ESPERANÇA SOBRE O TRAVESSEIRO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA



Deparo-me com uma esperança sobre o travesseiro. Não estou deitado sobre. Faço questão de levantar, sentar-me na cama, vendo-a andar de modo bem lento. Ergue, em primeiro lugar, a perna esquerda, dando um impulso – a direita move-se. Longo tempo. Desce do travesseiro, seguindo o caminho sobre o lençol. Beirada do colchão. Empreende um pulo. Não se machuca. Dirige-se ao canto da porta, trancada a chave.
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Olho-a. Pára. Minutos inerte. Penso que, em consequência do pulo, machucou-se. Por determinação própria - se é que uma esperança determina-se – empreende alguns passos. Devido à dor de se haver machucado, não suporta mais. Morta?
Insanos medos. Gritos sem culpa. Pranto que engole encontros ofertados.
Em carne?
Noites cirzem da paz os sorrisos.
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Por que não amores sublinhando o que resta de evangelho?
Se houvesse seguido andando sobre o lençol, não haveria de acontecer de se machucar. Poderia tê-la eu apanhado, colocando-a no chão. O objetivo, de sentar-me à beira do colchão, era legar-lhe todo o espaço para andar. Deitado, poderia, sem querer, com o peso do corpo, esmagá-la. Não era o desejo, ao menos explícito. Aliás, era o de permanecer andando sobre o lençol. Pela manhã, nada de diferente. As coisas nos seus devidos lugares. Na cabeça, o mesmo silêncio. No percurso do tempo, o consumo de uma paixão absurda versus realidade inútil. Às vezes, penso que seria necessário uma transformação. Algo a ser olhado de modo inusitado. Até que eu morra, tudo...
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A humanidade suspire pela água que se lhe escapou!...
Os instantes incutem na mente dos homens o vazio!...
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Nesta manhã, algo excêntrico. Deparo-me com uma esperança sobre o travesseiro. Algo é metamorfoseado. Não se trata de outras manhãs que, contrariado e aborrecido, fui obrigado a assumir.
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Passo a observá-la. Nenhum silêncio escalona a solicitude estranha. Nenhum mistério exaure de antigas ignomínias. Nenhuma respiração entre parênteses. Nenhum imenso envolvido pela neblina. Que divague, trema de tristeza, irradiando o chamado sombrio que engrena sanções refratárias.
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Começo de preocupar-me. A esperança quieta. Homem não consegue estar parado este longo tempo. Olha para um lado, faz um gesto desnecessário, pensa em algo, abaixa a cabeça. A esperança não. Não tem a atitude dos homens. Não se aborrece. Não se entedia.
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Desvio o olhar para a mesa de cabeceira. Vejo o cachimbo, o diário. Sobre, caneta tinteiro, presente de mãe, aquando completei nove anos. Parker 5l, pena de ouro. Ergo-me. Apanho a caneta. Com cuidado, encosto a pena na esperança. Anda com passos medidos. Não está morta. Vive. Solta no espontâneo.
Decido tomar o banho. Lembro-me de que necessito passar na Companhia Telefônica, a fim de pedir que venham consertar o aparelho.
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Aconteceu.
Alguém conversou por quarenta e cinco minutos. Logo de início, disse-me: “Não preciso de conselhos. Desejo apenas desabafar-me”. Conflitos com os colegas de repartição, concorrências, desonestidade, brigas com o diretor. Só em seu apartamento. Sem ninguém com quem conversar. Nada expressei. Ouvi. Olhava o canto da parede.
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Dirijo-me ao banheiro. Olho a esperança. Anda. Algo na cabeça: a esperança no travesseiro. A esperança que mudou a manhã.
Ainda que o silêncio ejacule o crepitar triste da presença, se as vozes não estilhaçam a intimidade, a morte desfacelará no peito, a corrupção perdurará nos olhos.
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Talvez seja esta uma resposta, mesmo que por lacunas e vazios, que encontro para um questionamento que venho com efeito elaborando em minha mente: algumas cenas de obras literárias em que pensamos que a ação acontece naquele instante, mas isto não seria devido ao fato de que esquecemos do narrador. Não há como pensar que a ação acontece no momento em que é narrada, descrita.
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A despeito disto, lembrou-me bem nítido desta esperança que apareceu em minha cama, logo ao levantar-me. Aconteceu de ela pular da cama, andar pela extensão do quarto. Em verdade, fui tomar um banho. Não sei o que teria acontecido para morrer. Decidi então re-criar o acontecimento, mas, agora, vem-me à mente que aquela esperança tinha um outro sentido que não este que venho esboçando, havia em sua presença uma mensagem positiva, digamos assim. Contudo, em esboçando um sentido negativo, a morte da esperança antecede à morte da harmonia, e assim o homem está eminentemente envolvido com uma vida absurda e irritante, não posso mais saber que símbolo havia nesta esperança que apareceu em minha cama e morreu sem que eu saiba o que teria causado a sua morte.
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Profundezas da carne e dos ócios ósseos.
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Refletem-me na face imperfeições presentes.
Sou eu quem me despe inteiro.
Algo sucedeu tão logo me deparei com a esperança sobre o travesseiro. O vazio dissipou-se. Planos deram em nada. Meia página de linhas arrabiscadas, à espera de quieto desespero. Tudo modificaria. Era espontâneo existir, tendo algo que defender. Sem estar defendendo a angústia. Defendê-la-ia contente.
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Sozinho, defendo a verdade, que me ajuda a enfrentar problemas, situações. Verdades são passíveis de críticas, questionamentos. Não me pertencem. O mito da verdade extinguiu-se. Perdeu-se no tempo. Não há critérios para julgar.
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“Ainda que as diferenças conheçam o oráculo obscuro da luz,
Se o enigma das mãos unidas não reunir o espírito,
O toque será vazio,
A carícia reconhecerá escuridões;
Ainda que os sonhos particulares timbrem apelos à eternidade,
Se as dúvidas cortam os corpos vulcâneos,
Esperanças avizinham mortíferas flechas,
Há tempo para matar o agora,
Sou jovem e a vida, demasiado distante, longa,
Até que descubra inesperadamente
Anos e anos passaram sobre mim,
O sol é o mesmo de uma forma relativa,
Estou mais velho, contudo,
Com menos fôlego, disposição,
Dia mais perto da morte.
Gritos despojam mortes transcendentes.
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Se hei-de usar o liberdade e a verdade
Para com a vida, desço à fonte e tiro a água;
Se não, fico desobrigado de minha presença e, então,
Toco com as mãos os estatutos do obsceno, obtuso,
Nonsense”.


#riodejaneiro#, 30 de agosto de 2019#

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