#ZERO AO DESVARIO CÚBICO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA



Elevo o desvario ao cubo talvez na tentativa de alcançar a terceira potência do zero, isto porque nada há senão zeros na alma. De zeros existo, de zeros o mundo suspenso sem freixas cobrindo os buracos da estrada. Posso estar enganado, alfim da matemática nada entendo, sei apenas somar, diminuir, dividir e multiplar, mas 0 ao cubo é igual a zero, três a zero é igual a um. Só me pergunto como pode isso? Talvez o Cálculo responda!
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As medidas humanas, não se podem superestimá-las. Vejo em miniatura as coisas pequenas da vida e continuo a ver em tamanho natural as grandes, por ingenuidade ou respeito pelas convenções, não são estas que imperam, governam?
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Não sei é definir com categoria, se não é o inverso que se apresenta aos olhos, as coisas grandes da vida em miniatura, e as pequenas em tamanho natural. Pode ser que a reverência e a miopia exerçam forte influência na visão, e para que sejam vistas realmente haja necessidade de reverter os estados psíquicos.
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Reverencioso e míope (uma coisa devido à outra), arregalo os olhos diante da série de colossos mais ou menos míticos que os homens erguem ao longo do caminho para terem uma impressão melhor de si mesmos. Os vivos, sempre baixos demais sobre suas pernas em liberdade, têm necessidade de crescer à sombra dos mortos. Em contrapartida, minhas gesticulações de homem podem passar por interessantes sobressaltos.
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Resta-me descobrir a miséria das lendas, esse entrelaçado de imponderáveis e de improvisações, ambíguo tecido de banalidade em que a Fortuna recorta suas mais belas formas. Eis a questão: por que me interessaria descobrir essas misérias? Talvez o interesse não seja de descobri-las, mas recortar as belas formas da Fortuna e, com engenhosidade, traçá-las com espírito sério, o mesmo que contribui para as grandes transformações, mudanças, o homem reconhecendo os seus valores mais profundos e essenciais.
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A vida futura, que enigma! E ninguém a isto pode responder! Não ouso pedir a quem quer que seja que acredite em mim, mas asseguro, da maneira mais solene, que não é por leviandade que falo agora, essa idéia da vida de além-túmulo me emociona até o sofrimento, até o espanto e os rancores.
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Ouvira, ainda na tenra infância, que haver nascido é aprender a morrer passo a passo, e cada passo dado tem por finalidade e objetivo a construção de valores que justifiquem e expliquem a minha presença no mundo. O modo de superar a morte é construir a vida, e esta são valores, estes que despertam os outros para o sentido da vida. Aprendi, então, a viver sob a sombra da morte, obcecado com os valores.
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Quem para farejar possui não apenas o nariz, mas também os olhos e ouvidos, sente, em quase toda parte aonde vai atualmente, algo semelhante a um ar de hospício, a um ar de hospital?
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É certo que ousei, inovei, resisti, desafiei o destino mais que todos os outros homens reunidos: eu, o grande experimentador de mim, o insatisfeito, insaciado, que luta pelo domínio último com a natureza e os deuses.
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O sol progride para o horizonte. Poucas nuvens, flutuando no céu, recebem os primeiros raios de luz e lançam o brilho dourado nas janelas de todas as casas da rua. No chão do escritório, estende-se um tapete, primitivamente de rica textura, mas agora surrado e desbotado pelo longo uso que lhe transformou a aparência brilhante num tom indistinguível.
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Quem sabe para compensar o que estavam a ensinar-me sobre a vida, a morte, esta ser uma conseqüência natural da primeira, disseram-me que para ser homem de valor indiscutível era necessário plantar uma árvore, escrever um livro, ter filho. Assimilei a idéia. Fizera as três coisas com amor e seriedade, era a minha salvação.
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Ao longo da vida, armazenei inúmeros rancores, ressentimentos, ódios por me haverem recusado oportunidades que com esforço e muito trabalho proporcionar-me-iam o sentido da vida. E o temor de morrer sem nada haver construído, sem mostrar as idéias que nortearam a minha caminhada, as profundas preocupações com o destino do homem, perseguira-me sem descanso algum. Pensava comigo, após a minha morte, o que diriam os homens, conhecidos, amigos, inimigos, indiferentes: “Viver tanto para nada. O que deixou ele? Coisa alguma? E tinha muitos dons que outros teriam sabido que rumo dar a eles”.
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Por anos a fio... De repente – essa idéia não procede muito, pois nada acontece num passo de mágica – algo modificara, reconhecera os dons, soubera dar-lhes vida e sentido, mas permanecera a morte. Morrerei, sem dúvida. Às vezes, a morte não me assusta, não me angustia, não me desespera: algo natural. “Para morrer, suficiente estar vivo”, é o que penso. Noutros momentos, indigna-me isto de ter de morrer.
Asseguro que tudo isto provém a princípio do temor, inspirado pelos fenômenos grandiosos da natureza, mas que nada existe. Grosso modo, não é absolutamente o temor ao homem, aquilo cuja diminuição se poderia desejar: pois esse temor obriga os fortes a serem fortes, ocasionalmente temíveis. O que é de temer, o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não é o grande temor, mas o grande nojo ao homem: e também a grande compaixão pelo homem.
Nojo e compaixão! Que paradoxo! Tenho nojo das atitudes de não, as invejas, despeitos, arbitrariedades e gratuidades de toda espécie, interesses particulares e imediatos... Ao mesmo tempo, a compaixão por não saberem muitas vezes que agem deste ou daquele modo, são inconscientes, a sociedade lhes pervertera. Não têm culpa, não são responsáveis.
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Pois bem! Penso eu, acreditei toda a minha vida; morrerei e não haverá nada e somente “a relva brotará sobre o túmulo.” É horrível! Como recuperar a fé? Nalguma luz de inverno? Elevando o desvario ao cubo?
@RIO DE JANEIRO, 17 DE MARÇO DE 2020

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