#FORMOSURA CRISTALINA DO SENTIR# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: AFORISMO



Ao nascer da madrugada frágil, passadas as primeiras vagas ainda invisíveis, ainda ensombrecidas e descontentes, é um novo ser o que fende a água da noite, tão longe de suportar, tão perto de aprazerar, tão distante de rejubilar. As lembranças dessas alegrias não são uma saudade triste, tampouco são nostalgias felizes e prazerosas.
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Tantos anos após, ainda persistem em algum recanto de meu coração, quiçá também nalgum recôndito sítio da inconsciência e do espírito, de onde os próprios deuses enviam-me a sabedoria e o destino de pedra, saga de cinzas, sina de revezes à antemão do renascer, karma de avessos in-versos às fectivas de verbos de regências ambíguas e obtusas, o mesmo céu continuará derramando sobre mim sua carga de suspiros e estrelas, gemidos que advêm dos princípios da alma primeva, quando se viu diante de Prometeu e os abutres comendo-lhe o fígado, que dor inestimável, o panorama do in-fin-itivo se con-funde nas sedas a-temporais dos devaneios das utopias e a paisagem do in-finito se roçagam na superfície da ampulheta, enquanto grãos e grãos vão-lhe passando na garganta, nó górdio no peito. Porque aqui estão as terras da inocência, os sítios da pureza.
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O espírito se une aos apóstolos adormecidos e os aprova, os crepúsculos dão-me a impressão de serem os últimos, agonias solenes anunciadas ao pôr-do-sol através de uma derradeira luz que escurece todos os matizes, surpresas patenteadas no crepúsculo de mistérios e enigmas, no alvorecer de mitos e rituais, que devaneia e desvaria na travessia da noite para o dia, do sinistro qual seja tirar a metafísica das morais e éticas, prescrição e clareiras de angústias - nada mais caliente que elucubrar as picuinhas da existência, sobretudo as ausências de tudo, fora disto sou varrido de pedra, com todo o direito a sê-lo.
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Saio em passos largos. Largura efêmera.
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Caminho em direção ao ponto de ônibus. Não estou só cansado. Ressacado de sono. Dormi às cinco da manhã. São sete e dois quartos. Numa ressaca de sono, os olhos não só ardem, fora das órbitas. Na boca, gosto desenxabido. A saliva é água dentro de um vidro, contendo flores. O corpo não dói. Repuxa-se. O desenxabido da saliva é a água, após as flores terem sido jogadas fora. Os sentimentos, entre o sono e a vigília de um indivíduo que não consegue deixar de pensar, fui concebido antes do pensamento. Numa ressaca de sono, pensa-se pela saliva, pelos olhos que ardem. O estômago, o opaco, o vazio abismado – como se tem costume de dizer, no momento da fome? ‘Meu estômago está lá nas costas”. Estou lá nas costas.
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Fome ininteligível. Capaz de comer três ovos quentes, quatro pães com manteiga na chapa, duas vitaminas em copo grande, dois salgados, de preferência enroladinho de salsicha. Em menos de hora e meia, sou ainda capaz de comer três esfihas, dois copos grandes de vitamina, dois pães na chapa, uma tapioca deliciosa com requeijão e queijo. Nada há que consiga satisfazer o meu estômago. Na hora do almoço, posso tranquilo comer uma feijoada bem substanciosa ou um quibão com requeijão. Quem ao meu lado estiver, vendo e presenciando esta viagem alimentícia, perguntar-me-ia se nasci primeiro que a comida, e para sacanear diria que nascemos juntos, agora é saber alfim quem vai comer quem primeiro.
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Flor de ruínas... A casa, pouco recuada, de frente para a rua. A pintura azul está queimada de sol, e a parede, em consequência da chuva e do sol, bem estragada. Há lugares escavoucados. Entre a grade e casa, jardim, grama. Quase todas as espécies de rosas estão ali plantadas.
Jogos da mente.
Re-presentações das imagens a-nunciadas na sensibilidade.
Inspiração.
Tempos de outrora. As circunstâncias quotidianas sob olhos perspicazes e ágeis, quaisquer tentativas de trafulha, logo veem, e não con-sentem, aí ameniza as dores de a consciência de carecer de sentido e realidade.
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A suntuosidade do esplêndido ápice do prazer a manifestar os espectros eternos e perenes da ternura, tornando o viver um simples ato de credulidade. A formosura cristalina do sentir a presença do clímax imortal a revelar as suas plenas imagens de júbilo, os seus dons de perseverança, os seus talentos de Sísifo, a insistência em colocar a rocha no topo da montanha, e refestelar num porto, em cujas bordas e orlas habita a luz, miríade de raios patenteia o sublime, o sereno. A pomposidade efêmera do gozo de sensações da contingência a derramar os risos solenes da esperança, os escárnios polidos da espera, a ironia nobre da intuição. Nobre desejo de sentir as profundezas do coração, em seu segundo mais sublime, ascendendo ao mais longínquo cume da paz o sentimento nítido do alvorecer para o viver.
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O homem re-cria para dar sentido ao seu instante-já, enquanto Deus cria para se orgulhar de quem re-cria para intuir a Verdade da Vida.
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Digna vontade essa de lançar-me nítido e consciente ao fundo de prazeres reais. A fugacidade do olhar inscrita nas atitudes sérias e sinceras faz-me recrudescer o sonho de futuro. Jaqueta de couro preto à Dean, boné à Gogol, sandália de fivela à Robert de Niro, galã dos becos, devaneando a ausência de saída, sorriso cínico, perscrutando o relógio da igreja, o movimento do ponteiro de minutos e segundos, cena cinematográfica. Sinto permanecer num sítio de mim e, através de sua percepção e veracidade, envio à superfície as sensações buriladas e polidas.


"Onde visões ambíguas, turvadas
Sob lumiar rosáceo e odores
De ervas-chás aos timbres sonantes,
Musicalidades audíveis, fluidos em cores
Tangiversam planícies, planaltos,
Mares e marés premonitórios..."
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Eterna verdade vazia e perfeita... "Musicalidades audíveis em cores"... Enquanto tardam as planícies, planaltos, o Abismo e o Silêncio são correr as cortinas da janela de meu quarto de descanso, sono e sonhos. As visões ambíguas, turvas, aquele sentimento da vida presa por uma corda de Inconsciente e de Equívocos a qualquer visão dos caixilhos das janelas sacudindo os vidros, os rios tendo êxtases e volúpias ao luar.
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O instante apresenta-me a impertinência para a longevidade nesta vida. Ouço a nitidez de sons quase que ininteligíveis ao ouvido e sinto emanações exóticas de um paladar subliminar. As ondas vivas de sentimentos sutis vêm tocar as docas de caros pensamentos de ternura e generosidade. O silêncio inaudível do sibilo na caminhada do vento rumo ao precipício do infinito traz-me esta sutil alegria no olhar. Vou deambular fácil e espontâneo nos recônditos sítios do sensível, sentindo as nuanças nítidas do clímax.
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A emoção é o cristal onde se espelha toda a beleza, todo o esplendor, maravilha e inutilidade do mundo. As flores de seu carinho são aparições fugidias. As pétalas de sua consciência são alegrias breves. De sorte que a consciência delas serem apenas aparições fugidias. As palavras sinceras e verdadeiras, humanas e profundas são as flores de amor profundo, sujeito à ardente inspiração de um peito mais aconchegante. No vazio do silêncio, destaca-se o respirar cadenciado de um velho.
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Cadenciado de um velho... Em verdade, não ainda neste nível, mas o início, intróito, preâmbulo da velhice, começando a in-vestigar caminhos percorridos, a sê-lo, e agora sem vaidades do tempo, ainda mais exíguo, as forças e coragens a estabelecerem o destino incólume... De onde a coragem para consentir o haver de ausentar-me do mundo, despedir das buscas do Ser?... Haverei de cadenciar as questiúnculas e as respostas sentidas e experienciadas?...
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A carne do mundo abre uma fissura, um corte de gordura, sebo, de gelatina e manteiga, o sangue jorra quente e espumoso. Redescubro a luz dourada que brilha e reluz suave, meiga, serena sobre os altares do nada no fundo da penumbra, cavernas do vazio nas praças públicas, nas pre-fundas das brumas e orvalhos, nos auspícios do Pico do Everest. Re-acho o brilho cinzento que reluz e brilha dócil, incandescente no mistério do cenário do cheiro frio de lama, quente da poeira e do vazio que reina e impera sob as arcadas sombrias do mundo, visto através da retina dos olhos. A eternidade invadida por uma tenra e pueril melodia do silêncio, da in-existência completa e absoluta do som. O vento sopra a ampulheta, mistério e enigma de como as gotículas de areia vão passando na garganta, renovando-se, inovando-se, incrementando-se.
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O desejo leva-me longe demais, muito além, para o alto por entre risos; eu, então, voo estremecendo como uma flecha através dos arrebatamentos ébrios e sedentos de sol: voo para futuros remotos que nenhum sonho presenciou, para meios-dias mais quentes dos que jamais podem imaginar a fantasia, a ilusão, a quimera – para além onde os deuses se envergonham de qualquer traje, as ninfas balançam a cauda à cintilância da lua cheia, não se vexam de luxúrias, a cascável inspiradona balança o chocalho seguindo o ritmo de música que ouve, música e chocalho de cascável – a fim de falar em parábolas, elipses, anacolutos, hipérbatos, hipérboles, balbuciar e coxear como os poetas.
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Amo este eloqüente silêncio que soa para mim como uma doce ópera, melodia cantando a grandeza e o poder de um coração que espera ajuda só da "viagem aos interstícios da alma", mas creio que vá dizer a mim que não a coloque antes de destino, que diga mesmo: “Espero ajuda só de Deus e da Senhora”. Desculpe-me a sinceridade, mas prefiro mesmo pedir à Senhora em primeira instância, esperando que transmita a Deus o meu pedido. Será mais fácil para Ele ouvir-me, será mais fácil para Ele realizar o de que tanto necessito. Não é assim que as crianças fazem? Pedem à mãe para pedir ao pai?
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Impetuosa paixão pelo sentimento de viver os resultados contingentes do prazer vem surgindo saltitante pelos interstícios de olhar, buscando as sensações alegres do peito.
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Comportamentos. Gestos. Atitudes. Ações. Constituem angústia por estarem sendo gratuitos, indecentes, imorais. Só a mudança deles não irá proporcionar a harmonia de que tanto necessito. Algo superficial. Harmonia, a união das manifestações sensíveis e emocionais com os desejos de construção. O mergulho deverá ser feito no emocional. Nele, é que toda a problemática está. Encontrar-me em quem sou. Não tombarei em colapso senão quando me fuja a consciência. Somente a morte fará surgir a água esmorecida e depenada. Tornar-me digno de estar existindo. Existir com dignidade. Antes, necessito de patentear os sonhos em concomitância com as realizações. Não acredito que em mim existe outro Romualdo Lacerda, de ser im-possível o encontro de valores, virtudes, ética e moral, posturas e condutas em consonância com as verdades do não-ser, pitis, orgulhos, vaidades, impertinências, poderes, pernosticidades, prepotências.
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As flores, as lágrimas (quando contidas), as partidas e as lutas são para amanhã. No âmago do dia, quando o céu abre suas fontes de luz no espaço imenso e sonoro, todos os promontórios da costa se assemelham a uma frota que parte, um barco à deriva no mar, oscilando nas ondas.
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Extasiado em alguma abstração fascinante, de que não tenho consciência. Erro pelas ruas e pela cidade em redor, fixando tudo e, contudo, sem nada ver. Falo raras vezes, quase não tenho relações com os habitantes da terra, nada me interessa de suas vidas, abismo intransponível, não há ponte levadiça que leve a outras possibilidades, probabilidades de um relacionamento entre mim e eles; nem sou pessoa para meditar; consumo-me numa orgulhosa tensão de hostilidade e amabilidade, como o polo negativo, positivo, dialéticas e contradicções...


#riodejaneiro#, 28 de agosto de 2019#

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