#DE MANEIRA NÍTIDA O LIBERTINO E O SANTO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA



Sinto que o coração se enche diante da ventura de poder dar, por fim, curso livre e tumultuoso aos meus desejos de comunicação.
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Ah, sim, antes de prosseguir, é intenção das mais profundas dizer que os desejos todos se encontravam estagnados no tempo, na alegria de ser estimado e demonstrar valor aos olhos de alguém mais velho que eu, os mais novos não compreendem bem o que é isto de estagnar os desejos no peito, para eles se o fizer um poucochinho mais irão escancarar, e isto é muito prejudicial, há coisas que se vivem e não se dizem.
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O mundo arde em cores novas – estou vestido com um ponche azul, branco e preto, é inverno e um dos mais rigorosos de Atenas Atéia nestes últimos dez anos, assim me disseram, sou cá um estrangeiro, e a estrangeirice é que me sustenta. As idéias se me ocorrem de mil atrevidas fontes ignoradas, o engenho e o fogo chamejam em mim dentro.
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Tudo isso soa certamente ou a uma pilhéria de valores e costumes ou a um sarcasmo de hábitos e vícios que os humanos sabemos mui bién apreciar e admirar por eles sustentarem a vida, não deixar que criemos raízes no mundo, aliás, seria até cômico dizer que as pedras têm raízes muito profundas. Em suma, a uma sátira deslavada das idiotices e mediocridades humanas, a sátira dos olhares e das faces. Tudo o que em minha vida interior sinto, penso que sinto, sinto que penso, e toda essa parafernália sem senso e medidas, construo ou imagino, crio ou recrio, jaz ardendo dentro de mim, mas nem o vinho é suficientemente poderoso para trazer-me à tona e tornar-me comunicável. Desde as quatro e meia da manhã de hoje, bebendo vinho para molhar a língua, já que amanheceu mais seca do que nunca.
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Navegar mundos desconhecidos,
Cruzar oceanos longínquos
Remar inda que águas revoltas decidem
O destino ad-verso dos sonhos...
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Ganhara por ocasião da data natalícia, há um mês e meio, uma garrafa de vinho muitíssimo especial, fabricado em Caxias do Sul, com certeza de uvas frescas. À noite, convidara a senhora para tomarmos juntos e ainda festejar o aniversário. O amigo, devido a razões particulares, não pode estar presente, mas mandara no outro dia por intermédio de um conhecido que por meu bairro iria passar de carro me entregar em mão, já que não recebo com as duas de uma vez, ambas estendidas esperando ter a garrafa, a não ser que fosse preciso carregar um engradado – não apenas por ser muito estranho receber um engradado, não sou tão merecedor assim de um presente deste nível, um engradado de vinho especial por ocasião do aniversário, vinho vindo de Caxias do Sul, e também por o amigo ter tido a intenção de me dar prazer e alegria por degustar um bom vinho, não de me embriagar vez por todas.
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Ah, sim, há momentos que desgraço a fazer pilhérias com as coisas, só um espírito muito compassivo e solidário para não me mandar às favas, enfim, não estou ironizando a mim próprio, embora pareça, mas o que tem de mais libertino e santo no interior do homem, e não haja quem não consiga identificar alguma mazela e achaque em si dentro. Só esse espírito para me compreender ou perdoar. Caso contrário, as favas são o meu destino imprescindível, aliás, já estava passando dos limites não ter ainda ido.
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Ninguém o sabe, não sabe que as favas são o meu destino. Diz provérbio latino saber nada é, mister outro saber que se sabe. Saber alguém irá amenizar, alentar as dores presentes no íntimo? A dor de degustar a vida nas favas ultrapassa todos os limites.
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Tudo isso soa certamente um tanto falso e tem um sabor mais baixo e mesquinho, cotidiano e medíocre, do que, em meu entender, deviam ter as coisas da vida.
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Bem, convidei a senhora para bebermos juntos o vinho que o amigo me presenteara, e por ser do Rio Grande do Sul devia ser muito delicioso. Tomamos o vinho juntos e durante todo o tempo não trocamos palavra sequer; por ela, sei que estivera a degustar intimamente o vinho, saber-lhe o sabor e a delícia, ambos com espírito de prazer e alegria; por mim é que não sabia o que dizer, as palavras todas saíram de minha língua, esta ficou inerte no solo da boca, no chão da boca – sei lá qual o termo usar, mas isso não é relevante.
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Mas, de todo modo, é uma realidade, é a vida e a aventura; a minha incomunicabilidade é algo de esplendoroso, talvez por desde que me entendera por alguém no mundo dizer a mim que a comunicação com as coisas é impossível porque elas não tem subjetividade e a comunicação com as pessoas é impossível por elas terem subjetividade, e entre as coisas e as pessoas me perdi tanto que hoje se me torna realmente incompreensível discernir as coisas em mim dentro, só sei dizer que sou homem em absoluto incomunicável, aliás, a senhora sempre diz que só falo asneira, besteira, idiotice, nada há que se possa aproveitar em minha fala, e o que lhe causa pasmice é o fato de ser uma inteligência, como o amigo escrevera em seu cartão que recebera junto com o vinho lá de Caxias do Sul, sou homem dotado de “brilhante inteligência e sentimentos humanísticos”. Faltou gás de cozinha. Estava chovendo. A senhora preocupada: "Não sei se Tião Muleta vai trazer o gás, hoje. Está chovendo muito." Disse-lhe: "Se ele for trazer o botijão nas costas, óbvio que vai molhar todo. Não virá. Não é tão tapado como parece sê-lo. Ele tem camioneta, trará o botijão nela". Saiu pisando duro.
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Se assim é , digo asneira, imaginasse só alguma fala destituída desse valor? Intragável.
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Deveria confessar, mas, ao contrário, prefiro dizer francamente, que esse estado em que me encontro, seja espiritual ou de alma, não me é agradável um poucochinho, pode ferir aos espíritos inseguros e frágeis, e isso está fora de qualquer cogitação, apesar de nas entrelinhas um espírito perspicaz e engenhoso pode nele descobrir exatamente esta agressividade com os homens que se sentem sozinhos e isolados no mundo, exilado em suas palavras que não se revelam, e tudo dentro é um nó górdio sem fronteiras.
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Ao contrário, esse estado é muito penoso, e , contudo, também tem algo mais, um certo encanto, uma singular doçura: é a rebelião e a orgia, o libertino e o santo que me habitam desde tempos imemoriais, e que às vezes se me encontro aqui recostado ao parapeito de minha sacada de residência de três andares, ouso de todos os modos e estilos deixarem se anunciar com pureza, inocência, ingenuidade.
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Tudo isso é luminoso, tudo aparece aureolado por suave resplandecência, o brilho de um diamante, tudo é maravilhoso, esplendoroso, divino e puro, e tudo, tudo isso me pertence, recuso-me e me olho com desdém, indiferença. Tudo isso jaz aos meus pés, enquanto observo as serras ao longe, e sendo inverno, haver chovido a noite passada, a neblina cobrir as serras, e se a seguir saberei tratar-se de um rio que passa, as águas seguindo em direção ao seu único e exclusivo objetivo perder-se e encontrar nas águas do oceano, dos mares de toda a terra.
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Tanto é esse sentimento que me toma por inteiro... – aliás, antes de tomarmos a garrafa de vinho inteira, minha senhora e eu, disse-lhe de um estilo muito estranho e esquisito de dizer, uma expressão de nós do interior de Minas Gerais, ao menos se encontrando na entrada do sertão, na cidade de onde venho, dizemos: “Oh eu que gosto de fulano... Oh eu que gosto de um bom vinho em presença de minha esposa e amigos”.
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Tanto é esse sentimento que me toma por inteiro que todas as puras delícias que desde as mais longínquas horas... Se me viessem prender alguns empregados menores dos tribunais e me arrastassem para a forca, condenando-me por ser um homem incomunicável, não haver palavras que pronuncie, que diga o que me vai dentro, as dores e sofrimentos que me assolam árduos e peremptórios, eu não oporia com único gesto, única atitude, até mesmo aquela clássica e tradicional: “Deixe-me então fazer o último pedido. E espero que seja atendido por esses homens que assistem ao meu enforcamento”. Seguiria prazeroso ao cadafalso, considerando justa e cabível a sentença: afinal o que um homem incomunicável está fazendo no mundo quando todos os meios de Comunicação, a Mídia, a virtualidade, a Imprensa falada e escrita são perfeitos?


#RIO DE JANEIRO, 21 DE MARÇO DE 2020#

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