história tem um sentido?”. Contudo, a pergunta é recusada, simplesmente porque a “questão não está resolvida – ela é talvez insolúvel”. Eis a única razão que oferece para essa recusa: todas as respostas dadas ao problema da História compreendida como totalidade de sentido são históricas.

***

O que quer dizer aqui “histórico”? Evidentemente, não caberia imaginar que Sartre defenda um relativismo historicista. Isso seria demasiado ingênuo, além de contraditar sua compreensão do conhecimento. A contradição levaria a uma liberdade solipsista, o que desembocaria numa existência desenfreada.

***

Pensando em alguns aspectos de sua análise existencial, parece claro que o adjetivo “histórico” leve a ligar o problema do sentido da História à subjetividade; toda concepção da História seria uma invenção da má-fé; e o caminho para elucidar o tema estaria na análise da historicidade da existência humana – e é precisamente neste ponto que Sartre silencia.

***

Se se admite um sentido da História – seja ele total ou não -, cabe perguntar pela relação desse sentido com a realidade humana e, mais especificamente, com a liberdade. Se o sentido da História permanece exterior ao homem, a questão torna-se irrelevante e deve ser descartada: o sentido só funciona como ausência de sentido. Se, pelo contrário, atinge o homem, então a História condiciona de algum modo a liberdade; o homem estaria inserido num sentido que o transcende, e, “lendo” o significado da sucessão dos acontecimentos, ele leria a si próprio, ou decifraria o horizonte a partir do qual sua liberdade se tornaria inteligível.

***

Em “O Ser e o Nada”, o problema da história possivelmente seria elucidado de modo análogo ao da “temporalidade psíquica”, que é contraposta por Sartre a uma “temporalidade original”. Se há uma ordem sucessiva de fatos interiores, tal continuidade constitui um evento “evidentemente derivado”, e tudo se explica como “objetivação em um em-si da temporalidade original”.

***

Assim, a objetivação derivada edifica todo um mundo psíquico, destituído, porém, de consistência própria: sua existência é “puramente virtual”. A temporalidade histórica deveria ser explicada por Sartre da mesma maneira; compreender-se-ia, desse modo, suas reservas.

***

O significado puramente virtual da História deveria encontrar sua razão de ser em qualquer coisa como uma historicidade original, própria do para-si. Também a História seria objetivação. Entretanto, a objetivação instauraria um em-si, e sabemos que todo em-si resulta falsificador da liberdade, forjador de má-fé, e aceitar um sentido da História implicaria em substituir-se.

****

Nessa perspectiva, entende-se que Sartre possa dizer que a filosofia exigida pelo revolucionário “nasce de uma empresa histórica e deve representar para aquele que a reclama um certo modo de historicização que ele escolheu, ela deve necessariamente apresentar o curso da história como orientado ou ao menos como orientável”

***

O significado que possa ter a história está contido na escolha original ou no projeto fundamental da realidade humana, e, assim, antes do homem estar inserido na História, é esta que se explica a partir daquela escolha. O estar-engajado a um pro-jeto de humanização da humanidade, a consciência.

***

Se a participação de alguém não é mais do que olhar a história pelo buraco da fechadura, melhor seria que o espetáculo fosse visto como “definitivo”, de modo a dar-lhe a ilusão de estar observando a história em sua inexorabilidade e em sua imponente permanência.

***

A relação do homem com o passado não constitui esfera privilegiada de especialistas positivisticamente desorientados, mas sim uma dimensão existencial inseparável dos dilemas e dos desafios do presente. A avaliação de eventos e personalidades do passado, à medida que surge das necessidades de uma relação definida, tem que ser tão definitiva quanto possível em termos da relação dada, o que significa necessariamente que, quanto mais definitiva for como articulação específica de temporalizações sócio-histórica determinada.

***

O que faz das biografias de Isaac Dutscher obras duradouras não é o fato de conterem tudo em forma “definitiva” (e como poderiam?), mas sim o de oferecerem uma seleção significativa de dados, relevantes a sua própria busca e à orientação de seus contemporâneos. O fator isolado mais importante na constituição do significado é a paixão subjacente que dá vida à própria pesquisa.

***

Não significa isto negar objetividade à história. Ao contrário, uma definição precisa de sua natureza e de seus limites salva a objetividade histórica da desgraça do relativismo extremado que ela suporta pelas aspirações contraditórias do positivismo e do “cientificismo”. Estas partem da presumida objetividade da “completude”, ignorando a arbitrariedade da escolha da própria pesquisa, com o que a relação adequada entre pesquisa e pesquisador é completamente subvertida.

***

Não é o pesquisador que procura pelos dados. Ao contrário, a disponibilidade de dados abundantes cria o pesquisador reificado do discurso institucionalizado. E, naturalmente, a ideologia autojustificadora desse tipo de procedimento assume a forma de não considerar a necessidade de justificação de qualquer pesquisa, seja qual for, não importando o quão trivial e irrelevante possa ser.

***

Toda e qualquer coisa pode ser “pesquisada” e afixada num cartaz de uma forma pela qual a “objetividade” morta de dados empoeirados liga-se a um pseudo-sujeito impessoalmente “objetivo”.

***

O único Deus relevante para a história humana é feito à imagem do homem vivo tridimensional e, assim sendo, os dados dessa história decididamente não são eqüidistantes dele.

***

A objetividade da história não é a objetividade de um prego, muito menos de uma pedra, pois “o homem não é um prego pensante”, como Sartre muitas vezes nos lembra.

***

A Objetividade histórica é dinâmica e mutável, como o é a vida, não em si e por si – pois isso ainda se poderia reproduzir a um conjunto de leis naturais mais ou menos simplificadas -, mas à medida que evolui, sobre uma base natural radicalmente modificada pelo trabalho e pela auto-reflexão, dentro da esfera social.

***

A objetividade da própria busca é determinada pelas condições de uma dada temporalidade, a qual, é claro, implica antecipações e avaliações de tendências futuras de desenvolvimento.

***

À medida que o homem constrói a própria história, com base em determinações temporais e estruturais – preservando-as e superando-as – certas características do passado, antes não visíveis, passam para o primeiro plano.

***

Considerando a relação entre o escritor e sua época, o problema a explicar é duplo: individualidade e “autonomia”, por um lado, e determinações sociais, por outro. Eis como Sartre formula essa questão;

“Gostaria que o leitor sentisse a presença de Flaubert o tempo todo; meu ideal seria que o leitor, simultaneamente, sentisse, compreendesse e conhecesse a personalidade de Flaubert, totalmente como indivíduo e, contudo, totalmente como expressão de seu tempo”

***

E em termos gerais:

“Creio que um homem sempre pode fazer algo a partir do que é feito dele. Este é o limite que eu hoje atribuiria à liberdade: o pequeno movimento que faz, de um ser social totalmente condicionado, alguém que não devolve completamente aquilo que seu condicionamento lhe deu. (...) O indivíduo interioriza suas determinações sociais: interioriza as relações de produção, a família de sua infância, o passado histórico, as instituições contemporâneas e, a seguir, reexterioriza essas coisas por meio de atos e opções que, necessariamente, nos remetem de volta a elas”.

***

Os elementos constitutivos do desenvolvimento de um indivíduo podem ser resumidos da seguinte maneira:

1. A formação de sua personalidade e pensamento em sua juventude e a interiorização das instituições que vivencia (família, classe, etc.);

2. as determinações seguintes de seu ambiente social, com todas as suas mudanças, e a interiorização delas pelo indivíduo;

3. a auto-definição do indivíduo em seu cenário social, pelo trabalho (p. ex., escrevendo), e a reação a isso de seu ambiente social;

4. a interiorização da própria obra e das conseqüências sociais dela pelo indivíduo em questão (de seu “interesse ideológico” como intelectual, por exemplo);

5. uma possível reexteriorização de uma crítica da última interiorização como negação das bases sociais do tipo de obra em questão (p. ex., a negação do papel do “intelectual tradicional”).

***

Uma sociedade compõe-se de múltiplas camadas de instrumentos e práticas sociais coexistentes, cada qual com seu ritmo específico próprio da temporalidade: fato esse que acarreta implicações de longo alcance para o desenvolvimento social.

***

Disse Sartre a Michel Contat numa conversa de sua vida privada, estar ela separada do restante. Ora, “essa distinção entre vida privada e vida pública não existe”. “Não posso reivindicar uma vida privada, isto é, uma vida escondida, secreta”. Pois “a existência de alguém forma um todo”, “o dentro e o fora”, o subjetivo e o objetivo, o pessoal e o político ressoam, necessariamente um no outro” e “são aspectos de uma mesma totalidade. E o que “vicia as relações entre as pessoas” é que “cada um conserva, com relação ao outro, algo escondido, secreto”.

***

Sartre reintroduz entre as pessoas o que os gregos chamavam de hypopsia, o horrível “olhar por sob”, ou “suspeita”, que é, talvez, o verdadeiro início do totalitarismo entre as almas. Mas o que se vê, sobretudo, é que essa cultura da suspeita, essa transparência percebida como possibilidade que tem cada um de se ligar a cada um e, portanto, queira-se ou não, de puni-lo, decorre, ainda, desse ideal de comunidade sem defeito, sem reserva, como o Sartre nascido na temporada Stalag: é o projeto comunitário, a idéia de ser a comunidade boa, de haver boas comunidades, que oferecem à Transparência sua terrível exigência.

***

Quanto à totalidade, Sartre chega a falar em “determinação de uma totalização presente em nome de uma totalidade futura, trabalho real e eficaz da matéria” , o que se coaduna com o plano finito-teleológico. A questão toda toma outras feições quando se passa à esfera do que se poderia chamar de totalidade presente.

***

Em primeira instância, existe o que se poderia chamar de presença da totalidade enquanto experiência da ambigüidade radical. De um lado, é indubitável o mundo oferecer hoje o espetáculo de uma totalidade em marcha, ainda que vincada de contradições de toda ordem. Mas, em todos os níveis, o homem tende a ter hoje, como nunca no passado, a experiência do mundo como inelutável unidade; a realidade histórica se oferece à visão cotidiana como uma rede em que todos os fios se condicionam e parecem formar uma unidade à qual ninguém pode subtrair-se.

***

Os fios dessa rede são estabelecidos de modo muito preciso pelos sedutores avanços da tecnologia.

***

Por outro lado, quem disse que o Deus que ainda se move avantajado através das páginas da Fenomenologia do Espírito foi desbancado por esse outro monumento que é O Capital, deu xeque-mate: o mundo contemporâneo percorre as figuras que constituiriam uma Fenomenologia do Capital, cujas etapas essenciais já foram, de resto, fixadas por Marx.

***

Para considerar o conjunto de uma obra global, faz-se mister integrar a totalidade de cada um dos pontos e fases num movimento dinâmico, sem eliminar a vitalidade existencial dos elementos individuais.

***

Qualquer tentativa de universalizar diretamente uma determinada fase – que é sempre constituída de elementos mais, ou menos, conflitantes – resultará apenas numa projeção histórica de uma parte específica sobre o todo e, ao mesmo tempo, na liquidação da tensão dinâmica a ele inerente. Pois qualquer fase específica representa “ipso facto” também um nível específico de realização e de ponto de repouso, o qual, se generalizado, inevitavelmente cristaliza o movimento (que chegou até ele e que prosseguirá depois dele) e distorce seriamente a figura como um todo.

***

O único modo de proceder propriamente histórico é utilizar o próprio movimento como princípio de seleção aplicado a todos os pontos e fases específicos. Desse modo, a universalização surgirá como a estrutura global – uma estrutura dinâmica e não estática – cujos elementos individuais possuem pesos relativos que variam.

***

Não exageramos, se dizemos que a experiência da totalidade se fez “lisível” na face do mundo. Tudo isso, de certa forma, confirma a substância universal de Hegel:

“Os indivíduos”, dizia ele, “desaparecem diante da substância universal, e esta forma os seus próprios indivíduos, aqueles de que necessita para os seus fins. E os indivíduos não impedem que aconteça o que acontecer”

***

A paisagem, contudo, permanece ambígua, e logo se ouve o aflitivo desmentido de Adorno:

“Quanto mais a sociedade contribui para a totalidade, que se reproduz no desterro do sujeito, tanto mais profunda é a sua tendência para a dissociação”

***

O que cala fundo em Adorno não é mais apenas o atentado à Metafísica que foi o terremoto de Lisboa e que teria curado Voltaire do otimismo da Teodicéia de Leibniz, e sim algo que tornou a Metafísica aleijada por um monstruoso triunfo dialético, pela cruel passagem da quantidade à qualidade através do assassinato de milhões de pessoas nos campos de concentração. Aqui, já não é tão-somente indivíduo que morre, e sim o espécime.

***

Em nosso tempo, a experiência da totalidade tornou-se sobremodo suspeita – a rigor, ela não existe mais como experiência. A fortaleza da universalidade do Espírito17, Fenomenologia do Espírito, Hegel, e a sua indiferença em relação ao indivíduo encontram o seu horizonte possibilitador na então ainda possível convicção romântica da unidade, e cuja última expressão maior traduz-se justamente em Hegel e também em Wagner.

***

Dir-se-ia que, depois de Hegel, o homem passou a viver a desagregação da totalidade metafísica. Mas sequer se pode falar propriamente em desagregação, porque não há mais a crença da identidade inicial. O que constitui a experiência do real arranca muito mais de um pluralismo que desautoriza a identidade e torna viciosa toda construção de uma totalidade especulativa.

***

Hegel fornece ainda o diagnóstico de uma saúde mínima e essencial, ao dizer que

“(...) cada indivíduo é filho de seu povo em uma etapa determinada do desenvolvimento desse povo. Ninguém pode saltar por cima do espírito de seu povo, assim como não pode saltar por cima da Terra. A Terra é o centro de gravidade”

***

Um povo é primeiramente então, para Hegel, uma realidade espiritual enquanto constitui uma figura particular do Espírito universal: esse Espírito do povo é determinado como uma forma de consciência específica, historicamente delimitada por meio da forma de cultura (Bildung) que propriamente lhe pertence. Uma cultura histórica é “a lei que penetra todas as relações, todas as situações próprias a um povo”; não se trata aqui da liberdade subjetiva no sentido do indivíduo em particular, pois este se acha, ao contrário, submetido à cultura de seu povo e de seu tempo, que ele não pode ultrapassar, e somente por essa mediação ele entra em relação com o Espírito universal. Porque um povo só pode ser livre dentro dos limites que lhe são estipulados pela sua situação histórica, por meio dos quais ele chega subjetivamente à consciência de si mesmo.

***

Em que termos se poderia colocar hoje a questão da totalidade? A questão permite duas perspectivas de consideração: uma vista desde baixo e a outra desde cima. Podem ambas ser analisadas do ponto de vista da experiência e na perspectiva do conceito.

***

Em se tratando da primeira, a de uma totalidade negativa que deve ser explícita a partir da experiência da ruptura como perda da unidade do mundo. A critica do conceito de “negação da negação”, que é, Sartre bem o sabe, o nervo da guerra hegeliana. Ele crê na negação, mas não na negação da negação. E ele o repete, e repete ainda, no decorrer de longos desenvolvimentos destinados a estabelecer, primeiro, que “o ser que é objeto do desejo do para-si é um em-si que seria por si mesmo o seu próprio fundamento”, depois, que “o para-si, sendo negação do em-si, não poderia desejar o retorno puro e simples ao em-si” e que, por conseqüência, é a própria noção de negação da negação que perde o seu sentido e a sua pertinência.

***

Autores que se prendem à idéia de que vivemos sob o signo da morte de Deus deixam-se balançar por um fundo nostálgico já destituído de raízes, cuja contrapartida está no necessário programa de viver em uma paisagem despojada de Deus – e despojada por puro sentimento de indiferença.

***

Na segunda perspectiva, há sempre um movimento em direção à totalidade, seja porque não se pode habitar o sem-sentido da ruptura em seu estado bruto, seja porque o saber se constrói como que orientado para o limite da totalidade.

***

Esse movimento totalizante já pode ser entendido desde as entranhas da revolta contra a totalidade. A questão da totalidade assume os traços de uma complexidade inaudita. Não se trata mais da incontornável obscuridade do Hegel das grandes conclusões, objeto unânime de recusa, mas sim de coadunar essa categoria com uma realidade essencialmente finita – finidade que se mostra na insuperabilidade do processo dialético na sua condição de processo.

***

A questão toda concentra-se na dimensão teleológica do processo, e as posições já começam pela simples recusa dessa dimensão, o que significa a assunção de um hegelianismo truncado.

***

No sentido de equacionar bem a questão, há um texto de Hegel:

“Na medida em que a atividade consistisse apenas em determinar novamente a objetividade imediata, o produto voltaria a ser simplesmente um meio, e assim ao infinito; resultaria daí apenas um meio adequado ao fim, mas não a objetividade do próprio fim”

***

O que Hegel faz neste breve texto é a distinção, corrente hoje, entre totalidade e totalização. Na totalização dar-se-ia a redução do produto à condição de meio, num processo que não teria fim: a categoria do meio seria fim em si mesma, ou a negação do fim.

***

Digamos que Hegel define a totalização apenas para mostrar a sua radical insuficiência e a necessidade de convertê-la, pela superação, à totalidade metafísica. Hoje, até certo ponto, as posições se inverteram; acentua-se a totalização contra a totalidade resultante do Aufhebung, ou seja, um momento negativo-destrutivo articulado a um outro positivo-construtivo.

***

Com isso, a mediação, ou o jogo dialético das mediações, alcança um peso insuspeitado por Hegel, e que faz presente como exigência da complexidade do finito. De certo modo, já não se consegue mais superar a rede de mediações. Só o ato criador absoluto poderia dispensar as mediações, e é justamente esse ato absoluto que se tornou suspeito entre todos, por trazer consigo o contágio de um princípio de desvirtuamento essencial da realidade finita.

***

A totalização não poderia ser uma simples totalidade: trata-se de um processo dinâmico, dialético. Com as palavras de Sartre:

“(...) as estruturas desta família são interiorizadas em atitudes e reexteriorizadas em práticas pelas quais a criança se faz ser o que se fez dela. Inversamente, não encontramos nela nenhuma conduta, por complexa e elaborada que possa parecer, que não seja originariamente a ultrapassagem de uma determinação interiorizada”.

Manoel Ferreira Neto

22 de outubro/02 de novembro 2003

 

Comentários