**ALDEIA DE GATO ESCALDADO** GRAÇA FONTIS: PINTURA Quinzinho de Parafusos a Menos: SÁTIRA



Quem mora na aldeia conhece os caboclos.
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Sem inspiração para este adágio gaúcho, talvez por ser eu bicho do mato, preguiçoso, gosto de ficar deitado na rede, bem distante das pessoas, infernizam-me com conversas para boi dormir, fofocas e suas adjacências, capachos que se amarram, acorrentam-se, algemam-se às saias dos outros, em nome de uma defesa, sabendo bulhufas das coisas acontecidas, aquelas que tomam as dores dos outros.
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Aqui na Aldeia de Gato Escaldado não há quem saiba do gato que cruzou a estrada, passou por debaixo da escada, no fundo azul da noite da floresta a lua iluminou a dança, a roda, a festa. Não sabem que a vida precede a morte. Como disse uma amiga: "Odeio pessoas que se sentem grandes. Gosto de pessoas simples". Respondi-lhe: "Grande é muito extenso, amiga. Não sabem disso. O sentimento de grandeza sempre foi para esconder, envelar a pequenez."
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A vida alheia é o assunto de todos os instantes, lerem o tablóide dos colunáveis, só colaboradores imbecis, providos de só instintos da era lascada. E quando se metem a escrever poemas nestes tablóides: um é sempre maior, mais importante que o outro, e os poemas mesmos não mostram qualquer importância. Não dou bom dia a "cabalos", não hasteio bandeiras do riso de orelha a orelha, sempre em silêncio. Julgam-me orgulhoso, coronel de bota de cano longo e sombrero, o que se acha o deus.
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Pela manhã, quando saio de casa para comprar pão, leite e cigarros, a mulher recomenda: "Ande sempre de cabeça baixa, não olhe de soslaio para lugar algum. De preferência na sombra". Todo dia ela fala a mesma coisa, sabe que não gosto de conversa, mas a cada dia gosto de seu jeito de se preocupar comigo. Não cumprimento ninguém nem com reverência de cabeça, não respondo a cumprimentos. E quando vou passando nas ruas com as sacolinhas nas mãos, apontam-me, sorriem, fazem até gestos obscenos, a caboclada não sabe que de cabeça baixa, olhos pregados no chão, enxergo tudo nitidamente. Certa vez comentei com uma amiga cega de nascença: "O deficiente visual enxerga muito mais que as pessoas que têm a visão, porque enxergam com a sensibilidade" Enxergo com a sensibilidade. Perfeitos orelhas em pé. Costumo dizer à minha mulher que nesta Aldeia do Gato Escaldado os caboclos nasceram ao contrário: cabeça no lugar do rabo, rabo na cabeça: "Só mesmo você, meu, senhor Quinzinho, para assim pensar"
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Sou mudo, surdo. Em aldeia de cegos, quem enxerga apenas a ponta do nariz é escravagista. Em aldeia de surdos, quem ouve o sibilo de ventos, os sons do inaudito é o Sheik do Deserto. Certa vez dissera que nossa aldeia era dos quatro "p", puta, padre, pederastas e políticos, quiseram amputar a minha língua, só não o fizeram porque a ciência da amputação não estava desenvolvida, sem pedigree de progresso. Meu Deus! O tablóide local publicou matéria dizendo que estava eu sofrendo de desatino existencial, mas o editor-chefe tinha o hábito de tirar leite em cavalo. Convidei minha mulher para jantarmos no restaurante dos colunáveis, produzi-me à categoria: calça social preta, camisa vinho forte de seda, paletó, bengala de cabo de prata, boina preta russa. Minha mulher de vestido branco longo, chapéu feminino à francesa, leque devido ao calor intenso daquela noite. O editor-chefe estava de calça jeans toda remendada, tênis sujo, barba por fazer, cabelos desgrenhados, camisa encardida, além das olheiras roxas de tanta cachaçada, andando às capengas devido à gota. Os colunáveis seguindo o layout de cada um. Estavam reunidos para discutirem o que fazer com um Acadêmico que havia brigado com o Presidente da Academia de Letras, fundado outra Academia, discutiam em todas as mesas como iriam acabar com a raça dele.
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Pedimos um churrasco de costela assada no angico, qual amigo dos pampas me havia sugerido, o melhor vinho. No outro dia, os colunáveis e os caboclos disseram que o desatino existencial em que estava eu, dele sofria, era por ser amigo de quem havia brigado com o presidente emérito da academia e aberto outra Academia. A coisa era justamente esta: todos em uníssono resolveram afastar todos os amigos do acadêmico, inclusive eu quem poucas relações tinha com ele.
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Uma coisa é certa: mais uma vez me conscientizei de que quem mora na aldeia conhece os caboclos.
#RIODEJANEIRO, 15 DE MARÇO DE 2020#

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