SUBLIME PALAVRA DA VERDADE GRAÇA FONTIS: PINTURA Quinzinho de Parafusos a Menos: SÁTIRA



O meu fim é mais alto. Quem pensa pequeno é imbecil, quem pensa grande, se não é gênio, está quase chegando a sê-lo.
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Não quero nem saber se Girulika Maria Vaclicha faleceu do ataque cardíaco, nem se este foi produzido pela prática evangélica do presidente, quem, com toda empáfia que lhe é peculiar e singular, declarou na ocasião ser coisa desacertada levar àquele lugar pessoas sujeitas a tais crises. Por que deveria eu querer saber destas coisas? Tenho outras coisas para fazer, procurar saber através de questionamentos percucientes.
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Sou homem muitíssimo ocupado, há quem esteja esperando minhas sabedorias e sapiências, dependem delas. Também não quero saber se todas as moléstias são curáveis com um pouco d´água e um padre-nosso (fosse assim, Girulika Maria Vaclicha não teria falecido, o padre jogou água benta em sua cabeça, rezou um padre-nosso, dias antes de seu falecimento, quando teve um enfarto na missa das seis no Santuário) ou se basta este mesmo padre-nosso e a palavra do presidente; ambas as afirmações se combinam, aderem-se, comungam-se, se atendermos a que a melhor água do mundo é a palavra da verdade. Outrossim, não indago se o presidente Tormenta, como inculca, teria “um poder incomparável, caso chegasse a escrever o que fala”. Caso é ótimo, pois não escreve nada.
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Conheci um padre que começou a espreitar de longe os fiéis que frequentavam um templo evangélico próximo à igreja católica. Espreitou por uma semana. Viu com lucidez os fiéis que iam lá. No domingo, após a missa deu aquela sentada nos fiéis, ou eram católicos ou eram evangélicos, nenhum homem serve a duas igrejas. Templo evangélico não é centro espírita. Agora, se é católica, por que ir a centros? Não acredita no poder de Deus para solucionar os problemas e dificuldades de suas criaturas, as doenças? Quê disparate! Acreditar mais em espíritos que em Deus! Havia um templo presbiteriano frente à minha residência, minha mãe proibiu-me terminantemente que passasse na calçada. Obedeci terminantemente. Se é para acreditar, eu acreditaria mais no espiritismo do que nos evangélicos. Eles falam mais no demônio do que em Deus, em Cristo.
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Se é um lugar a que não se deve levar alguém que sofre do coração é num centro espírita, quanto mais quando a pessoa é medrosa. Girulika Maria Vaclicha só dormia com a luz de sua alcova acesa, tinha medo da escuridão, é nela que os fantasmas sempre aparecem. Teve durante a vida vários pesadelos com o demônio, acordava rezando o Pai-Nosso, acordava quando pronunciava as últimas palavras dele: “... livrai-nos do mal. Amém”, de modo engrolado. O marido inúmeras vezes, acordado que estava, acordava-a, quando pronunciava estas palavras. Se bem que “fantasma” não é a mesma coisa que “espírito”, embora o fantasma seja um espírito; fantasma é alma penada, vinda das chamas do inferno para amedrontar os vivos, e os espíritos são puros, estão desfrutando as delícias do paraíso, vêm à terra para ajudar os vivos. Ouvir o espírito encarnado no corpo do médium atiçou o coração de Girulika Maria Vaclicha que, não suportando a pulsação acelerada, faleceu de ataque cardíaco. O presidente tinha razão: não se deve levar cardíacos a centros espíritas, mesmo que eles não tenham medo, nunca se pode saber qual será a reação da pessoa quando o espírito encarna. Não quero nem saber o porquê de lhe haverem levado, talvez quem o fez estivesse esperando uma cura do problema cardíaco dela.
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A questão substancial, e posso dizer sem pestanejar, é a liberdade. O presidente Tormenta e o médium Raio confessaram já ter sido processados, com outros membros da associação, por praticarem o espiritismo. O primeiro acrescentou que, se bem conheçia o art. 157 do Código Penal, exercia o espiritismo de acordo com a disposição do art. 72 da Constituição. Alguém poderia me explicar com clareza e nitidez a razão de o presidente haver metido artigo do Código Penal e sua disposição? Simplesmente não entendi. Estaria ele se defendendo de alguma penalidade por Girulika Maria Vaclicha haver falecido em seu centro espírita? Não me consta que ele tenha sido chamado à delegacia para explicar ao delegado como se dera a morte dela. Não me consta.
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Pode ser que tenha sido e eu não tenha sabido. Para exercer o espiritismo é necessário então estar apoiado pelas leis, pela constituição? Acaso o espírito, a alma penada vão respeitar leis; ainda pelo que me conste não há leis no além, nem no inferno, nem no céu, ainda mais no inferno, os que estão lá desrespeitaram as leis de Deus e as leis dos homens.
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Os entendidos terão resposta fácil, está sempre na ponta da língua; eu, simples leigo, não encontro qualquer que me possa convencer ou persuadir. Vou até à estante de livros, apanho a Constituição, Código Penal. Procuro, são muitos livros, e eles quase não aparecem, são apenas três, todos os outros são de filosofia, literatura, sociologia, psicanálise, psicologia. Acho. Pego de um artigo, pego de outro, leio, releio e tresleio, com bastante atenção. Minha inteligência não foi desenvolvida para analisar e interpretar leis.
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Realmente, a Constituição, mãe do Código, acaba com a religião do Estado, e não lhe importa que cada um tenha a que quiser. Não é interessante ter-se a religião que quiser e não poder ter o Estado que quiser? Se me fosse permitido ter o Estado que eu quisesse, escolheria o Estado sem leis e políticos chinfrins. Desde que a porta fica assim aberta a todos – cachorro só entra na igreja porque encontra a porta aberta -, em que me hei de fundar para meter na cadeia o espiritismo? Imagino o espiritismo na cadeia, os bandidos todos morrendo de medo dos espíritos, debulhando as contas do terço, pedindo a Deus perdão por seus crimes, mas não permitisse que espíritos lá aparecessem. Responder-me-ás que é um burla; mas onde está o critério para distinguir o Evangelho lido pelo Presidente Tormenta, e o do meu vigário é mais velho, mas uma religião não é obrigada a ter cabelos brancos, se os tem é simples livre-arbítrio.
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Curar com água? Acredito piamente no poder de cura da água; aliás, quando estou angustiado, deprimido, basta-me tomar um banho com água morna, um banho demorado, que saio do banheiro curado, a água entra-me na carne e dissolve as angústias e as depressões. Mas o caso aqui é outro bem diferente. Padre Renato não faz outra coisa, e o Código, se ele cá vier, deixá-lo-á curar em paz. Quando o médium Raio declara que recebe os espíritos, e transmite os seus pensamentos aos membros da associação, eu se fosse código, diria ao médium Raio: Uma vez que a Constituição te dá o direito de receber os espíritos e os corpos, à escolha, fico sem razão para autuar-te, como realmente mereces, minha finória; mas não te exponhas a tirar algum relógio aos associados, que isso é comigo.
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Até hoje não sei dizer se o espiritismo é uma religião, se é uma seita. Desde que me entendo por gente fui educado que religião é a católica, as do ocidente. Mas evangelismo, crenticismo, etc., etc., não são religiões, são seitas. Não importa aqui a distinção, nem estou interessado em saber, não passo na porta de templos nem de centros. Se o espiritismo é religião, não sei se falsa ou verdadeira; o presidente Tormenta diz que verdadeira e única. Presunção e água benta cada um toma a que quer, segundo um adágio.
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Hoje, tudo vai por adágios, estou bastante inspirado, eles têm esse poder em mim, inspira-me, aí tenho toda a liberdade de deixar os dedos se movimentarem à vontade, só depois de terminado é que vou ler o que escrevi. Verdadeiros ou não, escrevem-se e publicam-se inúmeros livros, folhetos, revistas e jornais espíritas. Aqui na cidade há uma folha espírita ou duas. Na adolescência, li alguns livros espíritas, alguns psicografados por Chico Xavier, mas sinceramente eu comecei a ter medo do fogo do inferno, enfim são muitos os pecados que carrego nas costas. Não se gasta tanto papel, em tantas línguas, senão crendo que a palavra que se está escrevendo é a própria verdade. Admito que há alguns, inúmeros charlatães; mas o charlatanismo, bem considerado, que outra coisa é senão uma bela e forte religião, com os seus sacerdotes, o seu rito, os seus princípios e os seus crédulos, que somos tu e eu?
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Vou ter a ousadia de dizer uma coisa, sei que haverá quem irá me censurar, ter-me na conta de um louco, alienado, mas é verdade, queiram uns acreditar, queiram outros desacreditar, eu simplesmente não posso furtar-me à verdade. Também há religiões literárias. O Sr. Rabelo, no prólogo de Alma Alheia, alude a algumas e condena-as veementemente, chamando-lhes igrejinhas. Rabelo não é código, é escritor, e se acrescentar que é escritor de futuro, não será modesto, mas dirá a verdade. Digo-lha eu que li as oito narrativas de que se compõem a obra, com prazer e cheio de esperanças.
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Mas Girulika Maria Vaclicha faleceu de ataque cardíaco no centro espírita do presidente Tormenta e do médium Raio. Isso é real mesmo, é a verdade insofismável. Quem sabe não fosse seu destino morrer no centro espírita do presidente Tormenta, porque os espíritos já estavam lá para levá-la? Doente ela estava. Estava sofrendo bastante. Não faz um ano teve de colocar ponte de safena. Dizem, eu não posso afirmar, quando a pessoa está sofrendo muito com uma doença, vem um ônibus para levá-la para o hospital do além, lá será atendida pelos médicos. Se lá não houvesse morrido, houvesse morrido noutro lugar qualquer, ficaria vagando pela terra, esperando ser buscada, e isto iria demorar muito. Anny não merecia ficar vagando pela terra. Morta ela está. Se de imediato fora levada para o hospital do além, quem poderá afirmar, do além nós os homens nada sabemos, é a fé ou não que responde.
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Se ainda está vagando, ninguém do mesmo modo não pode saber, não tenho quaisquer notícias de estar aparecendo para alguém. Sendo ela muito religiosa, fé verdadeira, acredito que está no paraíso celestial, curando-se da doença, para depois desfrutar as delicias de lá.
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Estive no seu velório. Não percebi no seu rosto qualquer coisa que denunciasse insatisfação, medo, ao contrário mostrava-se sereno, tranquilo, calmo; dizem que nestes casos de o morto apresentar fisionomia serena, tranquila, calma, é que foi para o céu, antes de ser enterrado o seu cadáver, debaixo da terra só ele à mercê da decomposição com o tempo. A família é que estava inconformada, chorava muito. Ainda era muito nova, tinha a vida inteira pela frente, trinta e cinco anos. É verdade que o problema cardíaco de Girulika Maria Vaclicha era hereditário, não há como evitar o enfarto. Desde que nascera estava escrito que morreria de enfarto aos trinta e cinco anos. Deixou um filho de sete anos e o marido inconformados. É uma lástima sim.
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Se não a houvessem levado ao centro espírita, bem provável que tivesse vivido mais um pouco. Mas estava escrito também que morreria no centro espírito do presidente Tormenta. O porquê disso ninguém saberia responder, sentido e significado têm. Sabê-lo realmente é impossível. Tudo serão elucubrações.
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Não fui ao enterro. Estava muito sensibilizado para isso. Conhecia-a, era uma mulher muito sensível, simpática, uma amiga. Às vezes, vinha à redação para apanhar o seu jornalzinho, dizia que apreciava muito as minhas crônicas, fazia-a rir bastante, sou um incorrigível cínico e irônico, isto é muito bom, pois que não fico acumulando coisas na alma que só prejudicam.
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Só posso desejar-lhe que descanse em paz.
#RIO DE JANEIRO, 24 DE MARÇO DE 2020, 22:26 p.m.#

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